Pode o homem árabe existir? A desumanização cotidiana da vida árabe masculina sob o olhar ocidental
Há um ano, testemunhamos debates televisivos, pronunciamentos públicos, e matérias de jornais relativizando ou justificando as violações em Gaza e no território Libanês
Até 16 de Outubro de 2024, segundo o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, o rol reportado de mortos em Gaza desde 07 de Outubro de 2023 é de 42.409 pessoas, mas estimativas conservadoras indicam um número de ao menos 186 000 mortos; enquanto cerca de 1,9 milhão de pessoas encontram-se em situação de deslocamento forçado em Gaza, território de 363 quilômetros quadrados. Já no Líbano, desde o escalonamento do conflito na região Levantina neste setembro, o número de mortos é de mais de 2.200 pessoas e a população deslocada internamente já atinge os 1,2 milhões de pessoas, segundo a ONU.
Notícias nas redes sociais sobre ataques israelenses em Beirute, no Beqaa, em Tripoli, em Nabatyeh, em Gaza, e na Cisjordânia, com fotos de cidades destruídas e pessoas feridas aparecem diariamente na tela de meu celular. Denúncias de violações de direito internacional, dos direitos humanos e do direito humanitário se acumulam, chegando ao ponto do Secretário Geral das Nações Unidas dizer que o nível e rapidez de destruição visto em Gaza e que se expande pela região é algo jamais visto em seu mandato, apelando ao Conselho de Segurança da ONU por uma resolução de cessar-fogo imediato. Todavia, apesar dos apelos e das denúncias, a catástrofe em Gaza e no Líbano continua, televisionada e normalizada, e até mesmo justificada.
Há um ano, testemunhamos debates televisivos, pronunciamentos públicos, e matérias de jornais relativizando ou justificando as violações em Gaza e no território Libanês, como vem sido demostrado por iniciativas como a NewsCord. Num país ocidentalizado como o Brasil, ainda é comum trazer à tona a catástrofe que aflinge a região levantina e ouvir algo “horrível, mas…”. Diante da continuidade impune dos ataques a Gaza e ao Libano, das tentativas de justificar o injustificável e dos ínumeros “mas” coniventes, a desumanização de pessoas árabes pela sociedade ocidental e ocidentalizada é evidente, são tratadas como “animais humanos” e suas mortes não passam de “danos colaterais”.
Essa desumanização fica ainda mais latente quando se trata da vida de homens árabes. Quantas vezes recebemos notícias e relatórios oficiais contendo estatísticas sobre as mortes palestinas e libanesas desagregadas por gênero e idade apenas com relação a mulheres e crianças, e às vezes até mesmo apenas com relação a mulheres e garotas? Quantas publicidades e campanhas de arrecadação de recursos para ajuda humanitária em Gaza e no Líbano apenas utilizam fotos de crianças e mulheres em situação de extrema vulnerabilidade? Quantos pronunciamentos públicos oficiais condenam a violência desenfreada perpetratada apenas contra mulheres e crianças palestinas e libanesas? A martirização de homens e garotos árabes parece não suscitar tanta comoção da opinião pública ocidental, não merecem publicidade ou condenação, suas vidas permanecem ignoradas e suas mortes autorizadas.
Diante disso me indago: como, enquanto humanidade, chegamos a este ponto de desumanização? Imediatamente me recordo da carta que a intelectual afro-caribenha Sylvia Wynter redigiu aos seus colegas acadêmicos em 1992, quando motins foram desencadeados em Los Angeles após a absolvição de policiais que agrediram de forma brutal um jovem homem negro residente de ‘gueto’, Rodney King, tendo sido revelado que a polícia de Los Angeles usava uma categoria para classificar casos como o dele sob a sigla N.H.I. – No Human Involved, ou seja, nenhum humano envolvido.
Na carta, Wynter procura revelar como se chegou ao ponto em que instituições formais categorizam vidas como não humanas e, portanto, autorizam a violência contra quem se insere nesta categoria. Segundo a intelectual Afro-Caribenha, a sociedade estadunidense e, de forma geral, sociedades ocidentais e ocidentalizadas, enxergam a humanidade e conhecem a realidade por lentes brancas, naturalizando a forma de ser e pensar do ‘homem branco ocidental’ como ponto de referência do humano universal. Assim, como argumenta o intelectual argentino Mignolo em consonância com Wynter, quando se enxerga o humano no ‘olhar interno’ das sociedades ocidentais e ocidentalizadas, não se trata de um ser pretensamente universal e abstrato, mas um tipo de humano muito específico: o ‘homem branco de classe média’.
Instaura-se assim uma classificação étnica e de classe da população mundial a partir do parâmetro do humano branco, masculino e burguês auto-proclamado universal, modelo a que todos, todas e todes têm de se conformar para atingir a humanidade. Como denuncia o autor martiniquense Fanon em “Condenados da Terra“, enxerga-se a realidade por um dualismo maniqueísta e hierárquico baseado na negação e demonização da vida, do conhecimento e da existência não-branca, não-ocidental. Criam-se duas subjetividades essencialmente opostas: a do ‘homem branco de classe média’ e a do restante dos seres que não se conformam a este humano provinciano, os Outros, sendo aquele essencialmente bom e estes essencialmente ruins. É este ‘olhar interno’ branco que direciona a forma como, na sociedade ocidental e ocidentalizada, se pensa, se enxerga, se porta e se autoriza comportamentos diante do Outro, seja ele o homem negro dos ‘guetos’ e periferias, ou o homem árabe territorializado.
Dessa forma, cria-se um sistema de classificação social que exclui o Outro, relativizando ou negando sua humanidade com base em fatores raciais, econômicos e de gênero. Direcionado ao Oriente Médio, este ‘olhar interno’ das sociedades ocidentais e ocidentalizadas cria duas subjetividades femininas e masculinas, culminando em um processo de demonização de todas as vidas árabes.
A mulher árabe é essencializada como vítima de sua cultura em contraposição à self-made woman branca ocidental, sendo esta cultura árabe compreendida de modo monolítico como uma cultura islâmica opressora e misógina, ignorando a pluriversalidade de mulheres, credos, povos no mundo árabe e até mesmo do próprio Islã. Tal concepção essencializante não é apenas maléfica em essência mas também possui consequências materiais. O discurso liberal de direitos das mulheres foi usado como uma das principais justificativas na defesa da “Guerra ao Terror” quando da intervenção no Afeganistão em 2001, que até 2023 havia matado mais de 70.000 civis afegãos e paquistaneses. Na narrativa Ocidental à época, inclusive reproduzida por movimentos feministas internacionais, havia uma correlação entre a intervenção ocidental e o gozo de mais liberdades pelas mulheres afegãs: elas finalmente seriam salvas e viveriam a experiência de ser uma mulher “livre” de verdade, com direitos como os da mulher ocidental emancipada.
Esta retórica femonacionalista ocidental relativiza a humanidade da mulher árabe, não a negando completamente, já que a concebe enquanto vítima que ainda pode ser salva se for resgatada e tiver a chance de ser ressocializada no Ocidente por meio de programas de integração cívica e social. Em contrapartida, a subjetividade do homem árabe é essencializada como inerentemente bárbaro, diametralmente oposto à subjetividade e aos valores ocidentais, sendo sua existência uma constantemente e iminente ameaça à vida das mulheres árabes e à foma de existir ocidental. Desde a ‘Guerra ao Terror’, a retórica ocidental salvacionista de ‘white man saving brown women from brown men‘ que classifica o homem árabe como misógino irremediável ganhou mais uma classificação, esse ser bárbaro é subsumido à categoria ‘terrorista’, potencializando a essencialização do homem árabe como des-humano.
Desta forma, os homens árabes diariamente assassinados por ataques à Palestina e ao Líbano são enxergados apenas pelo prisma do terrorismo, que lhes retira a humanidade prima facie. Esse ‘olhar interno’ desumanizador autoriza seu tratamento como alvos primários de uma violência sistemática que, quando o fazem, apenas relegam suas vidas a estatísticas. Quando se trata de homens árabes – assim como de outras vidas masculinas não brancas –, a máxima do direito penal liberal se inverte: são culpados até que se prove o contrário.
A existência do homem árabe é relegada ao sofrimento negligenciado, e mesmo na sua morte ele é desumanizado: não há menção a homens arábes em pronunciamentos políticos e midíaticos, não se sabe quem são os homens martirizados, de onde vêm, sua idade, sua religião, sua classe. Caso ele seja morto, não é tratado como vítima, seu potencial inato de ameaça é maior do que sua vida, e assim surgem inúmeras justificativas por sua morte como dano colateral: “era de determinada religião”, “estava em um bairro de predominância de certo grupo”, etc.
No ‘olhar interno’ da sociedade ocidental e ocidentalizada, o homem árabe não tem direito a existir, em vida ou no luto, sua existência é descartável. Mas é justamente pela revelação desta lente branca liberal pela qual a sociedade ocidentalizada vê e se comporta diante do mundo que se abre oportunidade para romper com ela. Uma vez conscientes de que nossa percepção da realidade é mediada por um filtro universalista que nos impede de enxergar a diversidade de humanos, iniciamos a ver esta realidade de outra forma.
Como afirmou Wynter, a forma como enxergamos o mundo e o Outro modula nossos comportamentos, tendo consequências materiais e fatídicas com relação à vida de muitos. Por isso, é necessário ampliar nosso olhar para que se comporte na categoria ‘humano’ todas as formas de existir e pensar que extrapolam o modelo do ‘homem branco ocidental’, não para substituí-lo mas para realocá-lo num conjunto de humanidades pluriversal e intercultural. Olhemos para os homens árabes resumidos a cifras em manchetes de jornais para além das categorias estigmatizantes, pergunte-se: quem era? qual seu nome? qual sua história? o que fazia? Se enquanto humanidade, como enuncia o discurso de direitos humanos, estamos compromissadas com a emancipação e autonomia de todos, todas e todes, é preciso enxergar e falar das cifras como subjetividades particulares, como humanos, como o Ali, o Charbel, ou o Shaban, condenando suas mortes e legitimando sua existência.
Heloisa Pinheiro de Castro Simão é Mestre em Direito (LSE) e Doutoranda em Direito e Desenvolvimento (FGV Direito SP).