“Pau para toda obra” made in Filipinas
Para os poderosos, a dominação é menos desconfortável quando é consentida pelos dominados, quando todo bom empregado se esforça para manifestar a seu empregador a plenitude que sua condição propicia. Esse “júbilo de servir” não tem nada de inato: se aprende. Nas Filipinas ou em Hong Kong, ele é ensinado
Um caminho sinuoso, bosques de pinheiros verdejantes e homens de uniforme. De repente, surgem as imagens de cartão-postal da Baía de Hong Kong, suas alamedas de imóveis e seu enxame de navios. Ao volante do sedãconversível, Charlotte faz um sinal com a cabeça para o vigia, e a cancela de Tertre de Stanley, um condomínio fechado batizado com o nome do famoso aventureiro britânico, é levantada.
Desde 2005, essa imigrante franco-belga e seu marido francês vivem dias aprazíveis numa casa com varanda a trinta minutos da região central da “economia mais aberta do mundo”.1 Ele ocupa o posto estratégico de diretor financeiro de um grande banco francês. Ela não trabalha e passa os dias entre banhos de mar na Baía de Stanley, partidas de tênis e ações humanitárias em uma grande ONG francesa. Para seus quatro filhos e a grande casa onde moram, Charlotte e Paul precisam de uma “babá”, o equivalente local de uma empregada doméstica. “A Lennie é tão dedicada”, extasia-se a patroa. Leonora Santos Torres toma conta das crianças, cozinha e faz a limpeza. Ela é uma das cerca de 290.600 empregadas estrangeiras trabalhando em Hong Kong em 2011. Na residência de Charlotte e Paul, seu quarto tem menos de 5 metros quadrados, e ela fica à disposição dia e noite, para zelar pelo conforto dos patrões.
Para contar com esse serviço disponível 24 horas por dia, seis dias por semana, o casal paga à senhora Torres o equivalente a 5 mil dólares de Hong Kong (450 euros, ou R$ 1.150). “São 100 euros a mais do que o salário mínimo de empregadas domésticas em Hong Kong, para cerca de dez horas de trabalho por dia”, explica Charlotte, antes de comentar: “Éum bom salário. Algumas famílias estrangeiras chegam a pagar 600 ou 700 euros por mês. Elas inflacionam o mercado”.
Aos 47 anos, a senhora Torres deixou três de seus cinco filhos no povoado de Calatagan, na província turística de Luçon, no norte das Filipinas. Apesar do diploma de redatora de telegramas, ela trabalha desde 1999 em Hong Kong para sustentar a família. “Todos os meses, mando 80% do meu salário, do qual subtraio as taxas de transferência de fundos cobradas pela Western Union [ou seja, 28 dólares de Hong Kong por transação, equivalentes a R$ 6,37], para pagar a faculdade dos meus três filhos. Saí de casa quando eles tinham 10 anos. Nas Filipinas, o custo do ensino é tão alto que somos obrigados a nos sacrificar pela educação dos nossos filhos.”
Maus-tratos e submissão
Agressões verbais ou físicas, submissão permanente aos menores desejos do patrão, subsalários, desrespeito ao contrato de trabalho, maus-tratos e agressão sexual. A senhora Torres passou por isso, primeiro na casa de uma família de Hong Kong, da qual fugiu (“eles queriam que eu abrisse mão do meu dia de folga”), depois com chineses para os quais trabalhou e onde apanhava e era insultada pela avó. Por isso, ela relativiza sua situação atual, dizendo que seus patrões são “bons” com ela. A lei concede aos empregados domésticos catorze dias para encontrar um novo emprego depois do rompimento de um contrato, sob pena de terem de sair de Hong Kong, o que explica o número de empregadas que não se atrevem a prestar queixa.
“É genético”, afirma Charlotte, para explicar a dedicação da empregada. “As filipinas se relacionam muito bem com os outros e, culturalmente, são extremamente dedicadas. Elas adoram crianças! É como se fosse uma distração, porque, você sabe, elas não têm uma vida muito divertida. O que mantém a Lennie é a ligação estreita dela com a igreja que frequenta…” Na verdade, a senhora Torres é evangélica. Essa cristã fervorosa (como a maioria dos filipinos) aplica preceitos divinos que coincidem com os preceitos dos patrões: “Eu escuto o Senhor, que não faz diferença entre ricos e pobres”, diz ela em seu quartinho, um computador sempre conectado ao Skype, ao Facebook e ao Yahoo, a babá eletrônica dos filhos da patroa e retratos de seus próprios filhos. Acima do computador, um grande quadro que diz: “Agradece todos os dias a Deus e obedece”.
“É genética” a propensão de trabalhar como empregada doméstica? Todos os anos, mais de 100 mil filipinas saem do país para trabalhar no setor de serviços. Nesse país economicamente frágil, a política de exportação de mão de obra foi formalmente lançada em 1974, sob o governo de Ferdinand Marcos (1965-1986), que viu no impulso ganho pelos países do Golfo, após o primeiro choque do petróleo, de 1973, a ocasião de expatriar “temporariamente” operários filipinos. Trinta e cinco anos depois, esse fluxo se transformou num movimento de forte predominância feminina, que atinge oficialmente mais de 8,5 milhões de pessoas, ou seja, pouco menos de 10% do total – 22% do contingente em idade de trabalhar. Segundo o Banco Mundial, em 2010 o ingresso de US$ 21,3 bilhões do exterior, enviados por essa mão de obra emigrante, garantiu ao país 12% de seu PIB,2 o que colocou o arquipélago de 95 milhões de habitantes na quarta posição de transferência de recursos oriundos da emigração, depois de China, Índia e México.
Curso para doméstica
Manila, maio de 2011. “Bem-vindo à Pequena Hong Kong!”, exclama Michelle Ventenilla, uma das quatro professoras da escola Abest, que figura entre os 364 estabelecimentos particulares especializados em “serviços domésticos” do arquipélago filipino. Sua função: formar as chamadas “superempregadas”,3 com se diz “na linguagem dos empregadores”, preparadas graças a uma formação nacional oficial, que ensina “a utilizar aparelhos eletrodomésticos”, assim como a ministrar os “primeiros socorros”. A escola, cuja taxa de inscrição é de 9 mil pesos (R$ 382), trabalha a quatro mãos com uma agência de empregos.
Essa sexta-feira, 13 de maio, é o dia do exame final. Trazendo com as duas mãos uma sopeira de porcelana, a candidata número 5, uma mulher de aspecto frágil e suando muito, se aproxima suavemente da mesa coberta com uma toalha plastificada cor-de-rosa e simula o gesto de servir sopa. Lea Talabis, 41 anos, é uma das cerca de 100 mil candidatas que se apresentam por ano para obter o diploma de serviços domésticos, o National Certificate II (NC II), depois de cursar as 216 horas de formação. Rommel Ventenilla,4 o inspetor público da Autoridade de Ensino Profissional, a Technical Education and Skills Development Authority (Tesda), observa atentamente a postulante, que está agora na parte da prova relacionada ao “serviço de mesa”. Um passo para o lado, com os pés perpendiculares, e ela se aproxima do patrão fictício e pergunta: “O senhor aceita sopa?”. O senhor Ventenilla assente com a cabeça e emite um som. A senhora Talabis hesita. Depois de encher a pequena tigelinha branca do patrão, servindo pelo lado esquerdo, será que ela deve levar a sopeira de volta para a cozinha, depois de dar novamente um passo para o lado, ou deve deixá-la à disposição do comensal? Visivelmente perturbada com a prova, ela abaixa os olhos e se apressa em colocar a sopeira em cima do aparador.
O examinador dá a ela uma segunda chance: é o teste das perguntas. “Qual é a quantidade de água que deve ser servida num copo?” Ele indica com o olhar a simulação de mesa posta, disposta como é costume em Hong Kong, nas famílias burguesas: três copos, três pratos e sous-plat, talheres de peixe e de carne, simetria de espaços devidamente respeitada. A senhora Talabis se coloca então à direita do patrão, trazendo a garrafa de água como se fosse uma criança de colo, e enche três quartos do copo. O senhor Ventenilla, impassível, aprova o teste do “serviço de mesa”. A candidata volta para a cozinha. Ela poderá completar a nota final com o teste do serviço de quarto – fazendo a cama –, limpando os azulejos ou o aquário, passando roupa ou lavando o carro.
“A nota final compreende 20% de competências, 20% de conhecimentos teóricos e 60% de qualidades comportamentais”, explica o senhor Ventenilla. Ou seja, não são tanto as competências e os primeiros socorros que contam, ou a logística da limpeza ou da cozinha que são verificadas, mas prioritariamente a capacidade das futuras empregadas de obedecer e respeitar os patrões.
Na sala de aula, um quadro separa as “vencedoras” (as que “procuram soluções” e dizem ao patrão: “Deixe que eu faço isso”) das “perdedoras” (as que “procuram um culpado” e “sempre têm uma desculpa” para não fazer o que se pede que façam). Quanto ao código disciplinar, ele determina: “não contradiga seu patrão”; “não fique conversando com as outras empregadas”; “não demonstre em sua fisionomia que não gosta quando o patrão faz uma observação”; “procure sua agência de empregos, se tiver problemas, e não confie nos amigos”. Nada de sindicato nem de greve, nada de manifestações de caráter social, nada de questionamento das condições de trabalho: “Seja sempre pontual”, diz o capítulo 6 do manual da escola, enquanto uma das “regras a serem seguidas, para ser uma boa auxiliar”, é“nunca contar as horas trabalhadas” (na seção “Coisas que não se deve fazer”).
Um dia livre do patrão
“Elena! Julien é jornalista francês. Ele está escrevendo um artigo sobre o cotidiano das empregadas domésticas filipinas em Hong Kong. Prepare um chá com leite para nós.” No 13ºandar do Elegant Terrace – um prédio requintado com vigilantes e piscina, em pleno Midlevels, o bairro chique do centro de Hong Kong –, o proprietário, o senhor Joseph Law, 65 anos, mostra a camisa que está vestindo: “Pessoalmente, exijo que elas estejam sempre bem passadas e com esta dobra bem marcada, está vendo?”. Senta-se no sofá de couro. “Se eu gosto de ser servido? Essa é uma boa pergunta. Admito que sempre preferi ser servido a ter de fazer certas coisas eu mesmo. Há 35 anos contrato empregadas estrangeiras, e as filipinas são de longe minhas preferidas. Elas falam melhor inglês, apresentam menos riscos do que as outras e em geral são mais dedicadas ao trabalho”. A casa impecável, a aparência impecável, o nível de vida impecável… Tudo isso tem um preço: o do trabalho de Elena. “Pago a ela o salário mínimo oficial, 3.580 dólares de Hong Kong [R$ 920]”,5 diz o senhor Law, ex-diretor adjunto do Corpo de Bombeiros de Hong Kong e atualmente porta-voz da oficialíssima Associação dos Empregadores de Domésticas Estrangeiras deHong Kong. Em outras palavras, a instituição patronal do serviço doméstico – e inimiga dos seis sindicatos de empregados domésticos do país.
Chega Elena A. Meredores, 51 anos, trabalhadora doméstica há mais de dezesseis anos e mãe de uma moça de 18 anos que ficou nas Filipinas.
– Elena, acredito que 50% das empregadas de Hong Kong têm uma relação boa e harmoniosa com o patrão, como você e eu. O que você acha?
Elena se instala no sofá:
– Eu diria de 10% a 15%, senhor.
Ele parece não gostar:
– Não, francamente, 15%… Não! Seja justa, Elena.
– Muitos patrões dizem ter uma boa relação, mas na realidade isso não é verdade. Eles dizem isso só para manter as aparências. Não como o senhor, senhor Law…
O patrão a interrompe:
– Hong Kong é o paraíso das empregadas domésticas estrangeiras. O paraíso!
Três dias depois, um domingo, bem cedinho, a senhora Meredores abre seu guarda-chuva vermelho para ir ao “grande encontro das empregadas domésticas filipinas” em DireçãoCentral, o bairro onde ficam as sedes dos grandes bancos, como o Hong Kong & Shanghai Banking Corporation (HSBC), espremido entre o Bank of China e a joalheria Van Cleef & Arpels. “Nós nos reunimos aqui em nosso dia de folga porque não temos aonde ir. Durante a semana, todasnós ficamos sozinhas, limpamos os apartamentos deles, tiramos o pó etc., mas uma vez por semana podemos ficar livres dos patrões. É nossa dignidade”, diz ela.
De ambos os lados da torre do HSBC, dois leões de bronze simbolizam os dois famosos fundadores da empresa, os banqueiros A. G. Stephen e G. H. Stitt. À direita, um leão com a bocarra fechada, “Stitt”, fisionomia séria e olhar selvagem. Quanto ao leão da esquerda, “Stephen”, sua bocarra está aberta e ele parece rugir de prazer. Esse leão sorridente se transformou ao longo dos anos num famoso ponto de encontro dos filipinos imigrantes de Hong Kong. “Eu gosto de ser fotografada perto desse leão sorridente, pois ele é o símbolo do nosso trabalho”, diz Gorgogna, que se surpreende por “ainda continuar sendo empregada doméstica, com um pequeno salário”, 22 anos após sua chegada a Hong Kong. O leão, metáfora dos empregadores e de sua prosperidade, comeu bem e ruge na direção do alto do prédio do HSBC. Embaixo, milhares de mãos saboreiam seu descanso dominical. “Para os chineses, esse leão simboliza o dinheiro”, diz Gorgogna, na frente do felino de ar simpático. “Sem nós, ele não estariatão satisfeito.”