Passado, presente e a irreversibilidade da verdade
A demonstração de como o ex-presidente Ernesto Geisel conhecia e buscou controlar a execução de oponentes ao regime militar lança luzes não apenas sobre os fatos em si considerados, mas parece indicar ainda uma alternativa para os historiadores e pesquisadores para a investigação e conhecimento da verdade histórica relacionada ao período, com resultados que podem ser sempre surpreendentes e aptos a lançar luzes sobre acontecimentos cujas interpretações históricas podem gerar relevantes reviravoltas
Escreveu a filósofa argentina María Inés Mudrovcic que “a diferença entre passado e presente, que necessariamente estabelece a consciência histórica, nada tem a ver com a lógica da presença e da ausência. Isto é, pensar no passado como a ausência presente no discurso histórico. A relação ausência-presença é de oposição, contradição; o relacionamento passado-presente é de integração: tenho um presente enquanto tenho um passado e tenho um passado de um presente que antecipa um futuro”.[1] Referida citação encontra-se também exposta num dos pavilhões que compõem atualmente o complexo Espacio Memoria y Derechos Humanos, antiga Escola de Mecânica da Armada (ESMA), academia militar no centro de Buenos Aires convertida em verdadeiro campo de concentração e centro de tortura e extermínio durante o período de vigência do terrorismo de Estado implantado pela ditadura argentina entre os anos de 1976 e 1983 e por onde passaram cerca de 5 mil pessoas,[2] tendo sido assassinadas ou até hoje desaparecidas.
A referência de autoria da citada pensadora aplica-se perfeitamente a qualquer contexto traumático vivenciado por sociedades outrora governadas por regimes totalitários e ditatoriais, incluindo-se a brasileira. O paralelo, contudo, que pode ser estabelecido entre os casos argentino e brasileiro, diz respeito à insistente negação da sociedade brasileira em revisitar seu passado recente (e também remoto), marcado por violações aos direitos humanos. Ainda que alguns avanços tenham se verificado, como o funcionamento da Comissão de Anistia ou a criação e atuação da Comissão Nacional da Verdade, fato é que os brasileiros prosseguem ignorando seu passado recente de violações, torturas e extermínios. No momento em que no mundo – e, também, no Brasil – propostas e ideias totalitárias voltam a ser abertamente pregadas por setores radicais, ainda que não majoritários, o conhecimento do passado ganha em importância e urgência. A justiça de transição não foi realizada no Brasil. Composta por etapas relacionadas ao conhecimento e estabelecimento da verdade histórica; consolidação da memória coletiva; reparação às vítimas (não necessariamente pecuniária); punição dos perpetradores e, afinal, reformulação das estruturas do Estado com o objetivo de solidificar a democracia e estabilizar o regime democrático, poucos foram os avanços.
Dimitri Dimoulis bem pontua a carga polêmica que marca a transição de um regime a outro, ao caracterizar a justiça de transição como “um processo de julgamento, depurações e reparações que se realizam após a mudança de um regime político para um outro, com o objetivo de satisfazer as vítimas, pacificar a sociedade e afastar a possibilidade de repetição das experiências do passado, cuidando-se portanto de um processo difícil e controvertido”.[3] Neste sentido, o caso brasileiro revela-se, de fato, talvez o principal exemplo do quão difícil se mostra tal processo, o que permite o questionamento sobre o grau real de transição verificada – ou não – no país. A busca pela verdade histórica e consequente estabelecimento da respectiva memória coletiva enfrenta resistências viabilizadas pelo próprio Estado, fator que contribui para a manutenção de violações aos direitos humanos, proposições de cunho autoritário e para a ausência de consciência democrática hoje presente na sociedade brasileira. Assim, por exemplo, o acesso aos documentos produzidos durante a vigência do regime de exceção instaurado em 1964 é praticamente impossível no âmbito nacional. Historiadores, juristas e pesquisadores em geral encontram muita dificuldade no acesso a tais documentos, enquanto países como Alemanha e Argentina podem ser considerados exemplos bem-sucedidos de compreensão de seus passados autoritários, não apenas em relação às pesquisas históricas e aos processos de memorialização bem sedimentados em seus países, como também em vista dos julgamentos realizados em relação aos respectivos perpetradores.[4]
O conhecimento da verdade histórica relacionada a regimes ditatoriais e totalitários, genocidas ou não, é resultado da conjugação de distintas fontes, normalmente alvo dos perpetradores após a conclusão dos crimes lesa-humanidade sistematicamente praticados, de modo exatamente a impedir seu conhecimento e evitar a sua memorialização. Assim fizeram os nazistas ao implodirem as câmaras de gás em Auschwitz ou as ditaduras latino-americanas por meio do enterro dos restos mortais de suas vítimas em valas comuns afastadas. São fases do processo conhecido como negacionismo, que também encontram na negativa do acesso aos documentos uma das técnicas para que se evite o conhecimento da verdade e dos responsáveis por tais crimes, assim considerada toda a cadeia de comando. No caso brasileiro, quando conhecidos tais documentos, a riqueza das informações permite ao Estado pavimentar vias democráticas muito mais seguras e estáveis. É o caso, por exemplo do Relatório Figueiredo (1967), produzido ainda durante o regime e que, após seu alegado desaparecimento, foi reencontrado em abril de 2013. No referido documento é detalhado ao longo de 7 mil páginas, em 29 tomos reencontrados, o processo genocida ao qual foram submetidos os povos indígenas no Brasil durante o regime ditatorial brasileiro, a partir de 1964 e que fez despertar o interesse dos pesquisadores sobre a tragédia que se abateu sobre tais povos, no período ditatorial. Contudo, tal exemplo é exceção no caso brasileiro.
Nesse sentido, a recente descoberta de documentos liberados pela Central Intelligence Agency (CIA) norte-americana – que demonstra como o ex-presidente Ernesto Geisel, conhecido como o presidente do regime militar responsável pela “abertura” política, conhecia e buscou controlar a execução de oponentes ao regime, a partir do Palácio do Planalto, mantendo a política de execuções já em curso desde o governo Médici – lança luzes não apenas sobre os fatos em si considerados, mas parece indicar ainda uma alternativa para os historiadores e pesquisadores para a investigação e conhecimento da verdade histórica relacionada ao período, com resultados que podem ser sempre surpreendentes e aptos a lançar luzes sobre acontecimentos cujas interpretações históricas podem gerar relevantes reviravoltas. O exemplo mencionado relativo aos documentos da CIA e referentes ao período do governo Geisel ainda reverbera no mundo político e acadêmico.
As valas comuns e os documentos históricos não conhecidos impõem à verdade o risco perene de sua desconstrução e reinterpretação. Afinal, como afirmou Friedrich Nietzsche, não há fatos eternos, como não há verdades absolutas. A verdade é um processo irreversível e constitui a liga entre o passado que explica o presente e condiciona o futuro.
*Flávio de Leão Bastos Pereira é doutor e mestre em Direito. Professor de Direitos Humanos e Direito Constitucional. Professor convidado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Membro do rol de especialistas da International Nuremberg Principles Academy. Co-fundador do Observatório Constitucional Latino-Americano (OCLA). Egresso do International Institute for Genocide and Human Rights Studies (Zoryan Institute) – University of Toronto (Canada). Membro do Grupo de Pesquisas Arqueologia da Repressão e da Resistência da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp/CNPQ). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra (Instituto Ius Gentium Conimbrigae/IGC) e Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Membro da Comissão da Verdade do município de Osasco (SP).