Pequim reafirma suas ambições navais
Há 400 anos a China tinha uma marinha invejável, mas deixou passar a oportunidade de se tornar uma potência hegemônica. Dessa vez, parece que isso não vai se repetir. Desde 2000, um dos eixos prioritários do governo é a expansão do poderio naval, com o objetivo de influir de maneira “harmoniosa” e “pacífica” no mundo
Em 2006, Daguo Juequi (A ascensão das grandes potências), um documentário da Televisão Central Chinesa (CCTV), teve sucesso estrondoso1. Rigorosa e baseada em entrevistas realizadas com historiadores e dirigentes internacionais, a produção explica como os impérios de Portugal, Espanha, Holanda, França, Inglaterra, Alemanha, Japão, Rússia e Estados Unidos se constituíram, prosperaram e, eventualmente, desmoronaram.
A empolgação popular com esse documentário, exibido em 12 episódios de 50 minutos, é bastante compreensível. Segundo avalia o seu idealizador, Qian Chengdan, professor da Universidade de Pequim: “A ‘raça’ chinesa está revitalizada e, com isso, volta à cena mundial”2.
Daguo Juequi destaca, principalmente, os esforços das grandes potências no setor naval no decorrer do seu processo de ascensão. A abertura para o exterior, o controle de importantes corredores marítimos e de pontos de apoio em áreas de águas profundas, além do domínio tecnológico, do aperfeiçoamento dos seus instrumentos de ação e de sua influência naval são fatores encontrados nas estratégias da maior parte dos “modelos” estudados, qualquer que tenha sido a importância da sua população ou a extensão do seu território.
Em 2000 essa característica passou a ser incluída entre os novos eixos prioritários do governo chinês com o plano de Alta Tecnologia Marítima, que propõe a expansão exponencial do poderio da marinha do Exército Popular de Libertação (M-APL).
Desse ponto de vista, rompendo com um discurso histórico que permaneceu ideologizado ao longo de décadas por obra do Partido Comunista Chinês (PCC), a série Daguo Juequi revela o pragmatismo extrovertido de uma potência em pleno desenvolvimento, dedicada a influir de maneira “harmoniosa” e “pacífica” (duas palavras-chaves da nova política oficial) nas relações internacionais. Abrir a China para o mundo e, sobretudo, o mundo para a China, tal parece ser o credo da nação liderada por Hu Jintao.
Controle dos corredores marítimos
Em 2007, empenhando esforços de diplomacia naval sem precedente, os navios chineses não apenas efetuaram visitas oficiais a portos franceses, australianos, japoneses, russos, cingapurenses, espanhóis e americanos, como participaram de manobras internacionais de luta contra a pirataria marítima, que está recrudescendo.
A ambição que visa priorizar o “soft power” deve ser colocada numa perspectiva que leva em conta o cenário regional e expressa duas estratégias centrais. A primeira diz respeito às reivindicações territoriais sobre Taiwan e, de maneira mais ampla, sobre o perímetro das águas territoriais chinesas, que define a Zona Econômica Exclusiva (ZEE). Da satisfação dessas pretensões depende o livre acesso aos vastos espaços oceânicos do Pacífico e aos corredores marítimos do Sudeste Asiático, para além da península indochinesa. A segunda é a proteção das rotas marítimas de abastecimento em hidrocarbonetos de um país que se tornou o segundo maior importador mundial de petróleo.
Neste exato momento, a primeira dessas metas é determinante. Pequim já conseguiu firmar um acordo amigável com 13 vizinhos3 em relação aos contenciosos fronteiriços terrestres, restando apenas a oposição do Butão e da Índia. Em contrapartida, segundo explica Loïc Frouart, da Delegação para os Assuntos Estratégicos do Ministério da Defesa francês, “em toda a sua extensão, os 14.500 quilômetros de limites marítimos constituem áreas de crises potenciais e de fricções. Neles, os contenciosos são profundos e não-resolvidos”4. No total, Pequim reivindica o domínio pleno sobre 4 milhões de quilômetros quadrados de mar.
No caso de Taiwan, as autoridades chinesas estão particularmente decididas a recuperar sua soberania, “se necessário com uso da força”.A China, por meio da rápida expansão do poderio de sua própria marinha e da redução, ainda que muito relativa, das diferenças em relação à US Navy, a marinha americana, planeja acompanhar psicologicamente a evolução “inelutável” que deve conduzir ao retorno pacífico de Taiwan à pátria-mãe.
Mas a ilha é apenas uma das peças desse xadrez marítimo. A China questiona o Japão sobre a posse das ilhas Diaoyu (Senkaku, em japonês), que abrigam uma base americana. Tóquio, por sua vez, insiste que a sua Zona Econômica Exclusiva ocupa uma extensão de 450 quilômetros a oeste do arquipélago. As reivindicações chinesas explicam-se também pelos interesses em jogo, que ampliam a dimensão do conflito, tais como uma jazida que poderia conter até 200 bilhões de metros cúbicos de gás. A China também disputa com Taiwan, Vietnã, Filipinas, Malásia, Brunei e Indonésia a soberania sobre as ilhas Spratly (Nansha, em chinês) e sobre o arquipélago das Pratas (Dongsha, para os chineses). E vem disputando com Vietnã e Taiwan o domínio do arquipélago das Paracel (Xisha).
Acesso ao alto-mar
O mundo já esqueceu que os chineses sempre se mostraram extremamente reativos. Durante os anos 1950, a marinha da China recuperou, por meio da força, quase todas as ilhotas do litoral que estavam sob o controle dos nacionalistas de Tchang Kai-chek. Em 1974, aproveitando-se da derrota do Vietnã do Sul, ela apoderou-se das Paracel. E, em 1988, assumiu o controle do arrecife Fiery Cross, que vinha sendo ocupado pelos vietnamitas. Baseando-se nesses precedentes, os países da região, todos, aliás, seus antigos vassalos e tributários, mostram-se temerosos diante das ambições navais reafirmadas por Pequim.
Muito além da apropriação das riquezas em hidrocarbonetos ou em peixes do único mar da China meridional, o que de fato importa é o acesso da frota chinesa ao alto-mar, conforme os planos traçados em meados dos anos 1980 por Liu Huaqing5. Trata-se, numa primeira etapa, de se impor, sem contestação marítima possível, a oeste de uma “linha verde” que vai do Japão até a Malásia, passando por Taiwan e pelas Filipinas. A principal concorrente da China é a marinha japonesa, que Pequim já começou a “testar” por meio de repetidas incursões submarinas – uma das quais resultou num incidente envolvendo um submarino nuclear chinês em 2004.
Na fase seguinte, Pequim tentará forçar essa linha de defesa imaginária e descontínua, com o objetivo de passar das águas pouco profundas do mar da China do Leste e do mar da China do Sul para as águas azuis de uma segunda bacia que se estende do Japão à Indonésia. Seu principal obstáculo para a projeção do poderio chinês será a 7ª Frota americana, que vive patrulhando Taiwan. Aliás, Ko Chen-heng, então vice-ministro taiwanês da Defesa, denunciou em janeiro de 2008 a intensa atividade da marinha chinesa nos arredores da passagem de Bashi, um gargalo muito estreito situado entre Taiwan e as Filipinas.
Uma vez que os chineses tiverem resolvido essas primeiras questões regionais, poderão se dedicar mais livremente à segunda meta estratégica, que consiste em garantir a segurança dos corredores de abastecimento em hidrocarbonetos no sul da Ásia. A primeira dessas rotas é utilizada pelos navios petroleiros de menos de 100 mil toneladas, vindos da África e do Oriente Médio, até o mar da China do Sul, passando pelo estreito de Malaca. Vinda das mesmas regiões de produção, a segunda rota conduz os petroleiros gigantes através dos estreitos da Sonda e de Gaspar6. A terceira rota parte da América Latina e passa pelas águas filipinas. A quarta rota, que constitui um trajeto alternativo a partir do Oriente Médio e da África, serpenteia entre os estreitos de Lombok e de Macassar, as Filipinas e o Pacífico Oeste, até alcançar os portos chineses.
O principal gargalo que “estrangula” estes corredores de abastecimento é o estreito de Malaca, por onde passariam 80% dessas importações de petróleo. E, em caso de conflito, o domínio sobre a área é um fator de preocupação. Para remediar o problema Pequim tenta diversificar seus acessos. Em primeiro lugar desenvolvendo uma rede ferroviária que conecta os países da Associação das Nações do Sudeste (Anase); em segundo concretizando o projeto de oleoduto direto sino-birmanês, entre Sittwe e Kunming7; em terceiro auxiliando o desenvolvimento das capacidades de produção em alto-mar de gás natural líquido no Sudeste Asiático, especialmente em Mianmar e na Tailândia, e até mesmo cavando um canal através do istmo de Kra, região ao sul da Tailândia marcada por uma insurgência islâmica endêmica.
Ao mesmo tempo, Pequim vem construindo o “colar de pérolas”, uma série de bases permanentes distribuídas ao longo das orlas do oceano Índico e das rotas marinhas que conduzem ao estreito de Malaca: Marao nas Maldivas, as ilhas Coco em Mianmar, Chittagong em Bangladesh e Gwadar no Paquistão. Está previsto também o envio de tropas para o litoral africano, que vem se mostrando sempre mais aberto aos investimentos chineses.
Além de uma América – mais especificamente os Estados Unidos – que está convencida de que o Pacífico será o palco estratégico mais importante no decorrer dos próximos 50 anos, a China tem dois rivais consideráveis nesta região do mundo: a Índia e o Japão. Uma desconfiança tenaz separa os dois gigantes demográficos: não foi a China que apoiou durante tanto tempo o Paquistão na questão da Caxemira, e não é ela que segue fornecendo a Islamabad seus principais equipamentos de combate? Aspirando ao mesmo status de potência regional com vocação global, Nova Déli, movida por ambições marítimas equivalentes, vem se dotando de uma frota em expansão, cujo objetivo estratégico declarado é fazer do Índico “o oceano dos indianos”. Neste contexto a estratégia do “colar de pérolas” de Pequim é considerada uma grave intrusão.
As relações sino-japonesas, por sua vez, acabam de passar por um período extremamente tenso. Poderosa e bem mais moderna do que a frota chinesa, a marinha nipônica há muito vem mantendo parceria com a sua homóloga americana. Mas o conflito a respeito das ilhas Senkaku revelou um Japão nervoso, atrapalhado em suas ações por causa de uma Constituição pacifista, a qual vem sendo criticada internamente por uma vertente nacionalista em expansão, e indeciso diante das iniciativas atrevidas de Pequim.
Rápida modernização da frota
Ao lado de Nova Déli e de Tóquio, a investida chinesa preocupa igualmente outros protagonistas mais modestos, da Malásia à Indonésia, passando por Cingapura. Eles temem que Washington, atualmente atolada no Iraque e no Afeganistão, deixe o caminho livre para a afirmação da soberania chinesa na região e que essa perda de influência se torne permanente.
Conscientes dessa oportunidade, as bases navais chinesas, os portos fluviais, os diques e as bases submarinas protegidas, vão se multiplicando e se modernizando, acompanhando a explosão econômica de uma nação cujo comércio exterior depende 90% das rotas marítimas.
Todos os sistemas mais importantes estão envolvidos nesse processo: cada uma das três frotas (os almirantados do Leste, em Xangai; do Sul, em Zhanjiang, e do Norte, em Qingdao) dispõe de uma divisão aeronaval própria, dotada de bombardeiros e de caças. No campo das naves anfíbias, foi empreendido um grande esforço para concretizar as ambições chinesas sobre as ilhas Spratly e a Taiwan. Dragadores de minas, patrulheiros lançadores de mísseis e novos navios cargueiros e petroleiros de abastecimento também foram encomendados. Contam para isso com a participação de países estrangeiros: dos catamarãs de alta velocidade WPC australianos aos destróieres Sovremenny e aos submarinos Kilo russos, dos sistemas de combate italianos e franceses aos canhões navais holandeses8.
A China importa, copia, adapta e, boa parte das vezes melhora os equipamentos que mais lhe interessam. Entretanto, em determinados setores como os da guerra eletrônica, dos motores e dos sistemas de combate embarcados de melhor desempenho, ela permanece dependente de países estrangeiros, principalmente da Rússia.
O problema é que a China até hoje não dispõe de nenhum porta-aviões, apesar dos rumores persistentes segundo os quais estaria sendo reformado o Varyag, comprado de Moscou.
Os submarinos ocupam um lugar essencial no programa marítimo global de Pequim. Apenas submersíveis modernos teriam condições de dissuadir a 7ª Frota americana. Assim, os chineses poderiam contar com cinco submarinos nucleares de ataque (SNA) e com um submarino lançador de artefatos (SLDA), o qual é conhecido por transportar entre 12 e 16 mísseis balísticos nucleares de alcance de 3.500 quilômetros. Além disso, o país dispõe de cerca de 30 submarinos movidos a diesel e a eletricidade. Mais de 20 novos submersíveis estariam sendo construídos.
A ambição marítima chinesa parece proceder da frustração de uma potência orgulhosa, que deixou passar a oportunidade de dar a guinada para a hegemonia mundial há 400 anos. Qual será o futuro das águas agitadas do Sudeste Asiático? Os Estados Unidos multiplicaram as iniciativas para consolidar os intercâmbios e a cooperação com as marinhas indiana e japonesa, mas não se esqueceram dos chineses, sem dúvida para tentar controlar, na medida do possível, uma expansão que todos pressupõem ser fulgurante.
A mais recente oferta foi efetuada pela Global Maritime Partnership Initiative (Iniciativa de parceria marítima global), que busca desenvolver uma aliança marítima mundial. Apresentada pela marinha americanaem 2007, a proposta convida cada um dos “aliados” – entre os quais a China – para dar sua contribuição para uma “frota de mil navios” destinada a lutar contra a pirataria. Mas não há certeza alguma de que a China aceite tais propostas “enquanto não tiver conseguido identificar as segundas intenções desse acordo e suas múltiplas implicações a longo prazo9.
Nova chance histórica
O país parece estar decidido a não permitir que qualquer manobra retire sua segunda chance histórica de se desenvolver como uma potência marítima global e soberana. O “perigo amarelo”, como era chamada a ameaça representada pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial, desponta hoje como uma fantasia. Mas nem por isso a China, que não se esqueceu da Guerra do Ópio nem da pilhagem do Palácio de Verão10, permitirá que qualquer nação a ameace ou a force a se submeter. Para tanto, ela se cerca de certas “precauções”. Ainda que suas capacidades estejam muito longe de superar as da frota americana, a história serve como bússola e advertência para a nova marinha chinesa, cada uma das suas realizações assume um valor simbólico. Em 1989, 20 anos antes do crescimento fulgurante da frota, a primeira embarcação da marinha do Exército Popular de Libertação a visitar oficialmente os Estados Unidos foi um navio de treinamento, o Zhang He. Na época, ninguém se preocupou em comentar seu nome. O almirante eunuco Zhang He comandou a poderosa frota da dinastia Ming no século XV.
*Olivier Zajec é encarregado de estudos da Companhia Européia e Inteligência Estratégica (Paris).