Perdendo Heitor
Noites que ela guardaria pelo cheiro do cigarro, da terra batida das estradas furtivas, do desodorante impreciso que ele passava, e, por fim, de muito usá-la, aprová-la, repeti-la, ele a tinha declarado única, nunca conhecera carne, cheiro melhorChico Lopes
Os anos que passara sem vê-lo, a gana, as cicatrizes, o marido morto, tudo isso a autorizara a tomar a decisão que agora a possuía: tinha que ir até ele. Guardara o nome da cidade, o número da placa, o nome da farmácia para que trabalhava, nas viagens regionais. Teria ainda o mesmo carro, uma cor mais para carmim, fotografias da mulher e dos três filhos acima do porta-luvas?
Era escancarar a janela, respirar um pouco daquela brisa de mangueiras, do vago cheiro noturno de jambos e goiabas, acender um cigarro, lembrá-lo. Tinha-o todo ali, na cabeça, à porta do carro, fazendo uma mesura gozadora para que ela entrasse. Os olhos pretos, um jeito único de entrecerrá-los e sorrir, passando o polegar pelo bigode. Heitor. Não houvera homem igual. Quisesse, era fantasma de pegar inteiro, tão fielmente lhe voltava.
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Pelo footing da Trajano Silva o carro subia, estacionando numa rua mais atrás do Cine Fulgor. Ele ficava com um cigarro, à vontade, as pernas cruzadas, encostado à porta, às vezes penteando o cabelo, e nunca se rebaixava a assoviar, piscar, dar sinal de necessitado – era bonito demais para isso, elas que o escolhessem. Saída da sessão das nove, esforçando-se para dissipar uns restos do filme ainda em luta com a realidade, tremeu diante dele, ele notou, aquiesceu com o sorrisinho de canto de boca e, com os olhos, fez a pergunta: E o nosso amigo aí? Ela olhou para o marido, que a levava pelo braço sorridente, sem notar nada. Não dormiu naquela noite. Não dormiria mais, por toda uma semana, até revê-lo.
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Quando entrou no carro, depois da inclinação rebuscada que ele fizera, foi obrigada a depressa pôr a mão sobre o lugar que ele queria, para que constatasse o que você fez comigo, querida. Quis o nome do marido, riu quando ela lhe disse Teotônio: Grande cara, o nosso Teo; que tal o dele, comparado com isto? – e ela era forçada a pegar uma régua que ele trazia no porta-luvas, medir. Quando queria que escondesse as fotografias para ela não se vexar, nada disso, ele exigia que ficassem ali, que testemunhassem – a mulher e as três crianças mantinham aqueles sorrisos sob o arfar, o confronto de carnes, os uivos, gemidos.
Noites que ela guardaria pelo cheiro do cigarro, da terra batida das estradas furtivas, do desodorante impreciso que ele passava, e, por fim, de muito usá-la, aprová-la, repeti-la, ele a tinha declarado única, nunca conhecera carne, cheiro melhor. Ela cedeu ao pedido que fazia seus olhos arderem: marcá-la a canivete, onde quisesse. Com o cabo de osso, a coisa lhe brotou do bolso, rápida, luzindo.
— Renega o nosso amigo…
– Renego.
— Três vezes. E não me faz barulho.
Ela repetiu, ele escolheu as partes à sua total disposição, e foram três cortes rápidos. Ela gritou o mais baixo que pôde.
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Teo lá merecia mais que uma mentira descarada sobre a origem do H? Passava a mão nos quadris, sobre os cortes que iam cicatrizando, pensava, pensava, fumando, aspirando o ar noturno que a deixava com um ânimo insano, metia-se na roupa do encontro, punha-se em frente ao cinema, esperava-o. Nada. Nenhum sinal. Também, nunca lhe arrancara promessa alguma de ficar, era só outra das cidades a que servia, distribuindo os remédios. Ela que recordasse, que se valesse de lembranças, mais nada. As da última noite, irremediáveis – como voltaria a dormir satisfeita ao lado de Teo tendo guardado tão bem a boca lambendo as feridas longamente, a grama, o cheiro de fumo, a lua, os galos da manhã depois de não sabia quantas vezes? Sim, ela era a única, e ele se esmerara tanto porque fora a despedida.
Daí a dois anos, despedia-se era de Teo, que perdera peso, ficara mais amarelo e apático, se tal era possível, e, voltando de uma viagem, baixara hospital para não mais sair.
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A cidade pequena, fácil saber, na farmácia, que houvera um Siqueira, viajante, agora trabalhando em outra coisa – o rapaz que a atendera, achando-a nervosa, se deu ao trabalho de segui-la até a calçada, explicar, cuidadoso, gesticulando muito, para onde ela teria que ir. Achou promissor um cheiro de cigarro, algo daquele desodorante – de que ela nunca conseguira saber a marca – misturando-se ao de grossas folhas de árvore, de húmus impreciso atrás de muro descascado, na curva de uma rua.
Foi dobrá-la e dar com a casa ali, um carro – não mais aquele – na garagem aberta. E de cara, ele, ele inequívoco, de calção, molhando plantas com uma mangueira. Mas, de onde lhe tinham vindo a barriga, os pneus? Os belos olhos pretos lá, mas o rosto sem o bigode parecia-lhe uma profanação. Uma voz feminina o chamou. Uma mulher muito magra, de avental, o cabelo desarrumado, um olhar hostil, saiu à varanda, repetindo seu nome. Ela a imaginou podando com tesoura de jardim a farta relva negra, sua marca, e ele, inerme, admitindo, deixando.
Heitor, aquilo? Falava baixo, movia-se devagar, estava macerado – por que não vira, naquelas noites, a carne branca, falível, a feia ausência de pelos? Seguiu a mulher para dentro, sem ânimo, sem olhar para trás, sem suspeitar de sua presença atrás de uma árvore, um dos filhos o pegando pela cintura, como se o arrastasse – herói puído, pobre diabo pornográfico, marido, pai. Ouviu lá dentro a voz da mulher, muito alta: “Queira ou não queira, viu?”. Viu-o, viu-o inteiro, pela primeira vez, tudo entendendo. Cravou as unhas no tronco, esfregou a cabeça nele, puxou-se os cabelos. Ansiou por um canivete.
Tinha todas as ruas da pequena cidade para si, e nenhum caminho. Escolheu um bar-restaurante que, anoitecendo, se enchia. Numa mesa de canto, sob uma janela, ficou satisfeita de ouvir a chuva despencar tão perto de seus ouvidos. Pediu uma bebida. Uma segunda. Uma terceira.
A cada copo encerrado, ela o renegou.
Até que, muito mais tarde, um desconhecido maduro, claro, de rosto liso, entrou, olhou-a,