Pesquisadores chineses defendem reformas no país
Uma crítica fundamentada da maneira como as autoridades chinesas lidam com os movimentos sociais. Não se trata de desafiar o regime nem de reforçar a repressão, mas sim de encontrar uma outra via que possa conciliar protesto social e estabilidade política: fazer do social a base para uma reforma políticaShein Yuan, Guo Yuhua, Jing Jun e Sun Liping
(Cambojanos trabalham em construção de porto na província de Kandal, na China)
Após trinta anos de desenvolvimento econômico, graças a uma política de reforma e de abertura, a China chegou a um momento crucial de sua transformação social. A situação pode ser resumida em três constatações: o desenvolvimento da economia é rápido; a estabilidade política está assegurada; e fortes contradições sociais têm surgido, mas a possibilidade de que desemboquem em distúrbios sociais de grande envergadura permanece baixa.
Em consequência, parece-nos que o momento é favorável a uma mudança nos métodos usados para garantir a “estabilidade” do país.1 É chegado o tempo de se envolver em um processo de “governança institucional/corporativa” mais eficiente e menos oneroso, com base na tomada em consideração dos interesses sociais divergentes. Esperar ainda mais pode revelar-se um erro histórico.
Na verdade, entramos em um círculo vicioso: em todos os níveis, os governantes gastam cada vez mais recursos humanos, materiais e financeiros para manter a estabilidade; no entanto, os antagonismos e os conflitos sociais, longe de diminuir, aumentam significativamente. Quanto mais se procura manter a estabilidade, menos esta é assegurada. Além das causas objetivas, as consequências do sistema de economia de mercado,2 o crescimento dos conflitos sociais tem a ver com a falta de reflexão sobre a necessidade de um novo modelo.
De acordo com estatísticas oficiais, o orçamento da segurança interna se elevou a 514 bilhões de yuans (54,25 bilhões de euros) em 2010, ou seja, uma alta de 16% em relação ao ano anterior, em que tinha ele próprio experimentado um aumento de 8,9% em relação a 2008. A rubrica atinge agora o nível do orçamento da defesa nacional. Assim, o custo de manutenção da estabilidade é cada vez mais alto, e o pessoal encarregado é cada vez mais numeroso. Tornou-se a tarefa prioritária dos governos locais. Assim que entra num período do ano considerado sensível ou que chega um evento específico, cada administração deve aplicar todas as suas capacidades para a manutenção da ordem. Em alguns lugares, isso atrapalha o trabalho diário, sendo que todas as outras atividades da administração devem apagar-se diante dessa “prioridade absoluta”. Se esse modo de funcionamento não for alterado, seu custo representará um fardo insuportável.
Ainda mais grave: quando conviria realizar mudanças significativas para melhorar a economia de mercado e estabelecer uma sociedade harmoniosa, esses esforços são sufocados pelo medo constante da instabilidade. A reforma do sistema político não foi levada a efeito, a liberdade de expressão é restrita, as medidas para lutar contra a corrupção não são bem-sucedidas, os grupos de interesses que aparecem não são levados em conta e toda a sociedade se encontra em um estado de anomia crescente.
Estatísticas impressionantes
Assim, certos grupos sociais ou indivíduos se viram impedidos de expressar diretamente suas legítimas reivindicações; eles não tiveram escolha a não ser recorrer a meios não institucionais, às vezes até mesmo a métodos violentos para fazer valer suas exigências e manifestar seu descontentamento – o que acabou por acirrar mais ainda a contestação.
De imediato, a ideia cresceu com base no ponto de vista que “distúrbios importantes permitem resolver um problema importante, distúrbios menores, um problema menor, enquanto que sem distúrbios, nada se define”. Paradoxalmente, a repressão leva cada um a suscitar a desordem para fazer valer seus interesses. E, gradualmente, alguns passam a radicalizar suas ações, tornando-se “geradores profissionais de instabilidade”, segundo a acusação oficial.
Na sociedade chinesa, hoje, há diferenças marcantes entre os “grupos de interesse”, isto é, entre os estratos sociais. O problema é que essas desigualdades não são acompanhadas por um mecanismo de regulação ou de equilíbrio capaz de conciliar essas diferenças.
De um lado, há os grupos desfavorecidos, tais como trabalhadores migrantes vindos do campo, que não dispõem de canais institucionais que levem em conta seus interesses e não possuem nenhum poder de barganha. Em contraste, outros grupos sociais monopolizam recursos importantes: estão em condições de serem ouvidos e de, por diferentes vias, ter um peso na elaboração de políticas públicas em seu favor, ou mesmo de praticamente decidi-las.
O modelo atual leva a considerar como antagonistas a manutenção da estabilidade e a expressão de demandas sociais; somente a repressão e o sacrifício dos interesses das categorias desfavorecidas evitariam distúrbios. A busca da paz social a curto prazo tornou-se um objetivo comum. Não somente a solução aparece como temporária e superficial, como, ao contribuir para a manutenção de interesses adquiridos, ela atenta gravemente contra a justiça social.
Além disso, alguns governos locais chegam a exagerar a gravidade do conflito e a se preocupar diante de qualquer agitação. É claro que, no curto prazo, alguns protestos podem levar a conflitos entre interesses divergentes e causar distúrbios; mas, a longo prazo, se fossem levados em conta isso poderia ter facilitado o desenvolvimento de políticas e medidas capazes de equilibrar os interesses sociais. Em vez disso, as medidas e as reformas indispensáveis não são concluídas, ou nem sequer são iniciadas. As desigualdades não são reduzidas e o conjunto da sociedade perde a oportunidade de fazer o reequilíbrio necessário.
Ressurgimento das yundong
Atualmente, vemos ressurgir a prática das “campanhas” (yundong) que, como nos anos 1960 e 1970, mobilizam toda a administração contra um problema ou um inimigo definido. Essa maneira de agir desconsidera, deforma ou mesmo ignora completamente a lei. As autoridades locais ainda preferem o poder ou a força em relação ao direito. Longe de contribuir para reduzir os antagonismos, esse método volta a jogar lenha na fogueira, ao opor a polícia à população, os funcionários às massas populares, e, assim, colocar o governo numa posição de fraqueza e vulnerabilidade.
Finalmente, os governos e as administrações criam “fundos para a manutenção da estabilidade” e recorrem a expedientes para tentar comprar a paz social com dinheiro. De acordo com a frase popular, isso equivale a “resolver as contradições do povo usando o dinheiro do povo” [tradução literal de renminbi, nome oficial da moeda chinesa]. Na prática, os funcionários decidem a alocação dos valores e dos fundos, sem respeitar critérios claros nem tomar como base um protocolo regulamentado. Isso costuma reforçar o comportamento daqueles que acreditam que nenhum problema é resolvido se confusões não forem criadas. Ele chega a estimular alguns a apresentar exigências ilegítimas ou irracionais para obrigar a administração a ceder sob pressão. Tudo isso contribui para a confusão, deturpa a avaliação de situações e inverte as referências de toda a sociedade sobre o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto. A imagem de garantia moral e de portador da justiça social que o governo deveria incorporar fica então abalada. É hora de se livrar dessa concepção excessivamente rígida e explorar uma nova via para garantir a manutenção da paz social.
Mais uma vez deve-se começar pela compreensão das contradições sociais. Os conflitos surgidos nos últimos anos encontram suas raízes, basicamente, nas expropriações de terras, nas demolições de casas, no não pagamento de salários devidos aos trabalhadores migrantes ou a outras disputas trabalhistas. Todos são, portanto, baseados em divergências de interesses. Mas há muito tempo diversos funcionários tenderam a atribuir-lhes uma dimensão ideológica, transformando-os de forma exagerada em problemas políticos que ameaçariam os fundamentos do sistema. É importante reconhecer que na verdade eles têm uma base racional. Se as oposições de ordem política, religiosa ou ideológica são muitas vezes difíceis, ou mesmo impossíveis, de resolver, os enfrentamentos relacionados às divergências de interesses entre camadas sociais podem ser negociados e é possível encontrar uma saída com base em acordos. Raros são aqueles suscetíveis de resultar em distúrbios sociais de grande porte.
Nunca se poderá eliminar completamente esse tipo de conflito. Portanto, é necessário estabelecer regras, desenvolver métodos e criar canais institucionais para encontrar soluções. É por isso que é muito importante não entender mal a natureza desses conflitos.
Corrupção e desigualdade
A China enfrenta muitas dificuldades, algumas graves: a corrupção, o fosso entre ricos e pobres, a existência de camadas desfavorecidas. Se elas são mal resolvidas, podem conduzir a uma grave crise política. Mesmo se o desafio é grande, os conflitos não são tais a ponto de ameaçar a sociedade. Até porque eles não afetam a tendência geral que é a de as pessoas aspirarem à boa governança e à estabilidade.
Ao mesmo tempo, devemos nos livrar da ilusão de instabilidade. Essa ideia se apoia em dados oficiais e em estudos em âmbito nacional que mostram um aumento dramático dos distúrbios; mas, na realidade, essas estatísticas misturam o verdadeiro e o falso. Muitos departamentos e organismos baseiam seus cálculos em pesquisas que integram fatos da vida cotidiana ou conflitos menores. Dessa forma, acontece que querelas entre colegiais em uma escola de ensino médio são registrados como “fatores de instabilidade”.
Quando todos esses fenômenos são somados, chega-se a cifras impressionantes. Mas os “incidentes de massa” misturam fatos de natureza bem diferente, muitas vezes sem nenhuma conexão direta com a questão da estabilidade. Além disso, a ausência de medidas e de uma regulamentação eficazes para gerenciar os conflitos cria uma sensibilidade exacerbada, a ponto de, às vezes, uma simples discussão tornar-se impossível. O modo de pensar esclerosado e os métodos ultrapassados ainda empregados apenas envenenam a atmosfera e causam medo generalizado. Se pudéssemos nos livrar de todos esses falsos “fatores de instabilidade”, surgiria daí uma situação clarificada; especialmente porque muitas pesquisas mostram que a ausência de um mecanismo que leve em conta os interesses da população é a fonte de muitos conflitos violentos.
Em seu relatório apresentado à Assembleia Nacional Popular em 2010, o primeiro-ministro Wen Jiabao declarou: “Tudo que fizemos foi para permitir que a população experimentasse uma vida mais feliz e para chegarmos a uma sociedade mais justa”.3 É por isso que uma nova lógica deve ser aplicada na Constituição, que concede vários direitos aos cidadãos. É somente garantindo esses direitos que será possível alcançar um equilíbrio entre interesses contrários; é somente por meio desse equilíbrio que será possível garantir a paz social. Esse é o caminho a seguir. Em outras palavras, defender os direitos é defender a estabilidade.
Garantir a paz social
Para realizar bem essa tarefa, é preciso, em primeiro lugar, transformar e reduzir as funções do governo local, evitando que este se exponha na primeira fila quando eclodem os conflitos sociais e reforçar seu papel como negociador desses conflitos.
Em segundo lugar, é necessário consolidar e melhorar os mecanismos de governança de tal modo que o recurso à lei e ao direito seja o método normal e eficaz para resolver as divergências; criar canais institucionais que permitam a expressão dos descontentamentos no seio da sociedade; e, finalmente, estimular o surgimento de associações de cidadãos e criar mecanismos ou estruturas que tenham por objetivo trabalhar para resolver os conflitos sociais.
De maneira prática, seria conveniente colocar em ação seis mecanismos institucionais:
• garantir o direito a uma informação completa e transparente sobre as reclamações, demandas sociais e as questões que a sua resolução suscita;
• colocar em prática uma organização coletiva da expressão das diferentes camadas da sociedade para torná-las mais coerentes;
• criar um sistema adequado para que os cidadãos possam se expressar e participar das decisões;
• organizar os meios de pressão, sobretudo para os mais desfavorecidos, que não têm o capital social para influir nas decisões;
• criar espaços de diálogo e negociação fora dos governos locais, deixando a sociedade dar seus primeiros passos para uma autogestão e uma autorregulação;
• criar uma instância de conciliação e arbitragem sob a égide do governo e da Justiça.
Esses seis mecanismos são complementares e indispensáveis. Além disso, a existência de organizações sociais eficazes deve ser capaz de reduzir o aparecimento dos antagonismos, assim como de ajudar a resolvê-los.
A diferença entre uma boa e uma má gestão social não reside na presença ou ausência de conflitos, mas na capacidade de tolerá-los e resolvê-los. Na verdade, um bom sistema não é aquele que elimina as contradições, mas aquele que manifesta sua capacidade de lidar com os desacordos e encontrar uma solução para eles em um ambiente institucional.
Estamos cientes que, quando todas as camadas da sociedade começarem a poder expressar por meio dos canais legais suas reivindicações, nossa sociedade poderá ver-se diante de um período de erupção (jingpen qi) dos conflitos sociais. Todo mundo vai querer falar, e será preciso enfrentar essa situação sem precedentes. A questão, delicada, deve ser estudada atentamente quando da introdução do novo sistema.
Para início de conversa, esse fenômeno de erupção não seria causado pelo mecanismo de transição: os novos canais de expressão permitiriam revelar os conflitos sociais antes escondidos e proporcionariam a oportunidade de resolvê-los de forma eficaz. Para transpor essa etapa da maneira mais pacífica possível, é preciso prever medidas de transição razoáveis e realistas. Poderíamos considerar arranjos de natureza diferente, de acordo com um princípio simples: para tratar de problemas antigos, vamos recorrer a métodos de solução centralizados, de acordo com práticas antigas; para tratar de problemas novos, vamos utilizar os novos mecanismos institucionais de resolução de conflitos.
Em seguida, para evitar choques violentos, é possível considerar uma abordagem gradual, de cima para baixo, especialmente para a criação de mecanismos de expressão e de pressão. Seria necessário formar ambos, governo e governados, para que se conscientizassem da importância dos novos mecanismos e dominassem as vias legais de resolução dos conflitos. Caso isso não ocorresse, seria possível tentar experiências piloto escolhendo conflitos que têm grande eco sem ser muito perigosos para a sociedade, e que ocorrem em locais onde as condições são relativamente amadurecidas. Isso permitiria sensibilizar os funcionários de todos os níveis, e o país como um todo.
O rápido desenvolvimento da economia nacional fornece os recursos financeiros para resolver, pelas vias institucionais, os antagonismos sociais. A estabilidade do quadro político, por sua vez, permite o avanço na resolução desses problemas. Mais importante ainda, a maioria da população não quer que a solução desses problemas passe por uma explosão de violência nem por distúrbios.
Tomando o direito como fundamento e nas condições da economia de mercado, será necessário avançarmos no estabelecimento de um sistema que leve em conta a expressão e a harmonização dos interesses, e lançar as bases sobre as quais uma paz social durável poderá se instalar.
Shein Yuan, Guo Yuhua, Jing Jun e Sun Liping são Pesquisadores do Departamento de Sociologia da Universidade de Qinghua, Pequim.