Para a África, produtos adulterados
A força de um sistema econômico agarra-se à sua capacidade de participar dos menores detalhes da existência e, em particular, de nossos pratos. Uma banal lata de extrato de tomate contém, assim, dois séculos de história do capitalismo. Jean-Baptiste Malet apresenta aqui uma pesquisa feita nos quatro continentes: uma geopolítica da junk food
O campo de tomates de 35 mu (2,3 hectares) fica perto de Wusu, uma cidade no norte de Xinjiang, na China, a meio caminho entre a capital regional, Urumqi, e o Cazaquistão. Entre uma centena de trabalhadores da colheita, a maioria migrantes de Sichuan e alguns uigures, uma jovem de 14 anos ergue o facão acima da cabeça e, num movimento seco, corta um pé carregado de frutos maduros. Ao seu lado, um trabalhador recolhe a planta folhosa e a agita vigorosamente. Os tomates caem no chão com um pequeno ruído surdo. Pouco a pouco, linhas vermelhas e verdes se desenham no campo. Em intervalos regulares, homens e mulheres se agacham e vão enchendo grandes sacos de lona plástica. Nenhum deles é assalariado: para cada saco de 25 quilos, cada um recebe 2,2 yuans, o equivalente a R$ 1,05. “Minha mulher e eu chegamos a colher juntos até 170 sacos por dia”, avalia um trabalhador. Ou seja, R$ 89 por pessoa: dez vezes mais que no início dos anos 2000. Mas os trabalhadores da colheita enfrentam uma concorrência cada vez maior com máquinas importadas da Itália.
Em um canto da plantação, Li Songmin monitora a colheita. Seus tomates serão entregues por caminhões, à noite, em uma fábrica da empresa Cofco Tunhe. E depois? Ele não sabe. Arrendatário da parcela, Li não contrata pessoalmente nenhum dos trabalhadores da colheita, todos recrutados por um “fornecedor de mão de obra”. A Cofco Tunhe lhe fornece variedades Heinz de alto rendimento, que ele deve cultivar de acordo com um roteiro preciso, e garante a compra de sua colheita por um preço negociado.
A Cofco – sigla para China National Cereals, Oils and Foodstuffs Corporation (Companhia Nacional Chinesa de Cereais, Óleos e Produtos Alimentares) – é a principal empresa de processamento de tomate da China. Ela está entre as quinhentas multinacionais mais poderosas do mundo, segundo a revista norte-americana Fortune. O conglomerado reúne várias entidades criadas no tempo de Mao Tsé-tung, quando a Cofco era a única empresa do Estado autorizada a importar e exportar gêneros agrícolas. Sua filial Tunhe, especializada em açúcar e tomate industrial, detém quinze fábricas de processamento de tomate, onze delas em Xinjiang. Os barris de extrato que saem das indústrias são comprados por gigantes da indústria agroalimentar, como Kraft-Heinz, Unilever, Nestlé, Kagomé, Del Monte, PepsiCo, ou pelo grupo norte-americano McCormick, número um do mundo em temperos.
Encontrar a entrada dessas fábricas não requer grande esforço. Basta localizar o comboio de caminhões resfolegando sob o peso das carrocerias cheias de frutos vermelhos aquecidos pelo sol. Das instalações da Cofco em Changji saem todos os dias 5.200 toneladas de extrato. “Aqui só produzimos barris para exportação. Eles são enviados para a Europa, a América, a África e a Ásia”, indica Wang Bo, um dos diretores da unidade.
Postados em passarelas metálicas acima da plataforma de carga, operários de rosto reluzente lançam jatos de água em direção à carroceria dos caminhões. A massa de frutos vermelhos se afasta à passagem do poderoso jato e flui para dentro de uma canaleta. Assim os tomates escoam por um “rio” que lava a matéria-prima e a transporta até seu destino: retirada das cascas, das sementes, trituração, aquecimento. No final da linha, trabalhadores instalam sacos assépticos em barris metálicos azuis, que são ligados a um robô de enchimento fabricado na Itália, pressionam um comando e observam uma tela. Em poucos segundos, o saco de 220 litros se enche de extrato. “O processamento de tomate é uma atividade de baixa margem”, esclarece Yu Tianchi, o mais alto dirigente da Cofco Tunhe no que se refere a tomate. “É por isso que a Heinz compra nosso extrato. Assim, ela pode concentrar sua atividade em processamentos e produções com margens mais elevadas.” Transportado por caminhões até uma estação de trem de carga, o produto começa sua odisseia.
Primeira etapa: Tianjin, com seu porto e suas fábricas de conservas, do outro lado da China. A 3 mil quilômetros dos campos de Xinjiang, Ma Zhenyong, gerente da fábrica da Jintudi, empurra uma porta pesada. O hálito de um calor viscoso se espalha com um barulho. Em Tianjin não se processa tomate. Os barris de extrato de Xinjiang são retrabalhados e colocados em latas. Uma torrente de conserva densa, fumegante, escoa entre as máquinas sob luzes amareladas. Os braços dos trabalhadores dobram, esticam, estiram. A linha principal enche latas cilíndricas de 70 gramas, a menor unidade de acondicionamento. Uma cadeia auxiliar serve embalagens de 400 gramas. A fábrica funciona em três turnos de oito horas, exportando, por ano, o equivalente a cerca de 2 mil contêineres. O salário mensal dos trabalhadores estaria em torno, segundo Ma, de 500 euros, para 56 horas semanais.
De acordo com os rótulos das embalagens, o extrato produzido nessa fábrica contém apenas dois ingredientes: tomate e sal. Mas a indicação é enganosa. Na área da fábrica para onde é bombeado o conteúdo dos grandes barris, também há misturadores para tratar o extrato com aditivos, como fibra de soja, amido e dextrose. Para visitar essa sala, cujo acesso foi proibido por Ma, precisamos escapar de sua vigilância. Então pudemos ver um operário, elevado na plataforma de um batedor de massa, prestes a despejar no conteúdo vermelho grandes sacos de pó branco. Regado com um fio de água, o pó se transforma em uma massa. Na mesma sala, a poucos metros, quatro trabalhadores com máscaras e luvas manuseiam grandes recipientes cheios de uma mistura opaca alaranjada. São os corantes injetados no circuito de alimentação. Eles também não aparecem no rótulo. “Temos todas as certificações necessárias para uma empresa de produção de alimentos, inclusive a norma ISO 22000, obrigatória para empresas de exportação”, declara Ma em seu escritório. Na área de expedição, caixas de papelão vermelhas enchem os contêineres. Uma placa numerada sela a “grande lata”: rumo à África.
Em Techiman, na região de Brong Ahafo, em Gana, há centenas de camponeses que cultivam tomates. Chegado à África com a colonização, esse fruto agora faz parte da composição de muitos pratos populares ganenses e representa 38% dos gastos da população com legumes. Gana tem 90 mil pequenos produtores de tomates. Os números oficiais de 2014 falam em uma produção de 366.772 toneladas de tomate fresco. Mas, nos mercados de Techiman e seus arredores, eles não vendem muito. Já as baratas latas de extrato “made in China” são um sucesso.
Nos últimos vinte anos, as importações de extrato só cresceram na África. Em Gana, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), elas passaram de 1.225 toneladas em 1996 para 109.500 toneladas em 2013. Mais de oito a cada dez embalagens de extrato vêm do Império do Meio. Sozinha, Gana importou 11% do extrato de tomate produzido na China em 2014; a Nigéria, 14%. Mas é preciso entender o que isso significa. O produto destinado à exportação para a África não é um extrato puro, mas cheio de aditivos, uma mercadoria de segunda classe. Durante a edição de 2016 do Salão Internacional de Alimentação (Sial), em Paris, onde os maiores produtores de conserva chineses montaram um estande, nós passamos por um potencial comprador para saber os preços. Logo nos apresentaram uma tabela de preços para escolher a porcentagem real de extrato contido nas embalagens. E, embora aquelas destinadas à África geralmente tragam em seu rótulo a indicação “extrato de tomate concentrado”, a verdade é que elas contêm em média 45% de extrato e 55% de aditivos e corantes. “Para o mercado africano, a maior parte das empresas de conserva chinesas exporta produtos com aditivos, sem que isso seja indicado no rótulo”, confirma, de Parma, Armando Gandolfi, maior corretor de extrato de tomate do mundo.
Produto falsificado, custos divididos, triunfo comercial: “Até minha esposa compra extrato chinês, pois acha mais prático e mais barato do que os tomates frescos de Gana”, lamenta Kwasi Fosu, um agricultor de Techiman. “A cada ano, muitos de nós reduzem a área plantada.”
Após sua independência, em 6 de março de 1957, Gana se tornou um modelo de pan-africanismo e economia planejada. Seu primeiro presidente, Kwame Nkrumah, investiu em educação, saúde, infraestrutura; sua política “anti-imperialista” de industrialização tinha o objetivo de reduzir as importações. No início dos anos 1960, o país instalou duas indústrias de processamento para não desperdiçar o excedente de tomate que apodrecia durante a estação chuvosa. Depois, em 24 de fevereiro de 1966, um golpe de Estado militar apoiado pela CIA derrubou o presidente socialista e deu início a um longo período de instabilidade. Isso durou até 1979, quando chegou ao poder, por meio de outro golpe militar, o liberal Jerry Rawlings. Com o apoio das instituições financeiras internacionais, ele fez de Gana um modelo africano de Estado neoliberal. As duas indústrias de processamento foram fechadas no fim da década de 1980, após as reformas estruturais exigidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Hoje, são montanhas de sucata.
Na maioria dos mercados da África, pequenas bandeiras italianas adornam as latas de extrato. Elas exibem um simpático tomatinho de nome tipicamente italiano que sorri enquanto levanta os óculos de sol – a mascote da marca Gino. Em dez anos, a Gino, que oferece latas de 70 gramas a 2,2 quilos, ganhou o mercado africano. Seu sorriso bobo também pode ser visto no Haiti, no Japão, na Coreia do Sul, na Jordânia, na Nova Zelândia… Distribuído pela multinacional indiana Watanmal,1 o extrato Gino enfrenta a concorrência da Tasty Tom, marca distribuída pela Olam, multinacional de Cingapura. Mas os dois grupos há muito tempo se abastecem nas mesmas empresas de conserva de Tianjin.
Para promover a Gino, a Watanmal intensificou as campanhas publicitárias em todos os meios possíveis, chegando a fazer murais de publicidade em inúmeras aldeias da África. Ninguém, ou quase ninguém, consegue viver em Gana sem ver diariamente os enormes cartazes que promovem as marcas de extrato distribuídas no país. A Watanmal também se comunica por meio da Gino Celebrate Life Fund, uma fundação de caridade. Na Nigéria, onde, após mais de dez anos de presença, a marca domina o mercado, em detrimento dos produtores locais de tomate, a fundação dedica-se a “melhorar a vida”: ela financia operações de catarata. “Obrigado, Gino, agora eu posso cuidar da minha família”, declara um beneficiário da operação em um vídeo promocional, logo seguido por outro: “Deus abençoe a Gino!”.
*Jean-Baptiste Malet, jornalista, é autor de L’Empire de l’or rouge. Enquête mondiale sur la tomate d’industrie [O Império do Ouro Vermelho. Pesquisa mundial sobre o tomate industrial], Fayard, Paris, 2017.