Pedagogia descolonial: uma construção da e a partir da razão histórica
Buscando fomentar um diálogo crítico sobre as pedagogias descolonizadoras, a infância se torna o momento da possibilidade de construção da resistência às imposições hegemônicas, principalmente euro-estadunidenses.
O advento da “modernidade europeia” não seria possível sem a presença da América Latina — para além do sentido de acumulação primitiva da colonização, mas também na formação de sentidos históricos originais e diferentes —, como demonstrou Quijano, ao afirmar que “el proceso de producción de la modernidad tiene una relación directa y entrañable con la constitución histórica de América Latina”[1] (1988, p. 11). Isto é, tal relação estabelece novas categorias sócio-históricas que compõem e conectam diversas esferas sociais e coloca em disputa categorias generativas para a reprodução do modelo então emergente, no caso aqui demonstrado, a infância como objeto de disputa.
Buscando fomentar um diálogo crítico sobre as pedagogias descolonizadoras, a infância se torna o momento da possibilidade de construção da resistência às imposições hegemônicas, principalmente euro-estadunidenses. Dessa forma, o debate se expande e se correlaciona com vários elementos sociais, pois a educação sobre a figura da criança representa o Agora, o tempo-presente [Jetztzeit], que pode projetar o tempo da natureza ou o tempo homogêneo e vazio — a crença no progresso positivo capitalista. Então, na construção de um ser humano para além do domínio do tempo do relógio, há de se considerar experiências passadas, orientando-as para o futuro, pois no Agora há a coexistência dos momentos de preservação da tradição e da inovação, no contexto social da recepção histórica [Wirkungsgeschichte] (HABERMAS, 1990, p. 24).
Neste contexto receptivo, identificamos a possibilidade de uma “educação macunaímica” atual através do parque infantil (PI)[2] criado por Mário de Andrade, em 1935, enquanto era diretor do Departamento de Cultura (DC) da prefeitura de São Paulo. Então, o ponto a ser apresentado ao longo deste trabalho é de que a infância é um objeto de disputa ao longo do processo histórico que se caracteriza por modernidade, porém que o Agora é fundamental para orientar as formações sócio-históricas das mesmas, logo, das gerações seguintes e do desenvolvimento de uma identidade nacional. No entanto, não basta dizer estar no período da modernidade — nem durante os anos de criação dos Pis, nem atualmente —, uma vez que nos encontramos numa crise da modernidade/racionalidade euro-estadunidense hegemônica.[3]
Estando tal modernidade em crise — elaborada na associação entre razão e dominação —, há outra que foi suprimida durante séculos, a modernidade propriamente latino-americana, uma “modernidad liberadora” que consiste numa “razón histórica”. E é nesta que encontra-se a possibilidade de uma revolução epistêmica, sua autossuficiência e independência, unindo práxis e teoria, através da valorização cultural diversa. Não se trata de recusar todas as categorias elaboradas ao longo de três séculos, mas reconhecer, pela identidade, os conhecimentos locais e resultar [e continuar] a síntese dialética para além do maniqueísmo corriqueiro.
Um interlúdio preciso: comentário geral sobre Colonialidade e Descolonialidade
Antes de prosseguirmos, convém estabelecer que a racionalidade dominante moderna surge através das utopias posteriores ao “descobrimento” da América – é dependente das culturas latino-americanas –, pois “el surgimiento de esas específicas utopías puede ser reconocido como el primer momento del proceso de constitución de la modernidad. Sin el nuevo lugar del futuro en el imaginario de la humanidad, la mera idea de modernidad sería simplemente impensable”[4] (QUIJANO, 1988, p. 12). A modernidade é instituída de diferentes formas na Europa e na América Latina, correspondendo claramente ao posicionamento entre colonizador e colonizado, pois no continente europeu é aplicada ao cotidiano, enquanto no continente latino-americano se institui entre as práticas sociais estabelecidas, se tornando uma “forma ideológica legitimadora de prácticas políticas que van claramente en contra de su discurso, mientras las prácticas sociales modernas son reprimidas porque no pueden ser legitimadas por ninguna instancia de las ideologías dominantes” (ibid., p. 15). Adiciono, agora, um desenvolvimento necessário sobre utopia não apenas como imaginário, mas como momento da dialética:
A utopia se assume como eficiente não na manifestação da realidade, mas sim como método e como um processo interior que precede a ação, um estado mental que precede a revolta concreta, ou seja, a utopia não é a ação em si. Mas se encaixa num processo dialético entre consciência, abrangendo as esferas da ética e da estética, e pratica na realidade, a concepção da tese, antítese, retorno, se configura para utopia, pratica revolucionária, retorno às ideias, pois o mundo se faz continuamente, não sendo permitida a estática da realidade, ou seja, a realidade consiste na mudança, no rompimento com modelos anteriores quando o atual já se esgotou e está colapsando (BRUGNARO JR., 2021, p. 161).
Assim, a formação de uma utopia latino-americana se torna possível na elaboração de um projeto de transformação que se aplica na prática revolucionária. Tal práxis deve, contudo, ser elaborada na razão histórica da modernidade libertadora que emerge e pode se sobrepor, principalmente, na crise da modernidade instrumental.
A crise da modernidade, como ocorre nos discursos desde a segunda metade do século XX é, propriamente, a crise da identidade europeia enquanto sua racionalidade hegemônica. Em oposição, a América Latina assume um papel complexo, pois: a) também sofreu os processos de modernização em suas mais diversas esferas concomitantemente a Europa, não apenas recebendo suas produções culturais, no entanto, ficara na posição subalternizada; b) também recebeu e incorporou padrões euro-estadunidenses; e c) possui heranças culturais distintas, ricas e criadoras de uma nova racionalidade. Esses elementos constituem um caráter sui generis ao continente, pois possui a capacidade de assimilação e articulação do desenvolvimento de ambos os lados do Atlântico ao longo da história e é dotado de uma herança própria, é a capacidade de uma síntese da linguagem cultural única, o que não ocorre do lado oposto.
Em suma, a descolonialidade do continente latino-americano:
por su peculiar historia, por su lugar en la trayectoria de la modernidad, es el más apto territorio histórico para producir la articulación de los elementos que hasta ahora andan separados. La alegría de la solidaridad colectiva y la de una plena realización individual. No tenemos que renunciar a ninguna de ellas, porque son ambas nuestra genuina herencia[5] (QUIJANO, 1988, p. 68).
Tal nova forma de racionalidade deve ser aplicada, também, na formação humana da criança, corroborando para a valorização da cultura a qual pertence, suas heranças continentais e também adquirir a capacidade de visão crítica e sintética ao se analisar como sujeito do mundo, tanto da cultura do norte global como do sul. Também deve ser pautada no reconhecimento da solidariedade coletiva e da plena realização individual, característicos da potência latino-americana.
Considerações para a formação pedagógica crítica
O reconhecimento do exposto acima, pode ser encontrado na formação da criança como criança suficiente em si, para si e em relação com o mundo que observa-se no PI, onde se produziam “cultura e conviviam com a diversidade da cultura nacional, quando o cuidado e a educação não estavam antagonizados, e a educação, a assistência e a cultura estavam macunaimicamente integradas, no tríplice objetivo parqueano: educar, assistir e recrear” (FARIA, 1999, p. 62). Os fundamentos do PI englobavam ideias sobre arte e imaginário infantil, de Vygotsky, e sobre o teatro proletário, de Benjamin, com isso não separavam o cuidado, a educação e a cultura, mas o lúdico passa a ser compreendido como o elemento integrante da cultura dos povos através das experiências dos jogos. Além disso, “a educação estética, a arte e a arte infantil, o folclore como manifestação das raízes múltiplas do brasileiro caracterizam o PI e o DC como um projeto governamental coerentemente integrado ao projeto maior de urbanização da Paulicéia” (ibid., p. 64).
Assim, a formação da identidade nacional também acontece na infância através da incorporação de manifestações populares, folclóricas, artísticas e estéticas durante o cotidiano lúdico das crianças. A formação desse espaço coletivo de convívio entre as crianças “pode ter dado origem a uma pedagogia das diferenças, uma pedagogia das relações, à qual pretendemos dar continuidade e na qual a criança é a protagonista” (ibid., p. 69). É dessa forma que o Agora [neste contexto] possibilitou a formação de uma identidade nacional múltipla se inserindo na modernidade pautada pela razão histórica, passando pela cultura popular e pelas tradições, mas também projetando a formação emancipadora como futuro – isto é, a questão da receptividade. E é dessa forma que o Agora atual pode recuperar motivações e pautar políticas públicas educacionais contemporâneas.
Há, então, a necessidade de uma revolução epistemológica sustentada pelos estudos descoloniais contemporâneos, algo que não era possível na época da formação do PI, dada sua condição histórica — o que não tira a qualidade de sua elaboração, tanto que pode servir de modelo para a atualidade. A recuperação das heranças pré-coloniais podem favorecer o debate público e a formação infantil concomitantemente, pois, como colocado em diversos momentos neste escrito, a América Latina pode realizar a síntese das condições históricas de forma única através da razão histórica e não razão instrumentalizada. No caso brasileiro — mas não só —, a crítica feita por representantes das pautas dos oprimidos, àqueles com quem devemos escovar a história a contrapelo, devem constituir a apropriação do passado segundo tais lentes e realizar ações atuais, para que o futuro seja possível.[6]
A revolução [pedagógica] epistêmica precisa realizar seu diagnóstico de tempo, afinal:
Que faço com a minha cara de índia?
E meu sangue
E minha consciência
E minha luta
E nossos filhos?
Brasil, o que faço com a minha cara de índia? […] (POTIGUARA, 2018, pp. 31-32).
Considerações finais: a educação descolonial é latino-americana
Se a crise da modernidade da razão instrumentalizada pautar os debates e a emersão de uma nova razão latino-americana, significa que não há liberdade. Se o tempo do relógio pautar o avanço contra culturas pré-coloniais almejando seu epistemicídio, significa que não há igualdade. E se a educação não for emancipadora que reconhece a todos na formação de uma utopia como aqui proposta, significa que não há fraternidade. Sobre qual modernidade estamos renunciando e sobre qual estamos buscando construir? Por fim:
No tenemos, por eso, necesidad de confundir el rechazo al eurocentrismo en la cultura y a la lógica instrumental del capital y del imperialismo euronorteamericano o de otros con algún oscurantista reclamo de rechazar o de abandonar las primigenias promesas liberadoras de la modernidad: ante todo, la desacralización de la autoridad en el pensamiento y en la sociedad; de las jerarquías sociales; del prejuicio y del mito fundado en aquel; la libertad de pensar y de conocer; de dudar y de preguntar; de expresar y de comunicar; la libertad individual liberada de individualismo; la idea de la igualdad y de la fraternidad de todos los humanos y de la dignidad de todas las personas. No todo ello se originó en Europa. Ni todo fue, tampoco, cumplido o siquiera respetado. Pero fue con ella que todo eso, viajó hacia América Latina[7] (QUIJANO, 1988, p. 33).
Em suma, uma pedagogia descolonial e, consequentemente, infâncias no pós-colonialismo, possui a potência de abrir destinos para a emancipação, pois: “tanto num como noutro destino, encontrareis sempre, como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrifícios que me custaram as frases deste discurso, todos eu fiz por vós, fiz contente, buscando abrir-vos de par em par, em toda a sua soberania insaciável, as portas da humanidade” (ANDRADE, 2005, p. 270).
Maurício Brugnaro Júnior é graduando em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro do Laboratório de Pensamento Político (PEPOL/Unicamp) e pesquisador-associado do Núcleo Práxis de pesquisa, educação popular e política da Universidade de São Paulo (USP).
Este texto foi apresentado no III Seminário Internacional Infâncias e Pós-colonialismo, pela Faculdade de Educação (FE) da Unicamp.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Oração de Paraninfo (1935). Pro-Posições, v. 16, n. 1 (46), jan./abr. 2005. Disponível em: https://www.fe.unicamp.br/pf-fe/publicacao/2302/46-diversoeprosa-andradem.pdf. Acesso em: 30/ 05/2022.
BRUGNARO JR., Maurício. Romantismo, utopia e revolução: uma nálise teórica do conceito de utopia no momento de pandemia. Revista do Instituto de Ciências Humanas, V. 17, n. 26, 2021. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/revistaich/article/view/26637/18367. Acesso em: 30/05/2022.
FARIA, Ana Lúcia Goulart. A contribuição dos parques infantis de Mário de Andrade para a construção de uma pedagogia da educação infantil. Educação & Sociedade, ano XX, n. 69, Dezembro 1999.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote, Lds., 1990.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª ed., 2015.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro, RJ, 3ª ed., Grumin, 2018.
QUIJANO, Aníbal. Modernidad, identidad y utopia en América Latina. Sociedad y Política, Ediciones, Lima, Perú, 1988.
ROCHA, Glauber. Estetyka do sonho. Hambre, espacio cine experimental, Columbia University – New York, Janeiro, 1971. Disponível em: https://hambrecine.com/2013/09/15/eztetyka-do-sonho/. Acesso em 30/05/2022.
[1] “o processo de produção da modernidade tem uma relação direta e afetuosa com a constituição histórica da América Latina”.
[2] Que também podem ser apreendidas como continuidades e complementos da educação escolar.
[3] “La hegemonía de la “razón instrumental”, es decir de la asociación entre razón y dominación, contra la “razón histórica” o asociación entre razón y liberación, no solamente se consolidó y mundializó con la predominancia de Estados Unidos en el imperialismo capitalista y con la imposición de la Pax Americana después de la Segunda Guerra Mundial, sino también alcanzó una vigencia exacerbada” (QUIJANO, 1988, p. 54). Tradução: “A hegemonia da “razão instrumental”, isto é, da associação entre razão e dominação, contra a “razão histórica” ou associação entre razão e libertação, não somente se consolidou e se mundializou com a predominância dos Estados Unidos no imperialismo capitalista e com a imposição da Pax Americana após a Segunda Guerra Mundial, mas também atingiu uma validade exacerbada”.
[4] “a emergência dessas utopias específicas pode ser reconhecida como o primeiro momento do processo de constituição da modernidade. Sem o novo lugar do futuro no imaginário da humanidade, a própria ideia de modernidade seria simplesmente impensável”.
[5] “Por sua história peculiar, por seu lugar na trajetória da modernidade, é o território histórico mais adequado para produzir a articulação dos elementos até então separados. A alegria da solidariedade coletiva e a da plena realização individual. Não temos que renunciar a nenhum deles, porque ambos são nossa herança genuína”.
[6] Ver em KRENAK (2019), (2020); e KOPENAWA e ALBERT (2015).
[7] “Não temos, portanto, necessidade de confundir a rejeição do eurocentrismo na cultura e da lógica instrumental do capital e do imperialismo euro-americano ou de outros com alguma pretensão obscurantista de rejeitar ou abandonar as promessas libertadoras originais da modernidade: acima de tudo, a profanação de autoridade no pensamento e na sociedade; das hierarquias sociais; do preconceito e do mito nele fundado; a liberdade de pensar e saber; duvidar e perguntar; expressar e comunicar; liberdade individual liberta do individualismo; a ideia de igualdade e fraternidade de todos os humanos e a dignidade de todas as pessoas. Nem tudo isso se originou na Europa. Nem tudo foi, tampouco, cumprido ou mesmo respeitado. Mas foi com ela que tudo o que viajou para a América Latina”.