O massacre na Faixa de Gaza e o colapso do sistema de saúde
Em Gaza, a crueldade não poupa civis, profissionais humanitários e unidades médicas, o que fez com que o sistema de saúde entrasse em colapso
Em outubro deste ano, o massacre na Faixa de Gaza completou um ano, embora o conflito entre Israel e Palestina perdure há décadas. Desde o atentado cometido pelo Hamas em 2023, que matou 1.200 pessoas e fez 250 reféns, Israel tem travado uma guerra total contra a população de Gaza, que culminou na morte de 41.500 pessoas e feriu 96.000 até o momento1. O conflito é brutal e viola o Direito Humanitário Internacional. Ainda, obriga civis a se refugiarem em áreas menores e em condições desumanas, formando contingentes desprotegidos e violentados, o que Butler2 chama de vidas precárias, aquelas que são facilmente mortas sem sequer serem passíveis de luto.

Samuel Johann, coordenador de emergência de Médicos Sem Fronteiras (MSF), relata que no dia 8 de junho de 2024 ocorreu uma operação israelense que, em duas horas, matou 200 pessoas e deixou 700 feridos. Essa operação foi iniciada perto do hospital Al-Aqsa, aonde chegaram pacientes dilacerados, a maioria mulheres e crianças. Naquele momento, decisões difíceis precisaram ser tomadas: como proteger a equipe de saúde? colocá-la em um lugar seguro ou mantê-la ativa na sala de emergência? manter a equipe do escritório na base protegida ou enviá-la para o hospital, cruzando por uma área insegura? Para Johann, este foi um dos piores momentos que enfrentou, mas admite não ter sido fácil escolher uma única situação que viveu durante o período em que esteve no território palestino, tendo em vista a recorrência dos abusos vivenciados por ele.
Em Gaza, a crueldade não poupa civis, profissionais humanitários e unidades médicas, o que fez com que o sistema de saúde entrasse em colapso. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 20 dos 36 hospitais (55,5%) em Gaza não estão em funcionamento. Nos últimos meses, as equipes de MSF foram forçadas a deixar 14 estruturas médicas, e pelo menos 12 mil pacientes necessitam ser evacuados para receber cuidados especializados, que não são oferecidos no território palestino3.
O encaminhamento das vítimas para tratamento fora da Faixa de Gaza é longo e complicado. Os critérios das autoridades israelenses para aprovação de solicitações não são claros, e as pessoas têm que esperar meses por resposta. Quase 60% das solicitações de evacuações médicas de Gaza são recusadas, incluindo solicitações de transferência de crianças feridas e seus cuidadores. “Em agosto, das oito crianças que MSF solicitou evacuação médica, apenas três foram aprovadas pelas autoridades israelenses. As pessoas que necessitam ser retiradas dessa zona de guerra deveriam ter esse direito facilitado imediatamente, sem prejuízo da permissão de retorno”, relata Hani Isleem, coordenador do projeto de MSF para evacuações médicas de Gaza.

Karam, de 17 anos, é um dos poucos pacientes que conseguiu deixar Gaza para buscar atendimento médico. Ele está no hospital administrado por MSF em Amã, na Jordânia. Em 14 de fevereiro deste ano, um ataque aéreo israelense destruiu sua casa, matando todos em sua família, exceto sua irmã de sete anos de idade, Ghina, e seu pai, Ziad. Karam ficou gravemente ferido, com queimaduras no rosto e no corpo.
Naquele dia, o hospital de Al-Aqsa estava sobrecarregado com feridos após um bombardeio israelense no acampamento de Nuseirat, no centro de Gaza. Quando Karam chegou ao hospital, seu tio, que trabalhava como enfermeiro no local, entrou no pronto-socorro e percebeu que ele ainda estava respirando. Levou o rapaz às pressas para a sala de cirurgia, onde a equipe de MSF realizou manobras de reanimação cardiopulmonar e uma cirurgia de emergência, salvando sua vida. Karam foi posteriormente evacuado para o hospital flutuante dos Emirados em Al-Arish, no Egito, antes de ser transferido de avião para o hospital de cirurgia reconstrutiva de MSF em Amã, na Jordânia, onde atualmente recebe cuidados de reabilitação, junto com sua irmã e outros pacientes que foram evacuados de Gaza.
À medida que as necessidades médicas na Faixa de Gaza aumentam, a capacidade de resposta de MFS no território torna-se limitada. As autoridades israelenses impuseram critérios imprevisíveis para autorizar a entrada de suprimentos, e muitas vezes estes não chegam ao destino devido à ausência de estradas seguras, aos conflitos e aos saques de alimentos e itens básicos de abastecimento.
No início de outubro, MSF tinha 25 caminhões só no Egito esperando para entrar em Gaza com suprimentos essenciais, como medicamentos analgésicos e antibióticos; anestésicos para cirurgia; monitores cardíacos; equipamento de Raio-X; camas para pacientes; geradores; e kits de higiene. Renato Rapp, responsável pela área de suprimentos em projetos de emergência de MSF, explica que o problema é que a quantidade que entra é menor do que a demanda, e que um dos maiores problemas são os equipamentos biomédicos e instrumentos, como agulha, bisturi, respirador e Raio X. “Isso é problemático para entrar. A gente não consegue. Às vezes precisamos tentar a autorização três, quatro, cinco vezes”, ressalta.
Para atender pacientes mutilados ou adoecidos, os profissionais de saúde precisam improvisar. “Em um hospital, o médico esterilizou da melhor forma que pôde um pedaço de vergalhão, utilizado na construção civil, para estabilizar o fixador externo com pinos colocados em uma pessoa após uma cirurgia ortopédica”, conta Rapp. “O improviso é necessário. Precisamos comprar coisas de “segunda mão” dentro do território, porque você não acha nada novo. É preciso readaptar o que tem”, explica. “O improviso faz parte do dia a dia e da nossa criatividade. O nosso hospital de campanha, por exemplo, é feito, em parte, com folhas de metal, porque não existe material de construção para fazer mais nada lá dentro. Então tudo é improvisado, tudo é temporário, feito com o material que existe naquele momento”, relata.
A entrada de medicamentos é mais fácil do que de equipamentos. Ainda assim, os estoques atuais são limitados e os atendimentos a feridos em massa são desafios para as equipes. “O risco de ficar sem insumos médicos é constante desde maio, quando invadiram a cidade de Rafah, porque as fronteiras ficaram mais restritas. O acesso humanitário ficou mais difícil, não só para MSF, mas para todos os atores humanitários que trabalham lá dentro”, alerta Renato Rapp.
A guerra em Gaza também impulsiona tensões regionais, que estão atingindo níveis desastrosos. Os ataques israelenses aumentaram na Cisjordânia e no Líbano. Só no Líbano, que já deixaram 1.300 pessoas mortas entre 16 de setembro e 1º de outubro, de acordo com o Ministério da Saúde local, e forçaram mais de 1 milhão de pessoas a fugir de suas casas.
Já são milhares de mortos, a maioria mulheres e crianças. Trata-se de um extermínio que representa o desrespeito à vida e a brutalidade dos tempos atuais, em que Israel, Hamas e os demais países do mundo falham sistematicamente para a chegada de um acordo de cessar-fogo sustentado em Gaza, enquanto o risco de um conflito total aumenta. É imperativo o fim à guerra em Gaza, a reconstrução do sistema de saúde e a adoção imediata de práticas de cuidado. Só uma democracia radical pode frear essa barbárie.
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
Referências
- Humanitarian Situation Update #224 | Gaza Strip. Disponível em: https://www.ochaopt.org/content/humanitarian-situation-update-224-gaza-strip
- Butler, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização brasileira, 2018.
- Casualties. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiODAxNTYzMDYtMjQ3YS00OTMzLTkxMWQtOTU1NWEwMzE5NTMwIiwidCI6ImY2MTBjMGI3LWJkMjQtNGIzOS04MTBiLTNkYzI4MGFmYjU5MCIsImMiOjh9
Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.