Pêlo amargo na narina
Ainda não havia feito a barba. Áspera. E, na narina, aquele pêlo. Pirata. Não, não era seu aquilo. Um pêlo que crescia de dentro pra fora, a incomodar-lhe, a roçar-lhe o buço, a lembrar-lhe a existência, minuto a minuto, a roubar-lhe tempoTeresa Candolo
Um coração apressado, vítima de si mesmo.
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Lutércio andava sobressaltado com o rumor das coisas. Trens atropelavam-se em sua cabeça – fraca.
— Cadê o café? Deus, não encontro nem a cafeteira!
E derrubava-a.
O vidro do recipiente quebrava-se, estilhaçava-se no chão, a paciência de Lutércio esgarçava-se – subia ao teto e voltava, para reunir os cacos do vidro. Corte nos dedos. Sangue. E o olhar vidrado de Lutércio: ansiedade na vida, ansiedade em fazer, ansiedade em se livrar.
Era isso – pressa. Pressa misturada de angústia, um medo enorme que travava a garganta de nosso amigo.
(Embora Lutércio não soubesse que tinha amigos. E amava – desesperadamente. Mas achava que ninguém sabia disso.)
— Deus, como resolver as coisas hoje?
E as coisas embolavam-se. Subiam umas nas outras, tapavam-se, reapareciam, agigantavam-se; e Lutércio lutava sozinho para apequená-las, dar-lhes um lugar, um só, no redemoinho que o envolvia.
— Me tira isso, essa incapacidade que me prende o nó na garganta o tempo todo! Deus, para quando um alívio?
Era o vidro esmagado do frasco, papéis amarrotados na mesa, a roupa esticada com as mãos, na tentativa de brigar com alguém. As mãos machucadas, nervosas, inquietas.
Lutércio roía as unhas. Já havia apequenado todos os dedos. Roía agora a pele também. Roía os seios de si. Os seios, que poderiam ser belos, quase femininos. Seios num homem. Disparates. Chutes.
(É dado acaso ao homem o prazer de seios?)
Seus seios eram seus alvos. A pele, manchada de vergalhões, maculada. As manchas surgiam à noite, quando ficava mais nervoso. São as veias que se rompem – um médico dissera. Mas Lutércio não dava trela. Queria mesmo que lhe cosessem veias mais internas. Outras.
O amor – que postergava – não lhe condizia, pensava.
(Como viver esse amor se ele ainda não conseguia “viver” simplesmente?)
— Humpf! Café amargo. Turco.
Essa coisa de café e filtro não funcionava naquelas mãos trêmulas. Tateava no balcão da cozinha qualquer coisa que quebrasse o amargor. Os dedos tiritavam na pedra fria, mas era uma manhã quente.
Ainda não havia feito a barba. Áspera. E, na narina, aquele pêlo. Pirata. Não, não era seu aquilo. Um pêlo que crescia de dentro pra fora, a incomodar-lhe, a roçar-lhe o buço, a lembrar-lhe a existência, minuto a minuto, a roubar-lhe tempo.
Tempo raro, de pensar, de resolver coisas. (Ou de tentar.)
E pior: fazia-lhe cócegas!
— A pinça, pensou. Onde está?
Não, não estava. As mãos de Lutércio precipitavam-se. Ânsia de se livrar. Ânsia de resolver. Mãos que querem cortar, diminuir, extirpar.
(É preciso apacientar-se pra um dia afagar.)
Uma luta.
— Carolina, a pinça?
— Não sei, não, querido…
Aquela voz musical. Dava nos nervos. Não soava como devia, ressoava. Ecoava na sua cabeça, entre as coisas do dia. Da semana. Do ano. Esferas gigantes, pesadas, trombando e, entre elas, ecos musicais.
Era melhor fazer a barba.
Sangue. Lâmina. E o nervosismo incontido nos dedos instrumentadores.
— Carolina, já vou.
— Bom dia, querido.
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Pêlo amargo na narina.
Manhã.
Café, sombras, e uma trava enorme dentro de si.
Um ho