Palavras de Samuel
Uma crítica liberal do liberalismo do mercado brasileiro.
Há alguns dias a sociedade brasileira assistiu ao vídeo de um secretário de governo com retórica, ideias e estética nazifascistas. Foi estarrecedor. Em matéria de Julia Moura publicada em 17 de janeiro na Folha de S. Paulo, o economista Samuel Pessôa disse ter pensado se tratar de fake news. Analistas, ele incluso, apontaram que o mercado financeiro, no entanto, não reagiu – e, acrescento, não era de se esperar nada diferente. Em sua fala para Moura, Pessôa disse que sentiu “vontade de vomitar” ao ver o vídeo e que pensou se tratar de “um cara maluco”, mas que, no final, a questão é “moral” – logo, “privada” em seu entender -, o “mercado não tem posição política” e as instituições têm constrangido o presidente da República, de sorte que a democracia não está em risco.
Tenho refletido sobre a fala do economista e compartilharei neste artigo algumas ideias a respeito. Para tanto, tomo a liberdade de chamar Hannah Arendt para a conversa.
Como Pessôa certamente sabe, Arendt foi uma mulher experimentada em matéria de nazismo, e também uma erudita. Dominava o latim e o grego antigo, o francês, o inglês e o alemão, sua língua materna. Esses seus recursos nos ajudam a entender uma de suas formas de proceder: a partir da etimologia. Em vários de seus escritos, Arendt parece escavar as línguas buscando rastros de uma experiência original sob os escombros do registro das palavras no vernáculo. Ela procede assim com “moral”, que lembra derivar do latim mores, costumes, e a palavra “ética”, derivada do grego antigo ethos, em que tem acepção semelhante, significando hábito. Pode-se distinguir hoje entre moral e ética, e há alguma divergência na filosofia sobre qual das duas é relativa a princípios e qual a atitudes individuais, mas nenhuma delas é considerada pertinente à esfera privada propriamente. Mesmo que elas encerrem questão de consciência, remetem às relações sociais, à dimensão compartilhada da vida, em que se estabelecem valores, padrões apropriados de conduta e parâmetros que nos ajudam a julgar.
Destruição da esfera privada
Dito isso, quero dar um passo adiante em nossa conversa e pensar o caráter público da moral, pois uma característica específica do totalitarismo é a destruição da esfera privada, com a politização total da vida. Penso que esta inclusive pode ser uma pista para entendermos como chegamos a eleger um apologista de torturador e milícias à Presidência. Uma das implicações da destruição da esfera privada, para Arendt, é a retirada das condições de possibilidade para o pensamento, que requer a solidão. É importante ter claro esse fenômeno porque vivemos em um mundo em que não só o totalitarismo é possível, mas elementos totalitários estão presentes em sociedades democráticas. Ou seja, ninguém está em condições de negligenciar práticas totalitárias em seu seio sem correr risco. Para Arendt, o totalitarismo era um perigo tão real que seu pensamento foi se tornando consistentemente comprometido ao longo do tempo com a não-repetição das práticas nazifascistas e stalinistas. E sua repetição de fato nos espreita porque, como Arendt alertou em carta a Gershom Scholem, o mal se espalha como um fungo pela superfície, ou, em outras palavras, é um processo rápido, corrosivo e não imediatamente evidente.
Já na década final da sua vida e sob o impacto do julgamento de Adolf Eichmann, Arendt se dedicou a refletir sobre como se dá tal proliferação corrosiva, inclusive em sociedades de maioria culta e democráticas. Esse seu esforço levou-a a examinar o que chamou de atividades da vida contemplativa: o pensar, o querer e o julgar. Para o que estamos discutindo aqui interessa o par pensar-julgar, que abrange o esforço por compreender os acontecimentos, buscar sua particularidade e seu sentido, distinguir o certo do errado, ou separar o joio do trigo, e isso com o que um Kant descreveu como “mentalidade alargada”: representando para si outras perspectivas, sejam elas reais ou imaginadas. Trata-se, em alguma medida, de um processo individual e representacional, que desde Platão se tem definido como um diálogo de si consigo mesmo; mas as condições em que ele se dá, a forma que assume, desautoriza a tomar deliberações morais como questões privadas. Quando tentamos entender, perceber as diferenças, compreender a sua importância em cada situação, perceber o certo a fazer, colocamo-nos em contato íntimo e intenso com o mundo, entendido como uma grande teia em que todos estamos suspensos, pendentes de suporte material. Pensando e julgando, nós representamos esse mundo para nós mesmos a fim de nos ajustar a ele, de perceber o que é melhor para ele, e assim assumimos responsabilidade por ele.
Para Arendt, entender e julgar é fundamental porque o totalitarismo se relaciona com o que ela mesma considerou uma explosão de nossas categorias de pensamento político e padrões morais de julgamento. Essa explosão tem dois efeitos importantes: (1) o pensar e o julgar se tornam mais difíceis quando mais necessários e (2) a lógica, a racionalidade científica, substitui o entendimento no espaço público, em que os assuntos comuns são debatidos.
Origens do totalitarismo
O primeiro efeito nos convida a olhar para a subversão do direito desde dentro que ocorreu na Alemanha e que Arendt descreve tão bem nas suas Origens do totalitarismo, onde mostra como “Matarás!” se tornou um mandamento enquanto as instituições funcionavam. Essa transformação aconteceu com o concurso de “caras malucos”, homens inteligentes que se recusavam a ver que o impensável acontecia diante dos seus olhos, bem como se recusavam a ver o apoio de agentes econômicos. Arendt logo percebeu do que se tratava, teve tempo de fugir e alertar amigos para que saíssem da Alemanha.
Hoje, quando olho menos para as instituições e mais para a vida cotidiana, as horas do dia e as conversas em sala ou no transporte público, entendo melhor a sua argúcia do que quando a li em outros momentos. A vida cotidiana no Brasil piorou. A violência ganha terreno, a liberdade de expressão está em risco, os fatos são contestados diária e sistematicamente pelo presidente, seus ministros, seus assessores e defensores entusiasmados (tanto é que Pessôa e outros colegas seus supuseram que o vídeo fosse fake news ao primeiro contato com a peça). Tenho a impressão de que se subestima tal prática presidencial, e penso ser temerário fazê-lo.
Hannah Arendt abordou o problema muito antes do advento das mídias sociais, mostrando que a contestação de fatos básicos, fatos históricos como a escravidão, é um sinal de que não se compartilha mais o mesmo mundo e a mentira pode ter sido organizada para destruir verdades factuais. O espaço que o terraplanismo e as contestações infundadas do aquecimento global têm encontrado entre nós ainda permitem aprofundar a reflexão de Arendt. Mas, em qualquer caso, que conversa é possível nessas condições?
O mercado politicamente desinteressado e destituído de moral
Quanto à substituição do entendimento pela lógica, ou seja, pela racionalidade do conhecimento científico, ela nos ajuda a examinar criticamente o lugar de economistas no debate público e distorções decorrentes de seu protagonismo. Para Arendt, o fenômeno é um problema porque significa a substituição da busca pelo sentido, que aponta para o mundo, pela consistência interna, que independe dele. Penso que essa é uma questão real quando se passa da análise para a justificação, e essa linha me parece vir sendo cruzada (1) ao se construir o mercado como politicamente desinteressado e destituído de moral; (2) ao se separar reiteradamente economia de política para todos os fins, em qualquer contexto; e (3) ao se tomar como fato isolado um discurso violento proferido por uma autoridade com apoio do presidente da República que circulou por canais institucionais, seja atribuindo-o à insanidade, seja relegando-o à privacidade.
O mercado a que Pessôa se refere tem apoiado Bolsonaro desde a campanha. Imagino que liberais como ele entendam que têm apoiado, mas não é por afinidade de ideias, e, sim, por pragmatismo. Essa análise – um argumento, na realidade – tem, contudo, dois problemas, a meu ver: primeiro, o utilitarismo é uma moral, mesmo quando sustenta práticas imorais, e, segundo, o que importa é o que os agentes fazem, não as suas motivações. Manter uma postura acrítica, muito além de analítica, em relação ao mercado contribui para normalizar as suas práticas, naturalizar a ficção de que ele é apolítico e amoral, e empresta realidade à ideia de que a agenda econômica do governo está descolada de sua política em outras áreas e de sua retórica violenta. Ora, se está, não será ao menos em parte porque economistas dão uma contribuição diária para isolá-la?
O convite que Arendt nos faz não é, claro, por abrir mão do conhecimento científico, mas por buscar seu sentido, olhar para seus efeitos no mundo e, em última instância, reconhecer a precedência desses efeitos em relação à força compulsória da lógica. Trata-se, por exemplo, de validar o conhecimento junto ao público sem precisar apelar unicamente à coerção da verdade ou ao valor intrínseco do econômico. Hannah Arendt foi uma defensora de direitos e liberdades, e foi crítica do capitalismo, sem ser socialista. Para ela a economia deveria ser instrumental, estar a serviço da liberdade e da igualdade, a serviço da política, em suma, e não colonizar a vida pública. Hoje temos a oportunidade de ver o quão justificada era essa sua preocupação.
Como na Alemanha de Arendt, um problema no caso do Brasil atual é que há “caras malucos”, como o demitido secretário do vídeo, entre outros, e caras inteligentes, para todos os efeitos ao lado deles, que parecem se recusar a ver a possibilidade de o impensável suceder, mesmo diante dos perigos presentes em nosso cotidiano. Um recurso de Arendt, seja para entender o que acontece, seja para encontrar formas de ação, é a imaginação. Trata-se de afastar o que está próximo e aproximar o que está distante, até que se torne um assunto nosso, que nos toca e interessa pessoalmente. Então, parafraseio Arendt, podemos dar forma a um salomônico coração compreensivo.