Papo reto, felicidade é ver meu livro na rua!
Cria da Festa Literária das Periferias, o autor de O Sol na Cabeça anseia pelo dia em que a mídia olhará mais para a agenda cultural das favelas e escritores como ele deixarão de ser tratados como exceção ou novidade
Em sua primeira crônica para um grande jornal, no qual recentemente ganhou uma coluna, Geovani Martins escreveu sobre a timidez. Contava sobre o aniversário do sobrinho, da constrangedora camisa de família — aquela que indica o grau de parentesco com o aniversariante — que se sentia coagido a usar, e de repente pronto: nos vemos numa reflexão sobre a vaidade dos tímidos e como ela seria o verdadeiro anticlímax, que impede uma coreografia do macarena, uma foto com um homem fantasiado de galinha pintadinha, ou então uma camisa estampada na festa do sobrinho, e acaba decepcionando, mesmo que não intencionalmente, as pessoas que nos cercam. Tudo assim, fluído, misturado, mas também natural. Complexo, como são as pessoas.
Geovani escreve simples, mas não há nele e em sua escrita nada de fácil. Apesar do ritmo acelerado que suas palavras imprimem, as vezes é preciso tomar uma pausa antes de continuar lendo. Por isso talvez tenha sido um feliz acaso que seu primeiro livro, O Sol na Cabeça, seja uma coletânea de treze contos e não um romance, como pensou inicialmente ser o ideal para um estreante. A cada conto, uma nova perspectiva de uma multifacetada realidade. Violência policial não é só tortura nas vielas e corpos queimados que ninguém sabe onde foram parar; é também o dinheiro da conta de internet dado de bom grado para “os vermes” se não quiser ir pra delegacia com flagrante forjado. Racismo não se resume a um insulto verbalizado, mas muitas vezes ao olhar furtivo de quem cruza apressado para o outro lado da calçada, a bolsa mais apertada contra o peito.
Nas páginas de O Sol na Cabeça a violência não é simplista — é profunda, enraizada e estrutural, mas tampouco só dela se faz também a favela. Geovani explora diversas outras questões desse universo que, segundo ele, não cabe no rótulo de periferia — pelo menos não no Rio de Janeiro, onde as pessoas vivem, trabalham e consomem ali dentro, onde a favela gira em torno de si mesma. Ele fala do sincretismo religioso que muitas vezes divide lugar com a intolerância, quando o terreiro se torna cada vez mais vazio e o morro é tomado progressivamente por inúmeras igrejas evangélicas. Fala também do trânsito na cidade, das angústias da infância, do peso das responsabilidades.
Nesta entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Geovani relatou os caminhos que o levaram à literatura e volta a reafirmar essa complexidade e também riqueza cultural das favelas, quase sempre sem espaço na mídia. Conversou sobre a relação opressora com a educação formal, sobre a Festa Literária das Periferias, sobre mudanças e privilégios. Sobre esse improvável conjunto de experiências que o tornaram escritor, hoje um dos autores mais vendidos da Companhia das Letras e lido das rodas de literatura especializada às rodas culturais das favelas.

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL Como foi seu primeiro contato com a literatura e com a escrita?
GEOVANI MARTINS Eu tive contato com a literatura desde muito criança mesmo, aos cinco, seis anos já me interessava muito por histórias em livro. Agora começar a escrever eu não cheguei a pensar sobre isso, na verdade, comecei a fazer naturalmente. Quando eu cheguei na adolescência comecei a vislumbrar uma possibilidade daquilo ser bom o suficiente para eu mostrar para os outros e me orgulhar do que eu estava fazendo. Comecei a postar as coisas que eu escrevia na internet e sempre tinha um retorno bom de comentário, as pessoas sempre falavam comigo dos textos quando me viam na rua. Eu fazia muita crônica na época e me dava um orgulho, uma perspectiva também, de eu gostar do que fazia e as pessoas estarem gostando também. Depois de já escrever há alguns anos eu comecei a tratar a coisa com mais seriedade, e aí quando fui participar da Flup [Festa Literária das Periferias] pela primeira vez foi quando realmente cheguei a acreditar que eu podia viver de livro, fazer livro para ser a minha profissão. Acho que o primeiro movimento foi esse, de eu passar de alguém que gosta muito de escrever, para alguém que começa a pensar “pô, se eu gosto de fazer isso, porque não fazer só isso?”
E a educação formal, o que representou nesse processo? Ela também te colocava em contato com a literatura?
Eu tive uma passagem meio esquisita pela escola. Repeti muitas vezes, não tinha muito contato com histórias assim na minha educação formal. Quando eu cheguei na escola eu já me interessava por livro e segui assim a minha vida toda, mas o ambiente escolar de certa forma me oprimia, ele deixou de fazer sentido muito cedo para mim. Então eu não lembro de alguma referência literária que eu tenha absorvido na escola. É lógico que nos livros didáticos tinha, textos do Drummond, por exemplo, mas eu não lia os livros didáticos, então … (risos) Mas eu já estava lendo Drummond, já estava lendo Machado. Lembro que eu lia por vontade própria livros que minha irmã no ensino médio era obrigada a ler. Ela tinha que fazer um trabalho sobre A morte e a morte de Quincas Berro d’água, estava puta de ler o livro, e eu tava amarradão lendo. Talvez a formação da minha irmã tenha me apresentado mais autores do que a minha própria, porque eu não cheguei a fazer o ensino médio. Acho que o que de mais importante que a escola me deu foi o convívio social, os encontros, as pessoas que eu conhecia e tudo e talvez alguma coisa de bagagem cultural, mas aí muito pela minha curiosidade junto com os meus amigos.
E como você enxerga essa sua relação com a escola? Acha que ela representa algo de estrutural sobre a educação?
Acho que é estrutural, e me deixa muito triste pensar que eu saí das escola faz mais de dez anos, mas pelo o que acompanho vejo que muitas vezes os métodos continuam parecidos, e o mundo já mudou tanto nesse tempo. Quando eu estava na escola o mundo que a gente vivia já era diferente do que estava sendo apresentado. Lembro quando eu estava na sexta, sétima série, os livros de geografia falavam muito de uma popularização da internet, a nova ferramenta do milênio e nao sei o quê, mas estava todo mundo careca de usar a internet já, o bagulho já tinha fluído. Já tinha dado certo, ou não, mas já estava muito difundido, e o livro estava tratando como uma novidade, porque era de sei lá, 1995. Quer dizer, eu acho que não foi só comigo. É uma coisa estrutural e alguns acabam percebendo, outros não. Outros acabam meio engolidos também, nessa dinâmica de se formar, procurar um emprego… Acho que essa foi o que pegou mais para mim, eu ficava questionando “Porque eu to fazendo isso de verdade? Me formar em quê, arrumar um emprego em quê?” Foram questões que apareceram muito cedo, aí o meu interesse foi só diminuindo.
E os movimentos e eventos literários da periferia, onde você de fato começou a escrever profissionalmente, o que representaram para você?
Bom, eu conheci a Flup já no primeiro ano dela, em 2012, mas fui participar só no outro ano, porque naquele eu estava trabalhando nos dias. Eu soube porque eu fazia parte de uma companhia de teatro na Gávea e o diretor, o Márcio, falou “cara, to lendo os seus textos no blog e tal, você tinha que fazer a flup”. Eu não consegui participar mas ele ficou com essa, de que era para eu ir no outro ano. Aí foi isso, eu fui para a Flup em 2013, conseguimos dar um jeito assim de eu não trabalhar nesses dias e tudo. A Flup representou algumas coisas muito importantes na minha formação como pessoa e como escritor, e coisas que estão muito claras no livro [O Sol na Cabeça]. A primeira delas acho que foi o despertar do meu interesse para as histórias que estavam a minha volta. Porque eu sempre gostei muito de ler e escrever, mas eu lia uma literatura que não dizia nada a respeito da minha realidade. Eu lia outros mundos, o que era interessante, mas o que acontecia era que quando eu ia escrever meio que tentava reproduzir aquilo e mirava meus textos para muito distante de mim. A Flup me deu essa percepção do quanto era rico esse universo que estava a minha volta, e o que eu podia trabalhar com ele, e inventar em cima dele. Abriu meus olhos para isso e para meu lugar como cidadão também, não só como escritor, de me afirmar naquele território e entender a riqueza que aquilo tem. Outra coisa foi a chance de conhecer escritores, todos nesse mesmo processo de querer se profissionalizar, escreve e publicar, fazer essa correria que é a literatura. E mais uma coisa fundamental que a Flup me proporcionou foi o deslocamento pela cidade também. No ano que eu participei, em 2013, ela acontecia todo sábado, e todo sábado era em uma favela diferente. Devo ter frequentado uma quarenta favelas diferentes. Então quer dizer, todo sábado eu estava em contato com um lugar diferente, costumes diferentes, pessoas falando diferente. Esse trânsito foi fundamental para fazer esse livro e fundamental para as questões que me interessam hoje em dia, e a Flup me deu isso também. Além de ter me publicado pela primeira vez. Ver um texto meu ser publicado, lido por outros autores, foi realmente muito importante esse momento.

Antonio Prata escreve na orelha do livro que chegará um momento em que sua biografia não será mais importante quando se falar sobre sua produção. Você concorda com isso? É possível em qualquer momento que seja dissociar a obra de quem é o autor?
Acho que isso é uma questão muito mais de narrativa jornalística do que outras coisas, não acredito que isso passe pelas minhas mãos. Eu, no meu interesse pessoal, normalmente gosto de saber sobre a vida dos autores que eu leio. Se tiver biografia sobre eles eu vou querer ler, se eles mesmos tiverem escrito a biografia, como é o caso do Neruda, melhor ainda. Agora acho que a pergunta que você me fez vai muito mais para pensar as narrativas dos jornais hoje em dia. Você falou do Prata, eu não sei onde o Prata nasceu, por exemplo, e eu já li livros dele. Quer dizer, está muito mais ligado a como você vende esses autores, como você apresenta. Porque logo no meu livro todo mundo sabe de onde eu vim, porque ninguém sabe onde o Prata nasceu? Na minha visão pessoal, os livros meio que se completam quando você sabe a história de quem escreveu, o contexto onde ele estava inserido, tudo isso pra mim enriquece o livro. O que eu estou querendo dizer é que para mim todos os livros deveriam ter esse tipo de conexão de tempo e espaço social, e nem todos têm. Por exemplo, sobre o livro do Jessé [Andarilho] foi muito explorado o fato de ele ter escrito no trem, até porque não tinha como não explorar aquilo, mas aí tem uma série de outros autores que eu não sei como é que foi o processo de escrita. Então acho que tem muito a ver com como os jornais lêem esses autores e apresentam eles. Eu estava falando outro dia que o único jeito de isso ficar menos latente é quando a própria mídia tradicional começar a olhar a agenda cultural das favelas e periferias com mais constância. Eu digo isso porque já participei da Flip três anos, já tinha sido publicado umas quatro vezes em revista e tudo, e mesmo assim eu apareço e parece que eu sou uma grande novidade, tá ligado? E não, eu já estava ali há alguns anos, tentando fazer o que eu estou fazendo agora. Isso vai deixar de ser uma coisa fundamental da notícia, do tipo “escritor da favela e tal”, se a própria mídia começar a olhar as agendas culturais da cidade toda, quando ela começar a prestar atenção nesses movimentos, na crescente desses autores.
Em algumas entrevistas você disse que pensava em um primeiro momento em ser compositor, porque gostava de arte mas achava que literatura era um caminho mais difícil. Qual diferença você enxerga entre a recepção de pessoas negras e da periferia na literatura e em outros campos da arte?
Olha, eu acho que isso tem muito a ver com a perspectiva da pessoa. Eu cresci vendo muitos músicos, compositores, mas eu nunca tinha visto um escritor profissional. Quer dizer, o escritor era uma pessoa muito distante para mim, e daí essa noção de que fazer música seria um caminho mais possível. Depende muito do que você enxerga como possibilidade, principalmente na infância e adolescência. Isso é uma coisa que eu devo muito a Flup também, foi ter me apresentado outros escritores que já publicavam e eu poder ver que eles eram pessoas normais, que estavam trabalhando, tinham um processo de trabalho, entender um pouco mais e me aproximar dessa realidade. Acho que hoje em dia viver de música e viver de literatura é igualmente difícil, o que pega mesmo é o que você tem como referência. Como estão surgindo muitos outros escritores, de vários lugares da cidade, acho que a tendência é que isso reverbere de maneira positiva. Por exemplo, muita gente veio falar, depois que eu lancei meu livro, que também estava com um livro de contos para fazer, que tinha se animado, porque antes estava na mesma onda que eu de que precisava escrever um romance, e ver o meu livro de contos rolando bem ajudou.
Você falou sobre o fato de ter conhecido outros escritores ter ajudado a entender a profissão e os processos de trabalho. Como funciona o seu processo de escrita? Como você cria seus personagens?
Quando você está fazendo ficção se sente meio poderoso, no sentido de poder fazer tudo, e é o que eu tento fazer. Tem o livro e o texto que você escreve, e tem a expectativa do texto, a expectativa do livro. Então eu chego para escrever com essa expectativa do livro, a expectativa do personagem que eu quero contar, e depois a gente vê como isso se materializa. Quando eu digo que a gente pode fazer tudo é porque você está ali com essas ferramentas biográficas, histórias suas, dos seus amigos, dos seus familiares, você está com a sua imaginação, com referência de filmes, músicas, e você pode usar aquilo tudo como ferramenta para elaborar seu texto, e isso é o mais maravilhoso na ficção, é sempre tudo se misturando. Vejo meu trabalho como uma costura de muitos momentos, de muitas tensões que eu tento amarrar. Nesse livro eu tive dois processos muito marcados. Um deles era eu pegar uma história que aconteceu de fato com alguém e a partir dessa história inventar uma série de situações e personagens, para poder sustentar e ajudar na estruturação dela, tudo com muita liberdade. E essa foi uma das coisas que eu fiz muito, fiz na Viagem, na Estação Padre Miguel, na Travessia, em vários pontos que eu parto de uma coisa que realmente aconteceu e faço o que eu quiser. E aí a outra coisa que rolou era eu querer falar muito sobre algo específico, como eu falo no Rolézim sobre a dificuldade do trânsito na cidade e as tensões que isso pode criar e tudo. Eu tinha essa história pra contar, esse tema para abordar, e dentro do tema cabem um milhão de histórias, umas reais e outras que eu inventei. Por isso eu falo dessa liberdade, está tudo ali para usar para andar tua história, para poder construir tua personagem.

O que a intervenção federal tem representado para você? Ela é muito diferente do que já se vivenciava com as UPPs?
Olha, no Vidigal a intervenção federal é nula, na verdade. Para mim, como morador dali, não tem nada. Agora como cidadão do Rio de Janeiro, que está atento a outras coisas, eu estou ouvindo o que as pessoas tem a dizer. Eu sei que eu não estou com a mesma tensão que eu estaria se eu não estivesse trabalhando tanto assim, eu estaria dando uma atenção diferente para o tema. Mas o que eu vejo é que as pessoas estão bem infelizes, uma série de abordagens humilhantes principalmente na zona oeste da cidade, e o principal argumento, e isso eu vejo e concordo, é que eu não enxergo esse ponto onde foi marcado “ah, agora precisamos de uma intervenção militar por conta da violência”, e muitas pessoas não enxergam esse aumento da violência nesse momento também. Acho que está realmente como esteve há muitos anos, então acaba sendo impossível não atribuir a questões políticas, para além de questões de segurança. Enxergo como uma decisão muito mais voltada para questões políticas, até porque a gente sabe que o medo rende muito voto. Você vê miliciano sendo eleito, militar sendo eleito com base numa cultura que alimenta o medo. Agora como o morador do Vidigal, para mim a intervenção não acontece. O Vidigal é a favela mais cara do Rio de Janeiro, então a gente sofre menos do que em outros lugares. Eu tenho ali uma certeza de que ninguém vai entrar na minha casa, e uma certeza que eu não poderia ter em outro lugar. Eu não vi mudança nenhuma, mas eu sei que isso é um privilégio meu, de poder morar ali, de ter escolhido e de ter essa condição.
E como está a recepção do seu livro quanto ao público? Ele está alcançando todas pessoas que você gostaria que alcance?
Tem sido muito bom, até porque isso sempre foi uma questão para mim. Eu acreditava que o livro tinha potencial de ser muito lido e muito discutido, mas eu tinha muito medo de ele ficar restrito aqui ao público da Flip, ao público literatura especializada, literatura contemporânea, universidade, enfim. E felizmente ele tem sido muito lido em escola pública, nas favelas, nos interiores do Brasil. Recebo mensagem de cidades que as vezes eu nunca nem tinha ouvido falar e estão lendo esse livro, isso me deixa muito feliz assim. Agora vai virar texto de livro didático, a gente tava falando disso, vai sair num livro de língua portuguesa (risos).
*Taís Ilhéu é jornalista