Pacto de poder com os donos da terra
A economia do agronegócio como pacto de poder representa uma estratégia fundamental de captura da renda da terra, à revelia dos interesses mais gerais do país, que aí não cabem. Esse pacto, contudo, é uma construção hegemônica moderna, e não uma dominação clássica ao estilo “latifúndio improdutivo”Guilherme C. Delgado
(Ruralistas realizam “tratoraço” no Rio Grande do Sul”)
Duas situações recentes no âmbito do Legislativo – a tramitação da revisão do Código Florestal e a votação da PEC 215/2000 (que transfere ao Congresso as funções de identificação-demarcação das terras indígenas) – seriam ininteligíveis em uma democracia de massa, sem a devida compreensão dos arranjos de economia política que conformam hoje o poder político no Brasil, praticamente desde a estruturação de um virtual pacto de economia política no início dos anos 2000. Nos dois casos citados, a denominada bancada ruralista (Frente Parlamentar da Agropecuária) dominou e impôs seu texto à revelia parcial do Executivo. No caso da terra indígena, embora assunto ainda em aberto, a ministra da Casa Civil Gleisi Hoffmann já se apressou em prometer à bancada a retirada da Funai do processo de demarcação e sua remessa ao Ministério da Agricultura e Pecuária, tradicionalmente vinculado aos ruralistas.
Não obstante evidências óbvias de que a posse, a propriedade e o uso da terra (recursos naturais) e sua concentração são atualmente uma estratégia essencial ao estilo de acumulação de capital, que se reforçou no Brasil na última década, os arautos dessa economia (do agronegócio), com a complacência dos desinformados, negam a situação real, para justificar interesses.
Neste texto vou propor uma leitura da economia do agronegócio como pacto de poder, com estratégia fundamental de captura da renda da terra, à revelia dos interesses mais gerais do país que aí não cabem. Esse pacto de poder, contudo, é uma construção hegemônica moderna, e não uma dominação clássica ao estilo “latifúndio improdutivo”.
1. Reestruturação da economia do agronegócio nos anos 2000
Aquilo que se reestrutura reafirma uma estrutura anterior em processo de adaptação às novas condições situacionais. Isso é precisamente o que ocorreu com a economia do agronegócio – um sistema de relações de produção das cadeias agroindustriais com a agricultura, alavancado pelo sistema de crédito público e pela renda fundiária (mercado de terras).
Colocada de forma como realmente é estruturalmente, e não da maneira superficial (agronegócio é empiricamente definido como soma dos negócios no e com o agro), a economia do agronegócio requer ação concertada do Estado, sem a qual essa estrutura não existiria, na acepção de estratégia de economia política. Nesse sentido, a construção histórica da atual economia do agronegócio vem da época dos militares, aliados aos tecnocratas da “modernização conservadora”, que esculpiram a partir de 1964, particularmente desde 1967, um Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) e um mercado de terras completamente desregulado do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504, dez. 1964) e do Código Florestal (Lei n. 4.771, set. 1965).1
Em contrapartida, forja-se a acumulação de capital no âmbito desses setores amalgamados pelo dinheiro público – complexos agroindustriais-agricultura, sistema de crédito e mercado de terras – como novo estilo de capitalismo agrário, à margem da função social e ambiental da propriedade fundiária, conceito criado pelo Estatuto da Terra e completamente ignorado pela política agrícola do período.
Observe-se que a “modernização conservadora” dos militares ocupou a cena manu militari e exerceu esse projeto impondo pela força bruta suas estratégias de poder. Reservou aos grupos sociais não atendidos – os vários campesinatos excluídos e expelidos da terra e os trabalhadores assalariados – a violência das armas das forças de terra, policiais e militares.
O fim do regime militar, sucedido por período de transição, que reorganiza o Estado e suas ações políticas depois da Constituinte, dá vez às novas demandas sociais (ordem social), afetando esse projeto, desorganizando-o, de certa forma.
Por outra via, a emergência de uma orientação neoliberal nas relações internacionais também iria atingir a modernização conservadora da agricultura, sem, contudo, abrir espaço político para uma reforma profunda da estrutura agrária. De maneira muito sintética, podemos caracterizar esse período dos meados dos anos 1980 ao final dos anos 1990 como uma transição entre duas grandes alianças do poder agrário com o Estado: 1) 1965-1985 (modernização conservadora); e 2) anos 2000 (economia do agronegócio). Nossa análise neste texto concentra-se nesse segundo período.
1.1. Reestruturação como hegemonia política voltada à reprimarização do comércio externo
No final dos anos 1990, passada a inviável experiência do primeiro governo FHC – de acumulação de déficits externos crescentes e contínuos –, o Brasil virou a “bola da vez” da especulação financeira internacional em 1999 (crise cambial), o que forçaria o segundo mandato de Fernando Henrique a reorganizar sua política econômica externa, tendo em vista gerar saldos comerciais de divisas a qualquer custo. Nesse momento começou a reestruturação econômica da economia do agronegócio, diretamente vinculada à expansão mundial das commodities. Em pouco mais de uma década (1999-2012), o país quintuplicou suas exportações em dólares – passando de US$ 50 bilhões a US$ 250 bilhões. Nesse boomexportador, os produtos primários – básicos e semielaborados – ganharam protagonismo, enquanto as manufaturas foram saindo das exportações e ingressando paulatinamente nas importações (entre os anos 1995-1999 e 2008-2010, os produtos primários pularam de 44% para 54,3% da pauta exportadora, enquanto os manufaturados decresceram proporcionalmente).
O processo de reestruturação econômica é notório, não necessitando maiores detalhes. Menos conhecido é o papel do Estado pelo lado do SNCR (fortemente expansivo) e pela política fundiária (completamente desregulada), que deram pela via estatal o beneplácito à acumulação e à especulação fundiária.2
É importante constatar as similitudes e diferenças da articulação econômica das cadeias agroindustriais, sistema de crédito público e propriedade fundiária ora sob análise, comparativamente ao arranjo econômico da época dos militares no poder. Nos dois processos persegue-se lucro e renda fundiária propiciados pelas “vantagens comparativas naturais”, que se tornam atrativos explorar. Mas o arranjo político atual é diferente do anterior.
A economia do agronegócio vai além da estratégia econômica para construir ideologicamente uma hegemonia pelo alto – da grande propriedade fundiária, das cadeias agroindustriais muito ligadas ao setor externo e das burocracias de Estado (ligadas ao dinheiro e à terra) –, tendo em vista realizar um peculiar projeto de acumulação de capital pelo setor primário. Essa estratégia tem agora certa centralidade no sistema econômico, diferentemente da subsidiariedade à industrialização, como fora no passado.
A esse projeto, fortemente assentado na captura e superexploração das vantagens comparativas naturais ou de sua outra face da moeda – a renda fundiária –, somam-se vários aparatos ideológicos, ausentes na “modernização conservadora”:
Uma bancada ruralista ativa, com ousadia para construir leis casuísticas e desconstruir regras constitucionais;
Uma associação de agrobusiness ativa para mover os aparatos de propaganda para ideologizar o agronegócio na percepção popular;
Um grupo de mídias nacionais e locais sistematicamente identificado com a formação ideológica explícita do agronegócio;
Uma burocracia (SNCR) ativa na expansão do crédito público (produtivo e comercial), acrescida de uma ação específica para expandir e centralizar capitais às cadeias do agronegócio (BNDES);
Uma operação passiva das instituições vinculadas à regulação fundiária (Incra, Ibama e Funai), desautorizadas a aplicar os princípios constitucionais da função social da propriedade e de demarcação e identificação da terra indígena;
Uma forte cooptação de círculos acadêmicos impregnados pelo pensamento empirista e completamente avesso ao pensamento crítico.
2. Limites e implicações do desenvolvimento do pacto de poder pelo setor primário
Se analisarmos com a devida atenção o desempenho recente (anos 2000) da economia brasileira, identificaremos uma característica peculiar. Os setores e as atividades que se expandem com maior velocidade, puxados pela demanda externa e pelos investimentos públicos – a economia do agronegócio, a mineração, a exploração petroleira e a hidroeletricidade –, apresentam a dotação (monopólio) de recursos naturais como causa primeira da mais elevada competitividade externa das commodities, produzidas ou produzíveis por esses setores e atividades. Mesmo nesses “setores” dependentes dos monopólios naturais há diferenças qualitativas naquilo que é o motor causal da expansão econômica – a produtividade do trabalho. Mas aqui há uma controvérsia importante sobre o vetor que a impele: o progresso técnico ou a vantagem comparativa natural. No caso específico do petróleo, commodity cujo preço externo foi de US$ 15 a US$ 100 o barril do início ao final da década, é sobretudo o progresso técnico (tecnologia da exploração em águas profundas), com fortes conexões com demandas interindustriais (mecânica, eletrônica, química etc.), o fator de desenvolvimento que propicia a extração do produto e, portanto, a captura das vantagens internacionais de país detentor de reservas naturais.
Por outro lado, para o gênero das commodities agropecuárias e minerais em forte expansão no período recente – soja, milho, carnes, açúcar-álcool, celulose de madeira, café, minério de ferro, bauxita-alumínio etc. –, o fator causal da expansão é a dotação natural de recursos, extensiva e intensivamente explorados conforme padrão de uma tecnologia preexistente, há décadas largamente disseminada em escala internacional.
Em tais condições, a expansão econômica das commodities puxada pelo setor externo, que por sua vez conduz à especialização primário-exportadora, gera um processo vicioso de crescimento econômico.
Isso porque tal forma de inserção especializada no comércio externo, associada ao binômio vantagens comparativas naturais-renda fundiária e apenas secundariamente ao progresso técnico (industrial), limita fortemente o desenvolvimento econômico e social de um país industrializado, com mais de 80% de população urbana.
Acresce observar que esse estilo da expansão reforça a concentração fundiária, visto ser a captura da renda fundiária um de seus motores. Ademais, expelido o progresso técnico à condição lateral da expansão econômica, os sistemas industrial e de serviços ficam praticamente marginalizados do comércio externo (locusde aferição da produtividade), tornando-se fortemente deficitários, como é o caso atual.
Note-se que é a especialização na “produtividade” dos recursos naturais, e não seu aproveitamento racional, o fator de atraso que ora estamos apontando. Isso fica ainda mais grave quando a essa especialização corresponde no mesmo período histórico um processo visível do enfraquecimento do setor industrial, cujos investimentos declinam ano a ano, provocando perda de produtividade do trabalho no conjunto do sistema econômico.
2.1. Consequências sociais e ambientais
A especialização primário-exportadora, da forma como vem sendo construída, interna e externamente, requer superexploração de recursos naturais. Em tais condições, o setor primário fica escalado para superexplorar recursos naturais com exportação de commodities. Provoca evidentemente consequências ambientais, que são custos sociais não internalizados na conta do empreendedor, mas completamente detectáveis na conta da sociedade – desmatamentos e queimadas por um lado, com inegáveis contribuições ao efeito estufa; e intensificação do pacote técnico agroquímico, expandido fortemente, à taxa de 15% ao ano na utilização de agrotóxicos.
Por sua vez, as relações agrárias e trabalhistas criadas e recriadas por esse estilo de expansão promovem forte concentração da produção e da propriedade e baixa densidade de incorporação do trabalho humano. Recente artigo publicado pelo Ministério da Agricultura3 informa, com certa jactância, que, segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, cerca de 27 mil grandes estabelecimentos, dos 4,4 milhões existentes, foram responsáveis por 51% do Valor de Produção Bruta daquele ano.
3. Crise do projeto e as articulações contra-hegemônicas
Diferentemente da modernização conservadora dos militares, suportada pelo crescimento industrial e pelas armas, a economia do agronegócio se estruturou ao abrigo da inserção primário-exportadora de uma economia mundial em ciclo de forte expansão do comércio internacional de commodities. Mas forjou-se internamente como bloco hegemônico, manipulando com grande competência a arma ideológica do consenso político. Atravessa já quatro mandatos presidenciais – FHC II, Lula I, Lula II e Dilma −, com completa aderência do Poder Executivo a essa estratégia de acumulação de capital, cuja pretensão é autolegitimar-se, submetendo toda política agrária, ambiental e externa ao seu estilo. E isso vem sendo feito de maneira tácita ou ostensiva há mais de uma década, sem que tenhamos atentado para os ingredientes perversos desse projeto, que aparentemente somente se discutem nas crises.
O primeiro sinal visível de crise é precisamente a seiva que alimentou esse projeto – o boom das commodities agropecuárias e minerais a serviço do equilíbrio externo. No último triênio cresceram as evidências de declínio dos preços das commodities, agravado pela deterioração crescente do déficit em conta-corrente.
Um segundo sinal visível de crise do projeto hegemônico, malgrado sua invisibilidade nos espaços públicos, é certa articulação de vários setores excluídos ou expelidos desse pacto de poder. Movimentos camponeses, a exemplo da Articulação dos Povos da Terra, das Águas e das Florestas, povos indígenas, grupos quilombolas, assentados de reforma agrária e agricultores familiares em geral tentam se articular, numa perspectiva contra-hegemônica. De outra parte, iniciativas tipicamente urbanas, como a Campanha contra os Agrotóxicos, fustigam, pelo lado da saúde pública.
Do lado das políticas públicas, há claramente redutos de proteção da contra-hegemonia no campo – educação popular, saúde pública, meio ambiente, previdência social, segurança alimentar etc. – e uma política de governo – o Programa de Aquisição de Alimentos de Agricultura Familiar. Porém, tais campos de ação do Estado não são articulados para estabelecer limites à estratégia do agronegócio, pelo contrário. Falta um projeto estratégico de desenvolvimento da agricultura familiar, com autonomia em relação à economia do agronegócio.
Dependendo da evolução da crise externa, o(s) projeto(s) de desenvolvimento contra-hegemônicos tornar-se-iam viáveis ou não, a depender da mobilização social e das respostas políticas do governo. Até o presente temos tido respostas no sentido negativo, aprofundando o pacto do agronegócio.
Guilherme C. Delgado é doutor em economia pela Unicamp, economista aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.