Países árabes e Ocidente: dois mundo ligados
O mundo árabe nasceu de um cisma do mundo ocidental, e por muito tempo o Islã foi entendido como heresia cristã. De lá para cá, o destino dos dois mundos permaneceu ligado: forças postas e indissociáveis. Irmãos mais ou menos gêmeos, estão condenados a viver junto, necessitam um o outro
Flanqueando o sul da Europa há treze séculos, o mundo árabe – bloco heterogêneo e povoado por uma centena de milhão de pessoas – é para ela um enigma. Em contraste com o mundo cultural e político da Índia ou do Extremo Oriente, trata-se de um universo próximo e, no entanto, longínquo; um irmão inimigo, semelhante mas também diferente, a ponto de representar em muitos aspectos o negativo de uma fotografia.
O mundo árabe nasceu de um cisma no mundo ocidental. Não é sem sérias razões que os medievais viram no Islã uma heresia cristã.
No ecúmeno helenístico e romano, eram claras as diferenças culturais entre o Oriente e o Ocidente, o sul e o norte do Mediterrâneo. Mas a conquista do Oriente e do Sul pelo Islã consolidou as diferenças, fixou fronteiras de evolução divergente. A situação medieval de oposição entre os dois blocos ideológico-políticos – que para os europeus, ignorantes do que se passava para além do Islã até as invasões mongóis do século XIII, constituíam praticamente as duas metades da humanidade – evoca muitas vezes a atual divisão entre bloco capitalista e comunista.
É significativo que, segundo afirmam os musicólogos, a música ocidental da Alta Idade Média seja parecida com a música árabe atual. A decolagem da Europa cristã, já em certo nível no final da Idade Média, e depois durante a Revolução Industrial, consumou a divergência, enquanto as diferenças culturais primeiras estavam sacralizadas pelo Islã. Todo o mundo muçulmano começou, no século XVI, a ser visto como verdadeiramente subdesenvolvido, ao passo que outrora havia sido considerado, em muitos aspectos, como o suntuoso preceptor dos europeus, iniciador de suas ciências, técnicas e modas. Esse foi também o momento em que a etnia árabe foi duravelmente ofuscada, do ponto de vista do poder político, detido sobretudo pelos turcos.
Nessa época se fixaram, sobre o fundo da rivalidade ideológica medieval, os estereótipos até hoje vivos na representação europeia: beduínos, saqueadores, sultões suntuosos e luxuriosos, cuja imagem se perpetua nos atuais príncipes do ouro negro. Mas, num dado momento, no século XIX, com as veleidades de apoio a Estados do domínio árabe (realizadas ou não) por potências europeias contra o Império Otomano, esboçou-se certo reconhecimento e compartilhamento. Europeus e árabes confraternizaram e colaboraram no interior do continente negro.
Feridas do colonialismo
Tais veleidades fracassaram diante do poder das forças que conduziam a Europa a uma política imperialista máxima. O período colonial acumulou ressentimentos.
O conhecimento cada vez mais avançado do modelo europeu fez crescer, a um ponto extremo, as aspirações reprimidas durante séculos ou milênios, mostrou de repente que sua realização estava no domínio do possível, colocando fim à era da resignação.
A descolonização tão esperada, na qual tantas esperanças messiânicas foram investidas, veio afinal. Seus limites, e ainda mais as desilusões que sempre seguem os objetivos superestimados, só poderiam aumentar a virulência das aspirações.
Ao colonialismo sucedeu o neocolonialismo, efeito normal de uma hegemonia econômica e técnica da Europa, diante de uma industrialização limitada, lenta e que se choca com obstáculos que, em curto prazo, podem parecer intransponíveis. A persistência e vigor ofensivo de uma colônia europeia – Israel – que o mundo europeu não podia deixar de apoiar, agravou os rancores. Essa é a base indelével da situação atual. O destino dos dois mundos está ligado: par de forças opostas e indissociáveis. Os irmãos mais ou menos gêmeos não podem destruir um ao outro. Estão condenados a viver junto. Precisam um do outro, como se vê claramente no caso do petróleo.
Mas essa convivência é desigual, e assim permanecerá por muito tempo, segundo qualquer previsão possível. Sempre se pode apelar a iniciativas compartilhadas. É curioso encontrar, entre autores que se declaram mais ou menos inspirados pelo marxismo – Frantz Fanon sendo o mais autêntico, o mais sincero –, admoestações à Europa, convidando-a a ceder uma parcela de seu poder. Mas, se há uma lição de Marx que subsiste – e que todos os realistas políticos já conheciam antes dele – é que os privilegiados não abdicam de seus privilégios, nem as forças de sua força, diante de recriminações verbais ou apelos fundados na moral. Enquanto existir a diferença de nível das forças, subsistirá a hegemonia do mais forte.
Porém, mesmo no mundo atual, os mais fracos não estão desarmados. Por muitas razões, a recolonização é impossível (por enquanto?).A versão neocolonialista da hegemonia tem de ceder algo à autonomia local. Os governantes autônomos têm de considerar as aspirações de suas massas.
O resultado é uma situação contraditória na qual o Ocidente não pode reconhecer, nesse mundo aparentado, mas também rival, os valores que lhe são caros, não importa quão profunda seja a simpatia que despertem. Quanto mais os regimes árabes se mostrarem flexíveis em relação à hegemonia ocidental, mais terão de fazer com que o povo aceite os efeitos nefastos dessa hegemonia, através de meios cuja utilização trans-histórica mostrou eficácia superior em casos graves: o recurso às ideologias étnico-nacionalistas e religiosas enraizadas na tradição. Daí o domínio, pelo menos aparente, de uma tonalidade cultural medieval – ainda que as classes ricas se salvem pelo cinismo e hipocrisia; ainda que pequenos países com localização excepcional, como o Líbano, possam escapar a essas consequências; ainda que, enfim, as classes desfavorecidas tenham de retomar cada vez mais, em sua contestação da ordem estabelecida, os valores da crítica ocidental (como afirmou Abdallah Laroui1).
Se, no entanto, alguns regimes quiserem seguir pacientemente rumo à liquidação da hegemonia ocidental para a lenta construção de um poder econômico, eles terão de recorrer, durante o longo período de austeridade que isso pressupõe, aos mesmos meios ideológicos (versão argelina). Ou podem decidir corajosamente correr o risco de utilizar novas ideologias revolucionárias no plano cultural, entre outros, oriundas elas também, em última análise, da crítica ocidental, mas profundamente remanejadas, adaptadas, elaboradas pelos mais determinados adversários extremo-orientais da hegemonia ocidental. É a escolha do Iêmen do Sul, que não se sabe ainda se irá sustentar-se e difundir-se.2 Isso implica um sistema de valores que pareça pouco atraente para os ocidentais, pelo menos no momento, já que o Ocidente não sofrerá uma profunda revolução. Se jamais sofreu alguma.
A conversa sobre direito à diferença é vã. Os direitos só se proclamam por sua conquista quando podem ser conquistados. Diferenças não se postulam. Elas se realizam e, muitas vezes, se marcam precisamente onde menos esperamos, onde não as queremos. Às vezes são respeitáveis, às vezes não. Mas os homens, a sociedade que formam, a cultura que constroem, isso sim, é respeitável. Temos de viver com eles como são, e não como gostaríamos que fossem, parecidos ou diferentes, e frequentemente diferentes por serem, no fundo, semelhantes.