Planeta-prisão
O Gulag não existe mais. Existem, sim, milhões de indivíduos que hoje trabalham sob condições semelhantes às daquele tempo. Submetidos ao jogo do mercado, os governos impõem, por meio da lei, da força e de ameaças econômicas e de desinformação, regimes de “morte civil” em massa
Estou à procura de palavras para qualificar o período histórico em que nós vivemos. Dizer que ele é sem precedente não significa grande coisa. Afinal, o mesmo foi dito de todas as épocas anteriores, desde a descoberta da história!
Não estou em busca de uma definição complexa de nosso tempo, mas sim à procura de uma imagem que sirva como ponto de referência. Os pontos de referência não são inteiramente explícitos, mas fornecem um parâmetro que pode ser compartilhado – e nisso eles se equivalem aos pressupostos tácitos que impregnam os provérbios populares. Quando não temos nenhum ponto de referência, é grande o risco de continuarmos procurando, sem rumo.
O ponto de referência que encontrei é o da prisão. Sem mais nem menos. Por todo o planeta, nós vivemos dentro de uma prisão. Aliás, a palavra “nós” tornou-se suspeita, porque aqueles que detêm o poder a empregam a toda hora para falar em nome dos que não têm poder algum, lançando mão da demagogia. Portanto, vamos falar de “nós” como sendo “eles”. Eles vivem dentro de uma prisão.
Qual será a natureza dessa prisão? Como terá sido construída? Onde está situada? Ou ela não passa de uma expressão, de uma maneira de falar? Com toda certeza, não se trata aqui de uma metáfora. O encarceramento é mesmo real, mas para descrevê-lo é preciso pensar em termos históricos.
O Gulag não existe mais. Existem, sim, milhões de indivíduos que hoje trabalham sob condições semelhantes às daquele tempo. A única coisa que mudou foi a lógica da definição jurídica que se aplica aos trabalhadores e aos criminosos. Na época do Gulag, os prisioneiros políticos, classificados como criminosos, eram reduzidos ao estado de trabalhadores forçados. Atualmente, milhões de trabalhadores brutalmente explorados estão reduzidos ao status de criminosos.
A equação do Gulag – “criminoso = trabalhador forçado” – foi remanejada pelo neoliberalismo, que lhe deu a seguinte forma: “trabalhador = criminoso oculto”. Todo o drama da migração mundial está expresso nesta nova fórmula. Assim, todos aqueles que trabalham são criminosos latentes. No banco dos réus, eles são julgados como culpados por tentarem sobreviver a qualquer custo.
Profundas mudanças marcaram a passagem do capitalismo industrial, cujos alicerces eram as manufaturas e as usinas, para o capitalismo financeiro, baseado na especulação pela economia de mercado. Surgiu a figura do operador de mercado, que atua tanto como assalariado de uma instituição bancária quanto em nome de clientes privados que o contratam – aliás, é preciso lembrar que as transações financeiras especulativas movimentam diariamente cerca de US$ 1,3 trilhão, ou seja, 50 vezes mais do que o total das transações comerciais. No decorrer deste processo, os locais de encarceramento mudaram.
A prisão agora tem a dimensão do planeta e das diversas áreas que lhe são alocadas, que recebem nomes como “local de trabalho”, “campo de refugiados”, “centro comercial”, “periferia”, “gueto”, “torre de escritórios”, “favela”, “cidade-dormitório” . O ponto mais importante a ser salientado é que todos aqueles que estão encarcerados nessas áreas são co-detentos.
Quem já não reparou que os bens de consumo de pequeno porte estão cada vez mais difíceis de tirar da embalagem? Pois ocorreu algo similar com a vida dos que têm um emprego remunerado e que não são pobres: eles vivem dentro de um espaço muito reduzido, que lhes deixa cada vez menos escolhas – exceto a escolha binária contínua entre obediência e desobediência. Os seus horários de trabalho, seu local de residência, suas qualificações primeiras, sua experiência, sua saúde, o futuro dos seus filhos – ou seja, tudo o que não diz respeito à sua função de empregados – não deve ocupar mais do que um lugarzinho secundário em relação às exigências vastas e imprevisíveis do Lucro Líquido. Além do mais, a rigidez deste regulamento interno tem por nome a Flexibilidade. Na prisão, as palavras são invertidas.
Recentemente, a pressão alarmante exercida pelas condições de trabalho nos escalões superiores obrigou os tribunais japoneses a reconhecerem e definirem uma nova categoria de óbito para os altos executivos, a da “morte por estafa no trabalho”. “Nenhum outro sistema é possível”, explicam para aqueles que ocupam um emprego remunerado. “Não existe alternativa.” “Tomem o elevador.” O elevador não é maior do que uma cela.
As forças do mercado que dominam o mundo não se cansam de repetir que elas são inevitavelmente mais fortes do que qualquer Estado ou nação. E essa afirmação pode ser verificada a cada segundo, desde a chamada telefônica não solicitada, que tenta convencer o assinante a contrair um seguro de saúde oferecido por uma companhia privada, até o mais recente ultimato a ser emitido pela organização Mundial do Comércio (OMC).
Em conseqüência disso, a maioria dos governos não governa mais. Nenhum governo consegue segurar o leme e tocar o barco rumo ao destino que escolheu. O horizonte, e a promessa esperançosa de futuro que ele traz desapareceram do discurso político – tanto de direita quanto de esquerda. Assim, são as pesquisas de opinião que ditam a direção da navegação, e a maioria dos governos apenas vigia seu rebanho. (Na gíria americana das prisões, a expressão “guardas de rebanhos” está incluída entre as inúmeras utilizadas para designar os carcereiros.)
No século 18, o encarceramento de longa duração equivalia a uma pena de “morte civil”. três séculos mais tarde, os governos impõem, por meio da lei, da força e de ameaças econômicas e de desinformação, regimes de “morte civil” em massa.
Zygmunt Bauman observou o fato, carregado de significado, de que as forças do mercado que atualmente dirigem o mundo são “extraterritoriais”, ou seja, estão “livres das restrições relacionadas à localização geográfica”. Realmente, o ciberespaço oferece velocidade quase que instantânea para efetuar operações de compra e venda, uma facilidade que é utilizada dia e noite nas transações pelo mundo afora. Mas apesar de proporcionar à tirania do mercado um passe livre para a extraterritorialidade, essa rapidez tem um efeito patológico sobre todos aqueles que a praticam: ela os anestesia. os negócios não podem parar, pouco importa o que possa acontecer. É o “business as usual”.
E nessa velocidade não há lugar para o sofrimento. Para anunciar a dor possivelmente sim, mas não para senti-la. De tal forma que a condição humana está banida, excluída daqueles que operam o sistema. Os operadores de mercado estão sozinhos porque eles são totalmente desprovidos de coração. Até recentemente, os tiranos eram impiedosos e inacessíveis, mas eles também eram sujeitos ao sofrimento. Este não é mais o caso. Em longo prazo, esta falha do sistema lhes será fatal.
Enquanto isso, como vivenciar este presente? Quais conclusões tirar? Quais decisões tomar? Como agir? Eu tenho algumas diretrizes para sugerir, agora que o ponto de referência foi definido.
Primeiro, ignorar o que dizem os carcereiros. todos nós sabemos que existem carcereiros que são menos maldosos do que outros e, dentro de certas condições, revela-se útil considerar esta diferença. Mas tudo o que eles têm a dizer, até mesmo os menos malévolos, é totalmente insignificante. Eles não se cansam de repetir hinos, palavras-senhas e fórmulas destinadas a hipnotizar, tais como “segurança”, “democracia”, “identidade”, “civilização”, “flexibilidade”, “produtividade”, “direitos humanos”, “integração”, “terrorismo”, “liberdade”. O objetivo é confundir, instaurar a divisão entre todos os co-detentos. Querem desviar a sua atenção e adormecê-los. Do lado de cá dos muros, as palavras pronunciadas pelos carcereiros não fazem sentido e não são úteis para o pensamento. Elas não influem bem nada. É preciso rejeitá-las, mesmo quando refletimos em silêncio, em nosso foro íntimo.
Em contrapartida, os prisioneiros possuem um vocabulário que lhes é próprio e por meio do qual eles pensam. Muitos termos são mantidos em segredo e existem inúmeras variações locais. São pequenas palavras e expressões, que, entretanto, contêm um mundo inteiro. Por exemplo: vou-mostrar-lhe-como? se-somente-o-dia-durasse-mais-tempo passarinho? está-rolando-alguma-coisa-na-ala-B? pelado?pegue-este-pequeno-brinco? morto-para-nós? vai-nessa?
Conflitos, por vezes muito violentos, ocorrem entre co-detentos. todos os prisioneiros aturam privações, mas existem diferentes níveis de privação e essas diferenças suscitam invejas. Do lado de cá dos muros, a vida não vale grande coisa. O próprio anonimato da tirania global favorece a caça aos bodes expiatórios, aos inimigos suscetíveis de serem instantaneamente apontados como tais entre os outros prisioneiros. As celas asfixiantes se transformam então num asilo de loucos. Os pobres atacam os pobres, os invadidos saqueiam os invadidos. Mais vale não idealizar os co-detentos. E enquanto evitamos idealizá-los, vale constatar simplesmente que tudo o que eles têm em comum – o seu sofrimento inútil, sua capacidade de resistência, sua astúcia – é mais importante e eloqüente do que aquilo que os separa. E isso engendra novas formas de solidariedade. Essas novas solidariedades nascem do reconhecimento mútuo das diferenças e da multiplicidade. Estou ouvindo você! Uma solidariedade não de massas, mas sim de conectividade entre indivíduos, muito mais apropriada para as condições de vida na prisão.
As autoridades fazem sistematicamente o melhor que podem para desinformar os co-detentos em relação ao que está ocorrendo em outros lugares da prisão mundial. O
seu objetivo não é estimulá-los, mas sim mantê-los num estado de incerteza passiva, de lembrar-lhes de forma impiedosa que não existe nada mais na vida além do risco, e que o planeta é um lugar perigoso.
Para tanto, as autoridades recorrem a informações cuidadosamente selecionadas, à desinformação, aos rumores e às ficções. Esta operação, até ao momento bem-sucedida, apresenta e cultiva um paradoxo alucinante ao conduzir uma população carcerária, por meio da astúcia, a acreditar que a prioridade de cada indivíduo consiste em tomar as providências para garantir sua proteção pessoal e, de uma maneira ou de outra, conseguir isentar-se do destino comum a todos, ainda que esteja preso.
Mais uma vez, a imagem do homem refletida por essa visão de mundo não tem precedente. Nela, a humanidade aparece como covarde – e só os vencedores são corajosos – e o ato de oferecer não existe. Só existem recompensas.
Os prisioneiros sempre encontraram meios para se comunicarem entre si. Dentro da prisão global atual, é possível utilizar o ciberespaço contra os interesses daqueles que o implantaram inicialmente. Dessa maneira, os detentos se informam a respeito do que acontece no mundo, acompanham histórias censuradas do passado e se mantêm lado a lado com os mortos. Com isso, eles redescobrem exemplos de coragem. trata-se de pequenos presentes, como uma rosa única colocada numa cozinha onde não há comida suficiente. Dores indeléveis. A capacidade de suportar esforços, demonstrada pelas mães. o riso, o auxílio mútuo, o silêncio, a resistência que não pára de ganhar terreno, o sacrifício voluntário, o riso de novo? As mensagens são curtas, mas elas repercutem em meio à solidão das suas/ nossas noites.
A extraterritorialidade dos tiranos do mundo tem sua explicação na extensão do seu poder de vigilância, mas ela denota também uma fraqueza que está por vir. Eles operam no ciberespaço e moram em edifícios guardados. Os tiranos nada conhecem da terra que os cerca. Além disso, eles rejeitam esse conhecimento porque o consideram superficial e sem profundidade. A única coisa que conta para eles são as matérias-primas extraídas. São incapazes de escutar a terra. Quando pisam no chão, são cegos. Em nível local, eles estão perdidos.
*John Berger, romancista inglês, é também poeta, pintor e crítico de arte. Seu último livro lançado no Brasil é Aqui nos encontramos (Ed. Rocco, 2008).