Perspectivas e desafios da Estratégia Nacional de Bioeconomia
Diante das crises climática e de perda da biodiversidade, a implementação de políticas de fomento à bioeconomia precisa ser um compromisso inadiável para o Brasil e para o mundo
O governo brasileiro instituiu por meio do decreto 12.044 de junho de 2024 uma Estratégia Nacional de Bioeconomia. No Brasil e no mundo, há uma urgência em promover o desenvolvimento da bioeconomia, diante dos desafios climáticos e socioambientais de nosso tempo. Essa ambição é frequentemente atravessada por impasses relacionados ao escopo de sua definição, concorrência de narrativas e acesso ao financiamento que vêm caracterizando o cenário internacional desse campo. Neste artigo, examinamos o decreto à luz de avanços, desafios e perspectivas que ele impõe ao desenvolvimento da bioeconomia no Brasil e analisamos como ele pode incidir especificamente sobre a Amazônia.
Em primeiro lugar, é importante reconhecer o alinhamento do conceito estabelecido pelo governo com os parâmetros que vêm sendo promovidos pela literatura especializada. O decreto estipula que bioeconomia faz referência ao “modelo de desenvolvimento produtivo e econômico baseado em valores de justiça, ética e inclusão, capaz de gerar produtos, processos e serviços, de forma eficiente, com base no uso sustentável, na regeneração e na conservação da biodiversidade, norteado pelos conhecimentos científicos e tradicionais e pelas suas inovações e tecnologias, com vistas à agregação de valor, à geração de trabalho e renda, à sustentabilidade e ao equilíbrio climático.”
Embora amplo, o conceito valoriza a conservação e a restauração da biodiversidade e ratifica a importância do conhecimento de populações indígenas e tradicionais para o desenvolvimento da bioeconomia. Esse aspecto é incomum nas definições mais difundidas em agências governamentais mundo afora, mas desponta como crucial para a realidade brasileira, especialmente quando olhamos para a Amazônia, território no qual os produtos do agroextrativismo têm peso na economia formal e informal.
Para além da questão conceitual, as diretrizes da Estratégia Nacional de Bioeconomia apontam para um modelo de desenvolvimento que integra diferentes agendas, incluindo conservação ambiental, geração de riquezas e justiça social. Esses temas se relacionam às distintas formas de bioeconomia presentes na região amazônica. Uma delas é a bioeconomia da sociobiodiversidade, que agrega valor à floresta viva e aos conhecimentos e modos de vida de comunidades tradicionais. Assim como outras variantes de bioeconomia, ela tende a se beneficiar de processos biotecnológicos baseados no uso da biodiversidade amazônica e suportados por programas de ciência, tecnologia e inovação (C&T&I).
Ainda assim, há certo consenso, na literatura especializada, de que essa bioeconomia é historicamente a mais carente de acesso a recursos financeiros. Essa situação contrasta com sua importância na superação dos desafios socioambientais impostos pela crise climática e ambiental. Diante disso, as treze diretrizes distribuídas no artigo terceiro do decreto indicam uma perspectiva otimista para essa vertente da bioeconomia brasileira, uma vez que explicitamente abordam a importância da preservação da biodiversidade e da autodeterminação e gestão de povos indígenas e tradicionais em seus territórios. Isso pode resguardar as particularidades da capacidade de produção de comunidades tradicionais, cuja escala frequentemente se dá pela soma de iniciativas, e não pelo aumento de produtividade, como ocorre em outros setores. Tal percepção é fundamental para que não se incorra no equívoco de “padronização” de modos de produção, mesmo que com o intuito de garantir a sua sustentabilidade. Além disso, as diretrizes do decreto incentivam a inserção das mulheres e jovens na bioeconomia, em linha com reivindicações de movimentos sociais que demandam maior protagonismo local em tomadas de decisões políticas. Essa abordagem é adotada sem negligenciar o papel primordial a ser desempenhado pelo agronegócio e por setores industriais na alavancagem da bioeconomia nacional, tal como indicado em itens referentes à descarbonização de processos econômicos, bioindustrialização e desenvolvimento científico e tecnológico, entre outros.
Há, portanto, um chamado para que os diferentes setores econômicos e sociais que atuam em nossa bioeconomia contribuam para fazer do Brasil um protagonista na promoção de um modelo de desenvolvimento sustentável que responda aos desafios contemporâneos. Entretanto, a despeito do cenário positivo traçado pela publicação do decreto, um desafio será a manutenção do empenho do governo para estabelecer o Plano Nacional de Desenvolvimento da Bioeconomia previsto em seu artigo sétimo. Esse é um processo urgente, mas que precisa ser democrático e participativo, de modo a facilitar a aceitação das políticas em nível local e promover a inclusão de lideranças amazônicas na Comissão Nacional a ser instituída para sua governança. Ainda assim, uma demora excessiva pode vir a prejudicar a operacionalização da Estratégia, sobretudo no que tange ao estabelecimento de instrumentos financeiros, metas e indicadores para o desenvolvimento da bioeconomia brasileira.
Os enquadramentos e as disposições presentes em mecanismos financeiros moldarão o desenvolvimento do campo, de modo que urge que os desdobramentos previstos no decreto sigam se concretizando em curto e médio prazos. Com isso, um ciclo virtuoso poderia se instaurar em prol da bioeconomia do país. Isso requer o engajamento de atores ainda não alinhados aos preceitos de economias compatíveis com a floresta em pé e a prosperidade social, bem como a viabilização de empreendimentos comunitários por ora prejudicados por anos de falta de investimentos no setor, em meio a um cenário de exclusão dessas atividades da economia formal. É também essencial que o Estado atue estrategicamente por meio de seu poder de compra para fomentar a bioeconomia da sociobiodiversidade. Com as compras públicas representando 12% do PIB, há um potencial significativo para impulsionar mercados de produtos da sociobioeconomia, como demonstrado pelo sucesso do Programa Nacional de Alimentação Escolar, que demandou 1,6 bilhões de reais da agricultura familiar em 2022. Esse estímulo também pode ocorrer por meio de assistência técnica e educação com foco na gestão de jovens extrativistas, dentre outras possibilidades. Em última instância, toda a economia nacional seria beneficiada por esse processo, com novos empregos e atividades econômicas ajudando o Brasil a se tornar a potência ecológica e bioeconômica que pode ser.
Em suma, a Estratégia Nacional de Bioeconomia traz promessas e direções otimistas para as bioeconomias presentes no território brasileiro e amazônico. No entanto, a operacionalização do Plano Nacional de Desenvolvimento da Bioeconomia permanece como um desafio, tendo em vista o imperativo de conciliar interesses de grupos distintos que compõem esse ecossistema e a necessidade de disponibilizar recursos e mecanismos financeiros para tal. Esse elemento é particularmente dramático no contexto de restrições orçamentárias enfrentadas pelo estado brasileiro, que explicitam a necessidade de participação do setor privado no processo. Diante das crises climática e de perda da biodiversidade, a implementação de políticas de fomento à bioeconomia precisa ser um compromisso inadiável para o Brasil e para o mundo. Os próximos passos nessa direção devem ser dados com urgência e responsabilidade.
Andrea Azevedo é Diretora Executiva do Fundo JBS
Beatriz Saldanha é Economista e Integrante do Núcleo de Governança da Uma Concertação pela Amazônia
Eduardo Rocha é Gerente de Engajamento da PPA
Eduardo Spanó é Diretor Executivo do Instituto Jataí
Fernanda C. Stefani é CEO 100% Amazônia
Fernanda Rennó é Integrante do Núcleo de Governança da Uma Concertação pela Amazônia e Facilitadora do GT de Bioeconomia
Flora Bittencourt é do Instituto Peabiru
Georgia Jordão é Gestora de Conhecimento da Uma Concertação pela Amazônia
Joanna Martins é CEO Manioca
João Meirelles é Diretor Geral do Instituto Peabiru
Juliana Maria de Barros Freire é do Instituto Physis – Cultura & Ambiente
Karla Pereira é do MJV Tecnologia e Inovação
Lívia Pagotto é Secretária Executiva da Uma Concertação pela Amazônia
Marysol Goes é da Fundação Amazônia Sustentável/Green Economy Coalition
Pedro Lange Machado é Pesquisador de pós-doutorado no Cebrap e integrante do GT de Bioeconomia
Rosana Filomena Vazoller é integrante do Núcleo de Governança da Uma Concertação pela Amazônia
Zysman Neiman é Cátedra Sustentabilidade/Universidade Federal de São Paulo