Os sem-teto às portas de São Paulo
Após visitar o acampamento do MTST, no Morro do Osso, em Itapecerica da Serra, o repórter francês transmite sua visão sobre a crise habitacional da maior megalópole da América do Sul e a força dos movimentos sociais brasileiros
Do “Morro do Osso”, em Itapecerica da Serra, a vista abarca um mar de barracos de lona plástica preta, esticados com estacas de madeira ou bambu. Aqui e ali, colunas brancas de fumaça indicam que o fogo do café-da-manhã está aceso. Neste lugar, cerca de 3 mil famílias provenientes das favelas de São Paulo ocupam um terreno particular onde foi fincada a bandeira do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ruídos de martelo, serrote, picareta. Nesta nova cidade, sempre há um poço ou latrinas a serem escavados, buracos de telhado a serem tapados, divisórias a serem erguidas.
O MTST nasceu em 1997, por iniciativa do Movimento dos Sem Terra (MST). Gilmar Mauro, membro da coordenação do MST, lembra que “a criação do movimento partiu de um dado oficial — 85% da população brasileira reside em zona urbana — e foi uma tentativa de articular a luta pela terra e a luta por moradia”. A primeira operação de envergadura do MTST ocorreu em Campinas, quando 5 mil famílias invadiram uma área inaproveitada que batizaram de Parque Oziel, em homenagem a uma das vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. Dez anos depois, o Parque Oziel transformou-se em um bairro propriamente dito, com infra-estrutura adequada, e cujos habitantes compartilham de forte sentimento comunitário.
Nos anos seguintes à sua criação, o MTST estendeu suas atividades à periferia paulistana, aos estados do Nordeste e ao Rio de Janeiro, onde uma série de ocupações resultou na construção de 10 mil casas em Nova Sepetiba. Porém, conforme reconhece Rosildo Santos, antigo militante do MTST, “a gente não tinha nenhuma experiência de viver em um meio urbano e se contentou em reproduzir a estratégia empregada durante as lutas pela terra”.
Mas o ambiente das favelas é complexo, a identidade é mais difícil de ser constituída aí do que em uma comunidade rural. O MTST sofre com a hostilidade das organizações criminosas, de seitas religiosas e dos políticos locais, que temem perder o controle de seu público de costume.
No âmbito nacional, as diferentes seções do movimento evoluíram de forma independente umas das outras, algumas mudaram de nome, o MST e o MTST se tornaram organizações autônomas. Neste início de década, duas ocupações bem-sucedidas, realizadas na periferia de Guarulhos e Osasco, propiciaram um novo ímpeto na Grande São Paulo. Em julho de 2003, o MTST organizou outra ocupação, esta em São Bernardo do Campo. O terreno pertencia à empresa alemã Volkswagen e a reação das autoridades foi imediata: com o apoio de helicópteros e de atiradores de elite postados nos prédios das redondezas, as tropas de choque da polícia investiram contra o acampamento, fazendo inúmeros feridos e prendendo várias dezenas de militantes. A brutalidade da repressão gerou indignação na Alemanha e provocou uma manifestação diante da sede da empresa, contribuindo assim para divulgar internacionalmente a existência do movimento dos sem-teto no Brasil.
O governador de São Paulo na época, Geraldo Alckmin, advertiu que qualquer tentativa de ocupação organizada pelo MTST seria reprimida. Em 2005, contudo, o movimento invadiu terreno situado em Taboão da Serra. Após oito meses de luta, os sem-teto do acampamento Chico Mendes obtiveram junto às autoridades a promessa da construção de oitocentas casas. E finalmente, na noite de 16 para 17 de março, em Itapecerica, foi a vez de estabelecer o acampamento João Cândido — assim batizado em homenagem ao “Almirante Negro”1.
A operação fora preparada com meses de antecedência. “Foi na ocasião de um encontro com moradores de uma favela que protestavam contra o fechamento da escola local que constatamos a existência do terreno desocupado”, explica Guilherme Boutos, membro da coordenação do MTST. “Chamado de Fazendinha, o lugar era usado como desmanche por ladrões e também como depósito de cadáveres pelos criminosos.”
Situado entre o extremo sul de São Paulo e Itapecerica da Serra, numa região que padece de grande déficit habitacional, o terreno fora repassado em 1991, sob condições um tanto quanto obscuras, ao Banco Noroeste (mais tarde adquirido pelo Santander), e depois cedido à Sociedade Itapecerica Golf e Urbanização Ltda. O local é objeto de um vago projeto, jamais concretizado, para a construção de um clube de golfe. Boutos explica: “Na realidade, trata-se de terra improdutiva destinada à especulação imobiliária”.
Uma pequena cidade
Uma vez definido o local, o MTST pôs em ação sua rede ramificada nas favelas, fez contato com as famílias, estabeleceu uma lista de candidatos à ocupação. No dia D, cerca de trezentas pessoas, munidas de lanternas, facões, picaretas, martelos, arame, estacas de bambu e rolos de lona plástica, invadiram a Fazendinha. Na manhã de 17 de março, as primeiras barracas do acampamento João Cândido já estavam erguidas. Muito rápido, a notícia da ocupação se espalhou e centenas de moradores de bairros populares de São Paulo acorreram ao local. Ao cabo de uma semana, o acampamento adquiriu dimensões de uma pequena cidade.
Patrícia Cardoso, advogada e integrante da equipe do Instituto Pólis, estima: “A repercussão obtida por esse tipo de ocupação é reveladora da amplitude da crise habitacional na Região Metropolitana”. Em 1980, os moradores de favelas representavam 7,4% da população paulistana. No início da década atual, a porcentagem subiu para 11,1%2. Patrícia Cardoso explica: “A maior parte das favelas é resultante do crescimento desordenado e excludente das cidades brasileiras, que empurra os pobres rumo a espaços situados fora do mercado formal de terras (áreas de proteção ambiental e áreas de risco). A infra-estrutura e serviços públicos como abastecimento de água, iluminação, coleta de lixo, coleta de esgoto, saúde e educação são notoriamente insuficientes nessas regiões”.
Ao lado das favelas propriamente ditas, o Instituto Pólis aponta ainda os loteamentos irregulares e os cortiços, onde várias famílias dividem um mesmo cômodo pelo qual os proprietários cobram aluguéis exorbitantes. Patrícia Cardoso continua: “Na Região Metropolitana de São Paulo, cerca de 2 milhões de pessoas vivem precariamente em áreas de manancial e o déficit habitacional é de 600 mil moradias. Ao mesmo tempo, o censo do IBGE3 apontou 400 mil domicílios vagos só na cidade de São Paulo e 540 mil no conjunto da megalópole. Haveria portanto imóveis vagos suficientes para corrigir em grande parte o problema da população sem moradia adequada”.
Longe de caminhar nessa direção, as políticas públicas de revalorização do centro fomentaram sobretudo a especulação e provocaram uma disparada de preços no mercado imobiliário, ao mesmo tempo em que sucessivos governos afetaram dura duramente as camadas mais pobres com ataques repetidos aos direitos trabalhistas, provocando uma deterioração geral das condições de trabalho.
No início desta década, segundo o IBGE, cerca de 54 milhões de pessoas — 53,4% da população economicamente ativa do Brasil — trabalhavam no mercado informal e 70% dos trabalhadores urbanos tinha empregos incertos. Ao lado de catadores de sucata, camelôs e empregadas domésticas, atividades tradicionais do setor informal, operadores de telemarketing, caixas de hipermercados, funcionários de manutenção e vigias constituem hoje um novo exército de trabalhadores em condições precárias. Excluídos do mercado imobiliário, os casais de baixa renda migram para a periferia das grandes cidades. Ao longo da década, a população das favelas paulistanas cresceu a um ritmo cinco vezes mais rápido que o do conjunto da megalópole, agravando uma situação que já era difícil e carregada de potenciais conflitos.
Negociações em diversas frentes
“Foi com os vizinhos que ouvi falar sobre a invasão de João Cândido”, conta Rose Mary dos Anjos. Vinte e quatro anos, mãe desempregada depois de ter tido diversos trabalhos — telefonista, vendedora, empregada doméstica —, mora temporariamente no morro do Jardim Guarujá, favela de São Paulo. “Não tenho muita coisa a perder!” Ela guardou seus móveis na casa de uma amiga e uniu-se ao MTST. “Nunca me preocupei com política, é a primeira vez que participo de uma ocupação”, explica.
Em Itapecerica da Serra, assim que o acampamento foi erguido, os dirigentes do MTST iniciaram negociações nas mais diversas frentes — com os governos municipal, estadual e federal, assim como com os representantes da Itapecerica Golf e Urbanização Ltda. Sustentando que a área em litígio não preenche função social alguma, o MTST reivindica sua expropriação e a construção de moradias para as famílias ocupantes. No fim de março, 5 mil sem-teto marcharam até o Palácio dos Bandeirantes. Mensagens e visitas de apoio foram dirigidas ao João Cândido: deputados de esquerda, sindicalistas, representantes da pastoral social, do MST, de organizações que lutam pelo direito à moradia etc. A imprensa reservou ao acontecimento mais espaço que o de costume.
Após três semanas de ocupação, as propostas formuladas pelas autoridades foram consideradas insuficientes pelo MTST, mas um acordo firmado com o proprietário do terreno descartou provisoriamente qualquer ameaça de expulsão. Em troca do acerto, os sem-teto se dispuseram a recusar a instalação de novas famílias na área contenciosa. Para os moradores de João Cândido, teve início uma nova fase, de consolidação do acampamento.
Divididos em 36 grupos, de 100 a 180 famílias, os ocupantes escolheram não só coordenadores como também os responsáveis pela disciplina, infra-estrutura e condições sanitárias. Cozinhas coletivas foram supridas com o auxílio de organizações amigas que enviam alimentos e, principalmente, com a participação voluntária dos sem-teto. Artistas contribuíram com apresentações e shows musicais. Estudantes animaram oficinas de teatro e atividades culturais.
Todas as tardes são dados cursos de formação política. Durante as reuniões diárias, realizadas dentro de cada grupo e entre os responsáveis pelos setores, os ocupantes são informados dos últimos acontecimentos, debatem a organização do acampamento, decidem as ações a serem empreendidas para popularizar a luta e fazer pressão sobre as autoridades. Assim como Rose Mary dos Anjos, eleita coordenadora do grupo quinze, as mulheres estão muito presentes no movimento e assumem responsabilidades em todos os níveis. “Ajudar esse mundo de gente a coexistir não é tarefa das mais fáceis, principalmente nestas condições: sem água corrente, sem eletricidade, numa total falta de privacidade a todo instante”, afirma. “Ao mesmo tempo, existe entusiasmo. Na favela, cada um tenta sobreviver como pode, cada um por si. Aqui é outra coisa, a solidariedade é a regra número um.”
Essa revolução nos valores, a consciência de ter sacudido o manto de resignação que pesava sobre seus ombros, a dignidade recuperada e o orgulho de ter-se tornado parte ativa de um empreendimento coletivo são sentimentos de que os moradores de João Cândido dão testemunho recorrente.
Conforme afirma Helena Silvestre, uma das coordenadoras do MTST, “um acampamento de sem-teto é uma escola de democracia participativa onde se formam os futuros dirigentes comunitários. A partir de uma preocupação concreta — a moradia —, queremos contribuir para lançar as bases de um genuíno poder popular”. Zeloso de sua independência em relação aos partidos políticos, o MTST não se permite dar orientação de voto e recusa integrar qualquer uma das coordenações dos movimentos populares existentes. “O que não nos impede de manter relações cordiais com estes últimos e com o conjunto das forças de esquerda”, completa Helena.
Desse modo, ao longo do mês de abril, os sem-teto participaram de manifestações organizadas pelos sindicatos de professores, pelos sem-terra e, no Primeiro de Maio, desfilaram na ala da esquerda radical. “Pensamos que é possível unificar, em torno de objetivos comuns, as lutas que são atualmente travadas isoladamente nas diversas comunidades4. E é por meio dessas lutas que nosso movimento ganha força e incorpora novos militantes”, diz Helena. “Enquanto isso”, sorri, “não dispomos sequer de sede própria, tampouco de meios para pagar salários dos coordenadores.”
Osso duro de roer
A despeito do inegável dinamismo e da notável organização de seus acampamentos, o MTST segue sendo um movimento um tanto informal. Em torno de uma direção colegiada cuja legitimidade está acima de qualquer contestação, embora não eleita, gravita um nódulo militante composto de elementos heterogêneos — trânsfugas do MST, líderes comunitários, famílias que se juntaram ao MTST durante ocupações anteriores, sindicalistas, estudantes oriundos de círculos de esquerda radical ou de esferas de influência antiglobalizantes etc. “Mas nossa força”, insiste Helena, “reside na capacidade de mobilização da população favelada.” Apontando um grupo de barracos construídos no flanco da colina sobre a qual tremula estalando a bandeira de um osso, ela acrescenta: “Morro do Osso. Os companheiros do grupo oito escolheram esse nome porque acreditam que, para as autoridades, os sem-teto serão um osso duro de roer”.
No dia 18 de maio, os sem-teto de João Cândido acabaram sendo obrigados a abandonar a área ocupada. No entanto, obtiveram por escrito dos governos federal e estadual o compromisso de construção de moradias para todos os ocupantes. Com esse fim, a prefeitura de Itapecerica da Serra sugeriu um terreno no qual 350 famílias sem qualquer outra solução de abrigo imediato ergueram um novo acampamento.
*Philippe Revelli é jornalista.