“Perturbador”: do pacto narcísico da branquitude à obliteração dos “outros”
Não se pode entender o pacto de autopreservação racial, de manutenção de privilégios da branquitude e de aprofundamento de desigualdades, evidenciado na defesa veemente de Porchat a um espetáculo criminoso de seu par, sem antes compreender o dispositivo de poder denominado branquitude
O relógio passava das 19 horas do dia 04 de junho de 2022 quando Léo Lins, postado no centro do palco do Teatro Positivo, em Curitiba – PR, trajando uma calça amarela e uma camisa vermelha, de braços semiabertos e com o microfone à mão, dava início ao especial de comédia denominado “Perturbador”. Após quase um minuto de aplausos e gritos, o humorista, agradecendo a presença das quase quatro mil pessoas que estavam no teatro, lembrou dos dois últimos especiais de comédia que gravou, afirmando que recebeu ameaças de morte e sofreu agressões na rua, o que o motivou a parar o antigo show e “começar um mais pesado”. Após as risadas que invadiram o ambiente, o comediante diz que aquela é a plateia que ele gosta, “cúmplices de um crime” e que os usaria no tribunal, quase que num prenúncio daquilo que enfrentaria meses depois.
Durante os quase 75 minutos de duração do show “Perturbador”, posteriormente disponibilizado em plataformas digitais, como o YouTube, Léo Lins, um homem branco, ridicularizou temas como racismo, pedofilia, gordofobia, estupro, zoofilia, deficiências e o assassinato de Marielle Franco, além de ironizar tragédias e crimes, como quando ele afirma que “negro não consegue achar emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim” ou, ainda, que “se alguém fala ‘um estupro’ é pesado. ‘Um estuprito’, é divertido. ‘Um estuprito?”. Essas “piadas”, no entanto, que despertaram risadas àqueles presentes no teatro e críticas de diversos segmentos sociais quanto ao conteúdo criminoso do show, não passaram despercebidas das pessoas que compõem o sistema de justiça brasileiro.
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Isso porque o Ministério Público de São Paulo (MPSP), através do Núcleo Especializado em Investigações Cibernéticas e da Promotoria de Justiça e Direitos Humanos, acionou o Poder Judiciário com vistas a impedir Léo Lins de “continuar praticando e incitando crimes de ódio de forma sistemática e disseminada”[1], de forma que o órgão ministerial requereu diversas medidas para atingir tal fim, como o pedido de remoção do show “Perturbador” das plataformas digitais.
Atendendo aos pedidos do Ministério Público, a juíza Gina Fonseca Corrêa, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), então, determinou a retirada do especial “Perturbardor” das plataformas digitais, além de proibir Léo Lins, em razão dos comentários odiosos, preconceituosos e discriminatórios, de “manter, transmitir, publicar, divulgar, distribuir, encaminhar ou realizar download de quaisquer arquivos de vídeo, imagem ou texto, com conteúdo depreciativo ou humilhante” relacionados à qualquer categoria considerada enquanto grupo vulnerável ou minoria, bem como proibiu o humorista de realizar comentários, em suas apresentações, relacionados às minorias mencionadas. Além disso, a juíza proibiu o comediante de deixar a cidade em que reside por mais de dez dias sem autorização judicial, impondo a Léo Lins a obrigação de comparecimento mensal em juízo para “informar e justificar suas atividades”, sob pena de multa diária de R$ 10 mil em caso de descumprimento das determinações.
Em razão do segredo de justiça imposto à ação, contudo, o caso somente veio à tona quando o próprio Léo Lins divulgou em sua conta do Instagram, no dia 13 de maio de 2023, que a gravação do seu show seria removida da internet a pedido do Ministério Público, gerando comentários de indignação de parte dos seus seguidores e algumas matérias jornalísticas da mídia ligada à direita, que circularam, de modo limitado, entre o público ligado ao comediante. Foi somente três dias depois, no dia 16 de maio de 2023, quando Fábio Porchat, também comediante, compartilhou em sua conta do Twitter uma reportagem relacionada ao caso, que nossas redes sociais foram preenchidas indelevelmente pelas notícias, desta vez produzidas e massificadas pelos sites jornalísticos tidos enquanto tradicionais, redundando em uma clara dicotomia que pode ser resumida entre aqueles que acreditam que a decisão da juíza Gina Fonseca Corrêa se constitui enquanto censura prévia e aqueles que defendem a legalidade da medida ante o conteúdo manifestamente criminoso e violento.
No Twitter, rede social em que acumula 9,2 milhões de seguidores, o apresentador e humorista Fábio Porchat, ante a manchete “Justiça derruba especial de comédia de Léo Lins e proíbe piadas contra minorias”, afirmou que “isso aqui é uma vergonha! Inaceitável”, comentário que rendeu uma profusão de críticas ao autodenominado “racista em desconstrução”, uma vez que a defesa da manutenção do show de Léo Lins, que contém piadas racistas e sátiras à escravidão, mostra-se, aparentemente, incongruente com a luta antirracista a qual Fábio Porchat se diz aliado “faz tempo”.
Sob o argumento da liberdade de expressão, Fábio Porchat e uma porção de outros comediantes – brancos em sua maioria, note-se – passaram a defender Léo Lins, valendo-se, entre outros movimentos, da atuação contra a lei nº 14.532/2023, que tipificou o crime de injúria racial como racismo e passou a prever pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e que foi usada como fundamento da decisão da juíza Gina Fonseca Corrêa. Fábio Porchat classificou a Lei 14.532/2023, considerada um marco na luta antirracista, como “um disparate” e “perigosa”.
Tomando a sério esses posicionamentos, sobretudo aquele adotado por Fábio Porchat, não foge aos olhos e, portanto, à análise, o aparente conflito de posições de alguém que afirma ser “muito aliado nessa luta [contra o racismo] faz tempo” e, no mesmo texto, diz que irá “trabalhar pra impedir essa lei de entrar em vigor”, em referência à lei 14.532/2023, defendendo a permanência do show de Léo Lins nas redes, ainda que com conteúdo escancaradamente racista. Essa contradição de ideias chamou a atenção e, em alguma medida, chocou algumas pessoas que acompanham os posicionamentos de Fábio Porchat, de forma que na tentativa de explicar o aparente conflito, Porchat se apegou às premissas de que piada racista não é crime, eis que a liberdade de expressão deve imperar, afinal de contas, Léo Lins teria “o direito de ofender”.
O que se apresenta enquanto um conflito de posicionamentos condensado, superficialmente, sob a lógica do argumento genérico de defesa da liberdade de expressão, contudo, guarda relações mais profundas e complexas que não podem ser explicadas de forma alheia aos processos de racialização e do lugar ocupado pela branquitude no Brasil.
O pacto da branquitude
Digo isso não somente porque a raça e os processos de racialização cruzam e constituem o show “Perturbador” de Léo Lins, quer em suas piadas racistas ou na escolha deliberada, por parte de um homem branco, de satirizar temas sensíveis e dolorosos como a escravidão, mas também porque a tomada de posição em favor de Léo Lins por parte de Fábio Porchat, Antonio Tabet, Oscar Filho, Danilo Gentili e outros, figuras heterogêneas e com pensamentos diversos, não se dá tão somente por apreço ao “humor” ou ao “direito de ofender”, mas, sobretudo, em razão da necessidade pactuada de autopreservação, sua e de seus pares brancos, em lugares estruturais de privilégio, sendo esses lugares de distinção constituídos através de condições materiais ou simbólicas, como na possibilidade do branco, através da piada sobre o negro, ser tido enquanto o normal, desracializado, comum e universal, ao tempo que o negro e sua história, alvo da risada, é anormal, diferente e suficientemente racializado para ser tido enquanto “o outro”.
Não se pode entender o pacto de autopreservação racial, de manutenção de privilégios da branquitude e de aprofundamento de desigualdades, aqui evidenciado na defesa veemente de Porchat a um espetáculo criminoso de seu par, sem antes compreender o dispositivo de poder denominado branquitude. Nas palavras de Ruth Frankenberg, a branquitude pode ser compreendida enquanto “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros, e a si mesmo, uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo”[2], isto é, a raça, uma vez que a branquitude somente pode assumir esse lugar de vantagem estrutural quando a própria sociedade é construída a partir da dominação racial e da atribuição de signos, já que, em sendo a branquitude, também, um ponto de vista, o lugar racial a partir do qual os brancos se veem e enxergam os “outros” acaba por construir as diferenças estruturantes entre “nós” e “eles”.
Digo isso porque, em que pese os brancos, como os negros, serem sujeitos racializados ou ao menos racializáveis, há, no Brasil, uma associação inexorável entre a raça e o negro, formando, no nosso imaginário, a ilusória ideia de que raça é negro e negro é raça, ao tempo que o sujeito branco estaria acima e à distância dessas relações de poder, erigindo-se como o ser universal, padrão, desracializado, dotado de razão e, portanto, de humanidade. Distante disso, contudo, a realidade nos mostra que o negro é produto dos brancos. É que, ao longo do tempo, os brancos se valeram do signo do negro para diferenciar a eles mesmos daqueles que, distantes do ser humano “ideal”, são considerados anormais, dissociados da terra, estrangeiros e, assim, subalternizados, animalizados e sujeitos à dominação. No fim, a branquitude atribui ao “outro” aquilo que ela mesma é, tentando, desesperadamente, nas palavras de Toni Morrison, “confirmar a si mesma como normal”[3].
Os negros como nossos “outros”.
Assim, no alto de sua confortável posição estrutural de poder material e simbólico, os brancos, com vistas à manutenção dos seus privilégios raciais, dispensam esforços de autopreservação de poder através de um pacto subjetivo e silencioso a que Cida Bento chamou de pacto narcísico da branquitude, como quando assumem uma defesa incongruente de um especial de humor que se vale de piadas racistas e criminosas. É certo que o pacto narcísico da branquitude, por óbvio, em sendo um acordo silencioso e subjetivo, não se constitui através de “reuniões às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros”[4], embora, na prática, a preservação de vantagens raciais redunde, necessariamente, na criação e manutenção de desigualdades fundadas também na raça. A pretensa defesa da liberdade de expressão e do “direito de ofender” por Porchat, portanto, embora pareça uma ode à liberdade pelos olhares pouco atentos, nada mais é do que uma tentativa de manutenção de privilégios simbólicos, seu e dos seus pares brancos, privilégios que, por certo, geram processos correlatos de hierarquia, desigualdades e obliteração do “outro”, tudo fundado na raça.
Engana-se, porém, quem acredita que a defesa pactual e narcísica de Fábio Porchat em favor de Léo Lins se apresenta enquanto excepcional ou de difícil manifestação no cotidiano. Ao contrário disso, esses dispositivos de poder são acionados diariamente nas mais diversas formas relações interpessoais, indo desde um jogador de futebol negro que, vítima de racismo e após levar um mata-leão de um jogador branco. é questionado por repórteres se irá pedir desculpas até às preterições nas escolas e empresas sofridas por pessoas negras. Enfim, ainda que não conscientemente – embora muitos tenha ciência -, pessoas brancas, sob o medo e a ameaça de perderem os seus privilégios, beneficiam os seus iguais em detrimento daqueles que deles se diferenciam ou são diferenciados.
Parece-me certo, ao fim, que se Léo Lins ou qualquer outro “racista em desconstrução” deseja fazer piada com assunto delicado, como fez o humorista com a “piada” sobre a escravidão no Brasil, e ter o pretenso “direito de ofender” sem, no entanto, cometer qualquer espécie de crime, deveria pensar em fazer humor sobre o legado da escravidão para os brancos, uma vez que, para além de ser um assunto intocado, os brancos “saíram da escravidão com uma herança simbólica e concreta extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho de quatro séculos de outro grupo”[5], isto é, nós negros. Que a genuína luta antirracista incomode, como tem incomodado, seja os abertamente racistas, seja os racistas em desconstrução.
José Clayton Murilo Cavalcanti Gomes, mestrando em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (PPGDH) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais também pela UFPB e advogado. Dedica-se a atividades de pesquisa acerca de processos de violência e criminalização e políticas raciais, de gênero e sexualidade.
[1] Trecho da medida cautelar ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo tornado público pelo próprio Léo Lins. A ação corre em segredo de justiça, de forma que os trechos aqui citados, tanto da petição inicial quanto da decisão acerca da controvérsia foram extraídas de informações fornecidas pelo requerido Léo Lins e por pessoas que tiveram acesso à decisão judicial.
[2] FRANKENBERG, R. (1999). White Woman, race masters: The social construction of whiteness. USA: University of Minnesota.
[3] MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p.54.
[4] CIDA, Bento. Pacto da branquitude. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. p. 18.
[5] BENTO, M. A. & CARONE, I. (Orgs.). Psicologia Social do Racismo (2a. ed.). São Paulo: Vozes, 2002, p.27.
Excelente artigo. Muito claro e objetivo.