Passos importantes, muitas dificuldades
A cúpula do Mercosul aprovou a ampliação do uso das moedas nacionais dentro do bloco. Apesar de não significar a “desdolarização” econômica dos negócios nem a implementação de propostas mais ambiciosas – que continuam como retórica de alguns presidentes – a medida aponta para uma integração mais acelerada
Reunidos em Brasília no início de dezembro de 2008, os países membros e associados do Mercosul decidiram ampliar o uso das moedas nacionais no comércio dentro do bloco, como Argentina e Brasil já vinham fazendo desde outubro, com o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML). A prática evita o custoso processo de converter a moeda nacional em dólar e depois na moeda do país parceiro, além de reduzir a necessidade de dólares nos dois mercados.
No sistema estabelecido entre Brasil e Argentina, o Banco Central (BC) de cada país registra diariamente as importações vindas do país parceiro naquele dia, obtém a posição consolidada e realiza a liquidação das transações com o outro BC pela diferença entre posições credoras e devedoras nas duas moedas – real e peso argentino. Exportadores e importadores não precisam comprar e vender dólares. Dias depois, o sistema credita os exportadores e cobra os importadores, na moeda nacional de cada um. O pagamento final entre os dois bancos centrais, contudo, é feito em dólares.
A iniciativa é um avanço importante na integração financeira da América do Sul, parte do amplo processo de aproximação entre os países do continente. A liquidação das transações nas moedas dos países envolvidos, contudo, não representa a “desdolarização” do comércio, como foi apresentada por alguns. Trata-se de um passo necessário nesse sentido, mas está longe de ser um passo suficiente.
Afinal, a liquidação das posições entre os dois BC é feita em dólares, ou seja, a moeda do país parceiro não é aceita como pagamento e os dois BC não assumem riscos cambiais nas duas moedas. Além disso, a possibilidade de empresas e cidadãos fazerem negócios em pesos e reais no novo sistema não criará um mercado amplo de negociação nas duas moedas e também não criará financiamento para operações comerciais entre os dois países. O empenho dos governos brasileiro e argentino em oferecer crédito a seus exportadores não impede que boa parte dos negócios continue na dependência dos mercados internacionais, em que há liquidez em dólares.
Há ainda o fato, nada trivial, de que os produtos de ambos os países continuam sendo cotados em dólar. No mercado de petróleo, por exemplo, apesar do poder dos exportadores e de seus temores diante da desvalorização do dólar durante o auge de preços, que se estendeu até o primeiro semestre de 2008, não se chegou sequer a cogitar a criação de um mercado de petróleo em euros ou em outra moeda. Um mercado dessa natureza seria muito difícil de viabilizar, pois a ampliação dos negócios à vista depende da existência de uma ampla estrutura de operações de financiamento a prazo, de seguros, de contratos derivativos e de outros instrumentos de negociação. O mercado à vista não avança sem essa estrutura, que só ganha consistência em mercados com negociações em dólar, onde atuam especuladores e onde as empresas podem aplicar suas reservas.
Além desses fatores, a crise financeira que teve início nos EUA reforçou o papel do dólar como moeda mundial. O movimento dos detentores de riqueza, pelo menos até agora, foi de procurar segurança no dólar e nos títulos do Tesouro norte-americano, e não em outras moedas de países centrais ou em commodities ou outros ativos reais. Caso essa tendência se mantenha e a insegurança continue a predominar nos mercados mundiais, a preferência pelo dólar deve manter a pressão sobre as demais moedas.
Considerar o acordo de liquidação de pagamentos como “desdolarização” do comércio é repetir a prática de muitos governantes do continente ao tratar da integração: retórica exagerada ou inflamada, despreocupação com os conceitos, ausência de análise e até mesmo de referências aos processos concretos em curso. A retórica aparece como gratuita em muitas situações, em outras explicita interesses específicos dos países envolvidos, interesses que são de fato bastante diferenciados em muitos dos principais temas da agenda de integração.
O caso do Equador é emblemático. O presidente Rafael Correa, eleito em 2006, herdou de seus antecessores a dolarização completa do país. No início de 2000 foi extinta a moeda nacional, o sucre, e o dólar passou à condição de moeda do país. Na época, os críticos da dolarização, entre os quais se destacava o próprio Correa, apontavam que a medida condenaria o Equador a uma estagnação econômica crônica e deveria ser revertida. Uma das alternativas apontadas defendidas era a criação de uma moeda regional, o que evitaria as enormes dificuldades para recriar a moeda nacional em um país pequeno e debilitado. Na sua campanha eleitoral, sob intensa pressão da direita e do empresariado para manter a dolarização, Correa praticamente abandonou a questão, argumentando que esta não seria uma prioridade de seu governo.
Não é estranho, portanto, que a criação de um sistema de pagamentos nas moedas nacionais tenha para o governo equatoriano um conteúdo bem distinto do que tem para Argentina e Brasil. Para Correa, deve ser criada uma “moeda eletrônica” desvinculada do dólar e do euro, com valor ancorado em uma cesta de moedas latino-americanas. O comércio se faria com base nessa “moeda contábil” e os países participantes receberiam em sua própria moeda, a depender da cotação do câmbio entre as moedas da cesta. Com a moeda eletrônica, os países da América Latina deixariam de “pagar” pelo “direito de usar o dólar e o euro” e poderiam, assim, “jogar o FMI e o Banco Mundial na lata de lixo da História”.
O caráter do Banco do Sul
A proposta de Correa é evidentemente muito distinta daquilo que foi criado entre Argentina e Brasil: neste caso, trata-se de um sistema de liquidação de pagamentos; para o Equador, trata-se de criar uma moeda nacional. É compreensível que Correa defenda esta proposta, mas não são tão evidentes os motivos que levam o presidente brasileiro a fazer declarações favoráveis à criação de uma moeda única na América Latina.
Confusão semelhante ocorreu nas negociações para a criação do Banco do Sul. A proposta inicial de Chávez, Kirchner, Morales e Correa era criar um banco que combinasse as funções de desenvolvimento, de gestor das reservas externas e de banco central regional, com a missão de apoiar os bancos centrais em caso de crises cambiais e de evoluir para emissor da moeda regional. Para entrar no processo, o Brasil exigiu que as negociações voltassem ao ponto de partida e conseguiu dos sócios que o desenho do banco seguisse o modelo de um banco de desenvolvimento, como um BNDES regional. Em várias ocasiões, Lula reafirmou esse caráter do banco, defendido pelo seu governo, mas em outras fez declarações genéricas e aleatórias sobre a importância da criação da moeda única e de um banco central único do continente, sem que ficasse clara a relação dessas propostas com a estratégia de seu governo na criação do Banco do Sul.
A evidência de que o processo de integração avança mesmo assim, e com velocidade e amplitude surpreendentes, sugere que o processo é profundo e robusto, mas desde que a fala dos atores envolvidos seja imprecisa e voluntariosa. É como se a objetividade devesse ser evitada, por ser fonte de obstáculos e por retardar aquilo que a vontade pode tornar possível por ela mesma.
Ainda que seja assim, convém analisar o que está ocorrendo com a objetividade e o rigor possíveis, especialmente quando a crise financeira internacional ameaça a posição cambial muito positiva dos países latino-americanos, uma das principais bases dos avanços obtidos na integração. A acumulação de elevadas reservas externas pelos países da região, em níveis inacreditáveis para os padrões das décadas anteriores, só foi possível com a bonança externa, gerada pela liquidez elevada e juros baixos nos mercados mundiais e pela configuração peculiar da economia norte-americana, absorvedora dos excedentes de comércio da maior parte do mundo.
A grande folga cambial dos últimos anos estimulou um discurso de autossuficiência por parte de muitos governos da região, com duas implicações perigosas. Uma delas é o voluntarismo, como se as iniciativas de integração só fossem possíveis porque chegaram ao poder governos comprometidos com a independência de seus países, dispostos a tomar iniciativas que antes não eram tomadas simplesmente porque faltava vontade política. A outra é o desinteresse pela avaliação das propostas apresentadas e também das experiências já em curso, nunca mencionadas em meio à defesa grandiloquente de iniciativas complexas e irrealistas, como a moeda única ou o banco central único.
O discurso simplificador transformou a integração em um ícone, um objetivo colocado acima de avaliações detalhadas das situações específicas. É uma atitude perigosa, inclusive porque integração é um conceito amplo e ambíguo, a ponto de poder ser utilizado com sentidos opostos. Para o discurso dito neoliberal, ou liberalizante, a integração está na base de propostas como a Alca ou os acordos de livre comércio com os EUA. É claro que os governos do continente têm objetivos diversos e dão a esse conceito significados opostos. Contudo, como esses significados não são explicitados na forma de propostas objetivas, o uso do termo integração perde grande parte de sua capacidade de orientar a ação prática.
Não é demais lembrar que há várias possibilidades de integração de países. Uma caracterização básica diz que a integração pode assumir um caráter passivo ou ativo, um caráter liberalizante ou um caráter defensivo. Integração passiva é liberalizar os mercados de um país em relação ao resto do mundo, ou em relação a uma região ou a poucos parceiros, com o propósito de oferecer maior liberdade de circulação de mercadorias e de capitais. É a essência das propostas liberais. Incluem-se nesse modelo a dolarização do Equador e a abertura comercial e financeira da conversibilidade na Argentina, nos anos 1990. Os dois países foram integrados amplamente à economia mundial, sem defesas nem proteções, o que implicou o abandono de objetivos nacionais próprios.
Integração defensiva, ou ativa, é um processo conduzido com objetivos específicos pelos países parceiros, com o propósito de obter melhores condições para defender seus interesses diante de ameaças ou de concorrência de outros países ou blocos. É o contrário do que recomendam os liberais. Trata-se de colocar restrições à livre mobilidade de mercadorias e de capitais em escala mundial, criando um espaço protegido. Processos desse tipo requerem negociações detalhadas e instrumentos de aproximação e de gerenciamento do que se pretende integrar, com regras, instituições novas e supranacionais, acordos para solução de litígios etc. A União Europeia e as iniciativas em curso no Leste da Ásia têm muitos componentes dessa natureza, da mesma forma que o Mercosul e outras iniciativas latino-americanas, anteriores e atuais.
Fortalecer instrumentos estatais
No caso da integração financeira, esses problemas se tornam mais complexos, principalmente em casos de integração monetária, como a criação do euro. Integração financeira passiva pode ser definida simplesmente como a possibilidade de acesso de residentes em um país a ativos financeiros e a mercados fora dele, bem como o acesso de residentes no exterior aos mercados de determinado país. É o que passou a ser feito no Brasil desde o final dos anos 1980, processo que o governo Lula manteve. É o mito do padrão-ouro, em que a suposta passividade dos governos permitia que a livre circulação de capitais fizesse a economia funcionar da forma ideal.
A integração financeira defensiva, ou ativa, ao contrário, supõe criar e fortalecer instrumentos estatais de cooperação financeira e estruturas financeiras privadas – ação conjunta de bancos centrais e de bancos de desenvolvimento, criação de bolsas e mercados unificados ou articulados, apoio de governos a políticas de câmbio e de financiamento.
Passados quase 15 anos, a experiência do Mercosul evidencia as dificuldades de se avançar em processos dessa natureza. Os dois sócios menores continuam questionando os benefícios que obtêm com o bloco: o Uruguai flertou abertamente com a alternativa de assinar um tratado de livre comércio com os EUA e o Paraguai mantém uma posição indefinida. No caso dos sócios maiores, nada se conseguiu em termos de harmonização de políticas econômicas, mesmo quando havia afinidades ideológicas e políticas, caso de Menem-FHC ou Kirchner-Lula.
Na gravíssima crise da Argentina em 2000-2003, o Brasil nada fez para ajudar. A equipe econômica do governo Lula reforçou as pressões sobre a Argentina para que recuasse das propostas de negociação que prejudicavam os interesses do FMI e dos credores externos. Esse episódio, esquecido nos últimos anos, mostrou os limites do voluntarismo na integração dos países latino-americanos: mesmo um governo dito de esquerda, como o de Lula, preferiu defender a posição brasileira favorável aos mercados, ao FMI e aos credores externos, no único episódio de enfrentamento real que opôs um país do Mercosul a essas entidades tão demonizadas nos discursos dos governantes de esquerda do Continente.
As iniciativas de integração financeira no Continente se ampliaram nos últimos anos. Na área de crédito, cresceu a oferta de recursos pela Corporação Andina de Fomento (CAF) e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), além de outros fundos, e há também o apoio do BNDES a negócios de empresas brasileiras em países da região. Na área dos bancos centrais, além de tentativas de retomar os Convênios de Crédito Recíprocos (CCR), continua operando o Fundo Latino-Americano de Reservas (FLAR) e foi anunciada a cooperação entre os bancos centrais de Argentina, Brasil, Chile e México, junto com o BIS, da Basileia, para apoiar as moedas da região na crise internacional.
Baixo comprometimento
Essa multiplicidade de experiências não foi objeto de análise nas discussões públicas sobre a criação do Banco do Sul, iniciativa que se sobrepõe a várias delas, ou mesmo a todas, a depender do enfoque de cada governo. No ato de fundação do Banco, em Buenos Aires, em dezembro de 2008, os discursos presidenciais não mencionaram esses instrumentos e organismos. Não há interesse em discutir o que os governos fazem em todos eles, dos quais são sócios majoritários ou exclusivos e nos quais atuam ativamente.
As dificuldades e limitações apontadas refletem os problemas enfrentados pelo processo de integração da América do Sul. Na há na região moedas nacionais fortes e conversíveis internacionalmente, capazes de ancorar e defender as demais. Em cada país, é baixo o comprometimento com a necessidade de aceitar limitações à autonomia nacional em prol da integração, de aceitar a redução de graus de liberdade em suas políticas em troca de benefícios econômicos, sociais e políticos percebidos como relevantes. O exemplo oposto pode ser a Alemanha, que abriu mão da liberdade de conduzir sua própria política macroeconômica e submeteu a gestão do marco aos interesses da UE, até extingui-lo para possibilitar a criação do euro.
Na América Latina, são enormes as divergências entre os países maiores. O México atrelou sua economia aos Estados Unidos, a Venezuela faz discurso contra os EUA, mas depende das vendas de petróleo para lá, o Peru quer seguir o caminho do Chile e se tornar um exportador global, sem compromissos econômicos prioritários com a região. O Brasil está sempre dividido entre interesses conflitantes: os bancos e o capital financeiro querem alinhamento firme com os centros financeiros internacionais, mas desde que se mantenha a proteção do Banco Central brasileiro; a indústria se divide, a depender dos mercados para quem exporta; o agronegócio quer liberalização comercial completa. Cada região do país tem o enfoque que mais lhe convém e parece inverossímil imaginar que estas opções possam vir a ser discutidas de forma consistente no Senado ou na Câmara, ou pelos partidos políticos.
Diante de tantas dúvidas e interrogações, convém resistir à tentação de avaliar os processos em curso no Continente a partir de outras experiências, como a da Europa. Os processos de integração são poucos e são todos muito peculiares, o que recomenda analisar cada caso em si mesmo – mas convém também resistir à tentação do discurso voluntarista e da recusa de discutir as questões concretas e as opções efetivas de cada governo.
*Carlos Eduardo Carvalho é economista, professor do departamento de Economia e do curso de Relações Internacionais da PUC-SP.