Pertubações eleitorais
O crescimento das taxas de abstenção no plano nacional há 30 anos não significa que aumente o número daqueles que não dão nenhuma atenção às causas políticas. A abstenção pode, por exemplo, constituir uma verdadeira escolha para espectadores informados das questões políticas, mas desligados da competição eleitoralBlaise Magnin
Concluídas as eleições cantonais (estaduais) francesas de março de 2011, o recorde de abstenção (mais de 55% dos inscritos) e a reaparição da Frente Nacional (FN) chamaram a atenção dos comentaristas políticos. Abster-se de votar ou votar em candidatos suspeitos quanto a seus ideais democráticos perturbam o funcionamento normal do sistema representativo, do qual os governantes obtêm sua legitimidade.
Alternadamente apresentados como “aberrantes” ou “patológicos”, os comportamentos abstencionistas contradizem a mitologia da democracia representativa. Esta vê na participação eleitoral o ato fundador que permite ao cidadão expressar suas opiniões e preferências políticas.
O voto resulta de uma avaliação dos méritos dos respectivos programas e das ideologias apenas por uma ínfima minoria de eleitores. Mais ainda, o constante interesse pela política é muito desigualmente distribuído entre os grupos sociais: os mais carentes cultural e socialmente são privados dos meios para ter conhecimento do funcionamento do campo político.
Entretanto, na França, as taxas de participação eleitoral permaneceram surpreendentemente estáveis e elevadas (entre 70% e 80%) entre 1848 e o início dos anos 1980 – data a partir da qual as taxas vêm diminuindo regularmente. Esse aparente paradoxo pode ser resolvido se considerarmos que os eleitores não são indivíduos isolados com preferências políticas desligadas de suas outras experiências sociais. Desse modo, as mobilizações eleitorais são coletivas, e é o fato de pertencer a um grupo social que determina em grande medida as possibilidades de participação em uma eleição, assim como as escolhas eleitorais. Quando de eleições com abordagens particularmente divididas, como o plebiscito sobre o Tratado Constitucional Europeu (TCE) de 2005, os resultados, em alguns casos, casam com as polarizações sociais de maneira exagerada: no 16º arrondissementde Paris, o “sim” teve os votos de 80% dos eleitores, contra 30% em Aubervilliers.
Hoje, é exatamente diante de um fenômeno de abstenção quase coletivo que os bairros populares se veem confrontados. No bairro dos Cosmonautes, em Saint-Denis, os pesquisadores Jean-Yves Dormagen e Céline Braconnier revelaram que, a partir de meados dos anos 1980, a taxa de participação média passou de 80% para 50%, ficando agora entre 10 e 20 pontos abaixo da média nacional.1 A partir de agora, a segregação eleitoral aumenta a segregação social e espacial.
“As pessoas votam em grupo.”2 No seio da grande burguesia, por exemplo, as relações sociais formadas em torno de manifestações mundanas, de espaços residenciais e de práticas de lazer específicas, descritos pelos sociólogos Monique e Michel Pinçon-Charlot como um “coletivismo prático”,3 mantêm o sentimento de coesão que é a base ao mesmo tempo da grande mobilização eleitoral e do voto conservador.
Por isso, o sentimento de pertencer a um grupo social baseado em um conjunto de interesses comuns se deve mais frequentemente ao trabalho de educação e ao grupo de representantes políticos, sindicais e associativos. A regra vale também para as classes médias intelectualizadas, que é um dos grupos com maior parcela de pessoas com ensino superior, portanto a priori mais dispostas a se interessar por política e ir às urnas. Em 2002, a participação média dos diplomados nos segundo e terceiro ciclos do ensino superior era de 80%, e apenas 5% deles se abstiveram em todas as eleições, enquanto entre as pessoas sem diploma essas taxas eram respectivamente de 62% e 20%.4 As entrevistas que realizamos com professores ligados ao Partido Socialista (PS) entre 2004 e 2010 confirmam o papel fundamental do trabalho de mobilização política. A maioria não se lembrava de ter se abstido nem de ter votado – salvo muito excepcionalmente – em outro partido que não o PS. Eles não justificaram sua fidelidade eleitoral com uma “moral cívica” qualquer nem discorreram sobre os méritos comparados do pensamento de Jaurès, Lenin e De Gaulle ou sobre os programas do PS, do Partido Comunista Francês (PCF) e da União por um Movimento Popular (UMP). Eles fazem apelo principalmente a uma fidelidade com a “esquerda” (ligada à sua experiência prática com as desigualdades) e um interesse pela política originada dos contínuos estímulos durante seus estudos no Instituto Universitário de Formação dos Professores (IUFM) e do contato com militantes pertencentes à constelação de organizações que irrigam o mundo do ensino. Eles relatam ainda os momentos de efervescência que as campanhas eleitorais representam para seu local de trabalho, bairro ou associações que frequentam, onde são quase proibidos de ficar de fora.
Mais ainda, enquanto para as classes dominadas a política constitui um jogo esotérico sobre o qual elas dirigem um olhar marcado pela distância e pelo ceticismo irônico, a identificação com um “campo” político repousa antes de tudo em uma “delegação global e total pela qual os mais desfavorecidos concedem em conjunto ao partido de sua escolha uma espécie de crédito ilimitado”,5 e não unicamente sobre o desenvolvimento de convicções ideológicas ou de uma consciência propriamente política. O desaparecimento das estruturas que antes alimentavam a politização dos locais de vida, de lazer e de trabalho nos bairros operários e garantiam as taxas de participação superiores à média nacional nos anos 1960 e 1970 levou, no entanto, a uma alta da abstenção.
No bairro dos Cosmonautes, a célula do PCF, antes muito ativa, enfraqueceu-se no início dos anos 1990, à medida que a desindustrialização de Saint-Denis, a pressão do desemprego e o desenvolvimento da subcontratação e da concorrência entre temporários e assalariados impediam a construção de uma solidariedade profissional e afastava a atividade sindical. Como nenhuma identidade coletiva eramais representada nem mais mobilizável no bairro, os habitantes foram remetidos à instabilidade de suas condições de existência e de seu status socioeconômico e, finalmente, à indiferença pelo universo político que fracassou em resolver suas dificuldades práticas cotidianas e no qual eles não se sentem motivados a intervir. No bairro dos Cosmonautes, 20% dos residentes estão inscritos na seção eleitoral de outro bairro e 28% dos inscritos não moram no bairro. Entre os “mal inscritos” se encontra a maioria dos abstencionistas e dos eleitores mais intermitentes. Mais ainda, 25% dos potenciais eleitores não figuram nas listas eleitorais, aos quais se somam os estrangeiros privados do direito de voto. O eleitorado efetivo não representa mais que um terço da população em idade de participar de uma eleição.
A opção pela direita
O voto a favor da Frente Nacional remete principalmente à maneira como certas categorias sociais conjuram nas urnas sua exclusão coletiva. Essa escolha eleitoral atinge sem dúvida algumas frações do mundo operário, mas não é de modo algum dominante no conjunto do grupo, ao contrário da ladainha incansavelmente repetida há 25 anos da “esquerda-lepenista”, segundo a qual o voto operário migraria do PC para a FN.6 No entanto, por um lado, a maioria dos operários que hoje vota na FN são antigos eleitores de direita radicalizados; por outro, o “primeiro partido” operário é o da abstenção. Longe de ser privilégio da classe operária, o voto FN atrai grupos heterogêneos que vivem uma degradação ou uma desestabilização de suas condições de trabalho e de existência:7 aposentados obrigados a coabitar em habitações populares com imigrantes que os remetem a uma imagem de precariedade da qual eles desejam escapar; donos de pequenas empresas e artesãos que encontram dificuldades financeiras por causa da crise; representantes de parcelas decadentes da burguesia que têm dificuldade para manter sua herança e cujo modo de vida e crenças se encontram marginalizados; membros das pequenas classes médias assalariadas, proprietários de casas geminadas na periferia parisiense, que veem os representantes das classes médias superiores deixarem seu bairro para serem pouco a pouco substituídos por uma comunidade de refugiados turcos perturbando um convívio pequeno-burguês que simbolizava sua ascensão social.
Por razões estruturais ou conjunturais diferentes, todos podem encontrar na oferta política da FN um canal de expressão de seu ressentimento e de sua compreensão da desqualificação social, projetar nas palavras de ordem anti-imigrante a defesa de sua própria imagem e manifestar sua desconfiança em relação aos partidos do governo que se recusaram a falar em seu nome ou fracassaram na tentativa de atender a seus interesses específicos. Pouco representada nas instituições republicanas e apresentando-se como rejeitada pelos principais atores políticos, a Frente Nacional agrega descontentamentos heterogêneos e conjunturais.
De fato, o eleitorado da FN é muito instável: nos últimos vinte anos, mais de um quarto dos inscritos já teria dado seu voto ao candidato da Frente, mas seus eleitores constantes representavam somente 3% dos inscritos.8 Certamente não se pode reduzir o voto a favor da FN ao populismo, ao autoritarismo ou a uma suposta xenofobia de seu eleitorado – como também não se pode ver no “esquerdismo” recente do discurso da nova presidente da FN as razões de sua popularidade atual. Esta se baseia provavelmente no descrédito de um presidente que pretendia trazer os eleitores da Frente para a UMP, ao se apropriar das temáticas mais direitistas defendidas pela FN e, com isso, contribuir para legitimá-las.
O crescimento das taxas de abstenção no plano nacional há trinta anos não significa que aumente continuamente o número daqueles que não dão nenhuma atenção às causas políticas e continuem afastados do jogo eleitoral. A abstenção pode, por exemplo, constituir uma verdadeira escolha política para espectadores informados das questões políticas, mas desligados da competição eleitoral. Além disso, os franceses votam de modo cada vez mais intermitente, e os eleitores irregulares parecem agora mais numerosos que os “participantes” sistemáticos.9 Após terem contribuído amplamente para a desestruturação do grupo operário e portanto para a ascensão da abstenção em seu seio, o trabalho contínuo de políticas para diminuir o Estado e os discursos alarmistas que as acompanharam alimentaram o crescimento desse abstencionismo.
A suposta impotência dos dirigentes políticos perante as exigências dos mercados facilitou essa restauração conservadora. Ela esteriliza também os protestos populares que se expressam nas ruas, como no decorrer de movimentos sociais prolongados e maciços (defesa da aposentadoria em 2003 e em 2010) ou nas urnas (referendo sobre o Tratado Constitucional Europeu em 2005). Nos dois casos, conduzida a fórceps, a reforma neoliberal mancha a mitologia da democracia: por que votar se trata apenas de conferir aos governos a legitimidade de governar como os mercados desejam?
Blaise Magnin é Pesquisador em Ciências Políticas da Universidade Paris Quest Nanterre.