Podemos falar de um “desgoverno Bolsonaro”?
É bastante sintomático que o termo “desgoverno” como “ausência de governo” tenha surgido aqui no Brasil exatamente no momento de uma pandemia mundial
Quando não gostamos nada de um governo, muitas vezes dizemos que se trata de um “desgoverno”. Quando afirmamos isso, queremos mostrar que o governo tem tomado atitudes diferentes ou opostas àquelas que esperávamos, que irá prejudicar os nossos interesses ou opor-se aos nossos valores. Portanto, se trata de uma oposição ao governo da ocasião. Neste momento de grande comoção por um problema mundial de saúde pública, esses discursos estão por todos os lados: uma rápida pesquisa na internet mostrará o termo sendo usado para definir o governo Bolsonaro em diversos jornais escritos. No rádio, também se escuta isso.
Pode-se pensar que essa utilização venha da ideia de um “veículo desgovernado”. Um trem desgovernado, por exemplo, é um trem que está em perigo, colocando em risco os seus passageiros e quem esteja próximo dos seus trilhos. A ideia, em geral, não é a de que o perigo que o trem causa é devido a um condutor que não saiba pilotá-lo, mas sim, ao fato de que não há piloto. Mas as definições do dicionário dão conta de ambas: um “desgoverno” pode ser um mau governo ou a falta de governo. No passado, críticas feitas a gestões da presidência como “desgovernos” se referiam ao primeiro caso: um governo ruim. Contudo, agora, diante das mais de 160 mil mortes pelo coronavírus, tem-se falado de “desgoverno” como ausência de governo. Aí convém a pergunta: é possível, logicamente, um governo não governar? Ou, em outras palavras: é possível um Estado não governar? Se Jair Bolsonaro, que aparece diariamente como presidente do país exercendo o cargo, não está governando, o que ele estaria fazendo?
Por mais estranho que possa parecer, Estados nem sempre governaram. Aliás, governar é um fenômeno recente no mundo ocidental. No dicionário aparecem definições bastante atuais e um tanto vagas de “governo”: governo pode ser o tempo durante o qual os governantes exercem o seu cargo. Mas essa definição não satisfaz muito por dizer muito pouco. Talvez outra definição que também consta no dicionário satisfaça mais, embora venha da marinha: governo aparece como sinônimo de leme do navio. Ou seja, conduzir ativamente algo, como líder de indivíduos atuando coletivamente para alcançar determinado fim. E Estados soberanos nem sempre fizeram isso, como defende Foucault em Segurança, território, população.
Maquiavel é considerado o inaugurador da vertente realista em política, aquele que, no século XVI, deu as bases da moderna arte de governar. Maquiavel, entretanto, é passível de inúmeras interpretações. Uma delas – a de Foucault – é a de que o que ele sugeria ao príncipe não era um governo propriamente dito, mas atitudes que lhe garantissem a soberania. Se as circunstâncias possibilitassem e o soberano tivesse virtude, ele poderia ser amado ou temido pelos súditos, que aceitariam o seu mando e o defenderiam caso atacado. O tratado de Maquiavel não mostra ao príncipe as melhores maneiras de fazer efetivarem-se “políticas públicas” (para usar um termo atual) que visassem a melhores rotas de comunicação entre as cidades, maneiras de melhorar a produção de alimentos ou garantir a qualidade da água, oferecimento de assistência médica, construção de habitações adequadas para que os súditos vivessem bem, mais e melhor. Os agrados momentâneos do soberano têm como finalidade unicamente garantir a fidelidade dos seus com relação a si próprio. Qualquer outra finalidade, que não seja assegurar a própria soberania, é acessória.
A ideia de que o soberano precisa “cuidar” da sua população é posterior, do século XVIII. E ela emerge porque a riqueza das nações, conforme afirmou Adam Smith, não seria mais o ouro, mas sim, a capacidade de trabalho. À época em que Maquiavel escreveu, os reinos europeus eram ricos ou não graças à quantidade de ouro de que dispunham. Mas com as mudanças econômicas principiadas especialmente na Inglaterra, o capitalismo começa a engatinhar e é a força de trabalho o que passa a ditar a riqueza e poder de um soberano. Os súditos não seriam mais apenas aqueles que, por lealdade, defenderiam o objeto de riqueza em forma de metais preciosos do reino. Não. Eles são a própria riqueza em potencial de trabalho, eles são o objeto principal do soberano. O conhecimento essencial da arte de governar, a partir de então, passaria a ser a economia política, o efetivo cuidado com o aprimoramento das capacidades dos súditos de gerar riqueza. Sendo uma atividade humana que envolve diariamente capacidade física e intelectual, músculos e energia, o aspecto biológico dessa população passa a ser levado em conta. As estratégias do Estado se tornavam biopolíticas.
Com todas essas mudanças na economia e no pensamento político, não surpreende que tenha sido exatamente esse momento aquele em que o pensamento sobre saúde pública se tornou central para o Estado. Criar maneiras de aumentar a quantidade de braços para a indústria, impedir a morte prematura, elevar a longevidade, melhorar o vigor físico se tornaram preocupações importantes para uma nova concepção de um bom soberano. Ele deveria efetivamente governar a sua população, administrar todos os aspectos da vida cotidiana com vistas a garantir que a fome não seja impeditiva ao trabalho, que a água seja de boa qualidade, afastar de dentro das cidades elementos nocivos à saúde, fornecer a assistência médica necessária.
É bastante sintomático que o termo “desgoverno” como “ausência de governo” tenha surgido aqui no Brasil exatamente no momento de uma pandemia mundial. Afinal, historicamente, a ideia de governo está imbricada com a saúde pública. Governar é dirigir aquele barco com uma finalidade comum específica: possibilitar que os indivíduos tenham os meios necessários para viver mais, morrer menos, tenham a possibilidade física de gerar o máximo possível de riqueza para o Estado. Fazer isso de forma ineficiente é governar mau. Não fazer isso é não governar.
Em agosto de 2019, quando Jair Bolsonaro, irritado com a pergunta de um jornalista sobre a indicação do próprio filho para embaixador dos Estados Unidos, afirma “eu, Johny Bravo, ganhou, porra!”, referindo-se à vitória nas eleições, ele não está fazendo outra coisa senão afirmar a sua soberania conferida pelo voto. Quando convoca seus seguidores a invadirem hospitais para fiscalizar qualquer indício inexistente de fraude que ele possa ter sonhado, ele está inflando a sua rede de lealdade, atitude típica do soberano pré-século XVIII. Quando, já iniciada a pandemia, a sua maior preocupação na reunião ministerial do dia 22 de abril é a segurança jurídica da sua família, ele não está governando, está, à maneira dos reinados, ocupado com a imagem do clã no poder. Quando insiste na hidroxicloroquina, ainda que reiteradas vezes demonstrada ineficiente para o tratamento da Covid-19, demitindo ministro após ministro para que ela possa ser prescrita, ele está atentando contra a saúde pública para oferecer aos seguidores a imagem de salvador, que tem a bala de prata nas mãos, mas perseguido pelos inimigos da nação, o que na prática resulta em pacientes gritando com médicos pela receita do remédio que o aclamado presidente receitou, ainda que não seja pesquisador de fármacos.
Bolsonaro aposta na soberania por aclamação, teoria fundamentada por Carl Schmitt, um filósofo político alemão descrente na democracia e que deu as bases jurídicas do III Reich, se filiando ao partido nazista em 1933 e se tornando Conselheiro de Estado da Prússia. Para ele, a contabilização de votos não resultaria em legitimidade do soberano, mas sim, o quão aclamado ele fosse. E o soberano é aquele que consegue tal aclamação por ser o que tem a capacidade de definir quem é o inimigo da nação. Para o nazismo, isso cai como uma luva: a princípio, o Partido Nazista chegou ao poder pelo voto, mas a aclamação lhe conferiu a legitimidade subsequente para eleger o inimigo interno e criar os mecanismos para a sua eliminação.
A mesma paranoia a respeito do inimigo e a busca da aclamação se encontram no governo Bolsonaro. A maior preocupação do governo é acabar com o tal “comunismo cultural”, intervir em escolas e universidades para abolir a baderna, a “ideologia de gênero”, aproximar-se – mesmo que de maneira subserviente – aos Estados Unidos. O seu inimigo é a esquerda, o PT, a China, a Venezuela, os professores de humanas. Portanto, se a maneira de ocupar o Estado brasileiro é próxima daquela dos regimes nazista e fascista, o conteúdo da sua paranoia é a Guerra Fria. E esse discurso é tão potente na sua base que faz com que mais de metade dela diga que se recusaria a se vacinar com a “vacina chinesa”.
Daí decorre a impressão de que o governo Bolsonaro está em constante campanha, mesmo depois de eleito: ao escolher o elemento inexistente de combate – o comunismo –, as ações do líder se resumem a bravatas que geram essa coesão diante da liderança, e não um efetivo governo que gera resultados político-econômicos nacionais. Eventualmente acabam produzindo infelizes ocorrências pontuais, como a aglomeração de apoiadores para impedir o aborto garantido por lei de uma criança que foi estuprada, agressões a adeptos de religiões de matriz africana, perseguição a professores que não dizem o que o governo atual deseja que digam, ou o desmonte dos alicerces da ciência nacional que gerará enormes prejuízos no futuro. Nada disso, entretanto, tem qualquer efeito positivo de garantia das condições de vida e trabalho, requeridas pela mentalidade de governo que guia os Estados ocidentais desde o século XVIII.
Mesmo medidas pacíficas no campo da ideologia entre esquerda e direita sobre prevenção e profilaxia são colocadas nesse diapasão. E a postura escolhida pelo presidente foi o negacionismo. No começo, afirmou que não era necessário preocupar-se com a gripezinha, até porque não seria afetada uma pessoa com um bom porte físico, como o dele (um frustrado aspirante a macho alfa não deixaria escapar essa grande oportunidade de fazer uma delirante propaganda do próprio corpo). Além do aspecto eugenista explícito (só os bem constituídos fisicamente teriam direito a vida, os demais não), há já uma indicação da postura que o governo iria tomar: a crítica à política de controle eficaz do vírus, o isolamento físico.
A política dos estados e municípios foi basicamente de mitigação, ou seja, não foi uma tentativa de impedir a circulação do vírus, mas sim, evitar o colapso do sistema de saúde: o propósito era que a ocupação dos leitos não chegasse a 100%. Mas mesmo essa política foi criticada pelo presidente. Segundo ele, o seu desejo era armar a população para impedir a “ditadura” de prefeitos e governadores. Tratava-se do desejo de formar um braço armado civil, uma milícia, que resistiria e se imporia contra a única medida conhecida até o momento para o controle da disseminação do vírus. A milícia, portanto, se oporia ao governo eficiente de saúde pública para mostrar a sua lealdade ao líder. Posteriormente, em um momento em que o Instituto Butantã se associou a pesquisadores chineses, o mesmo aconteceu: ainda que a China seja a maior parceira comercial do Brasil, o ocupante da cadeira presidencial parece querer alertar aos seus seguidores para não se deixarem infectar pelo vírus do socialismo presente no composto chinês.
Muitos chamam o atual governo de conservador. Mas com tudo isso em vista, se poderia dizer que é uma afirmação demasiado otimista, porque não se trata de um governo que busca conservar aspectos que podem ser fruto de discussão entre conservadores e progressistas. A base cognitiva e que gera a sua legitimidade, ao menos entre os apoiadores, é uma visão de mundo que insere a Guerra Fria em qualquer debate. Por outro lado, a maneira como este governo ocupa o Estado, afirmando reiteradamente a sua soberania ao invés de efetivamente governar, é uma maneira que não se assemelha nem às formas burguesas consideradas aceitáveis de quase três séculos. Trata-se de um estilo predatório, uma visão medieval de Estado, que impõe a manutenção da rede de lealdades do rei como finalidade de toda a atividade política. Não que outros governos não tenham tido a finalidade de se perpetuar no poder, mas buscaram conseguir isso de acordo com políticas que fossem entendidas como efetiva melhoria em questões como educação, saúde pública, moradia, transportes. Por outro lado, quando tudo o que se pretende é tirar o comunismo da saúde pública, da moradia, dos transportes, da educação, o que se está fazendo é basicamente dar aquela piscadela marota para a sua paranoica base de apoio, simplesmente pelo fato de que o problema que se diz pretender corrigir não existe.
Ao renunciar criar uma política efetiva de saúde pública, ao mesmo tempo em que a sua atividade política é exaltar a lealdade dos seguidores e preocupar-se em obter o controle da Polícia Federal para impedir investigações sobre a sua família, Jair Bolsonaro demonstra que, de fato, não governa, mas infla a sua soberania por aclamação. Contudo, alguns lampejos de governo surgem quando o presidente faz o que prometeu não fazer durante a campanha toda: política partidária. Ao aproximar-se do chamado Centrão (que, apesar do nome, não está no centro do espectro político de maneira nenhuma), Bolsonaro dá alguma indicação de que começa a governar. O auxílio emergencial é fruto dessas articulações. Aliás, o valor de R$ 600 sugerido pelo congresso e adotado pelo governo federal lhe gerou dividendos políticos: sua popularidade cresceu nas regiões em que menos recebeu votos: a nordeste e a norte. Candidato a prefeito de São Paulo, Celso Russomanno, que conta com o apoio do presidente, fala do “auxílio emergencial do Bolsonaro”. Uma vez que agradou, Bolsonaro assume o filho que não é dele.
Na mesma onda, o plano Pró-Brasil apresentado pelo Ministro da Casa Civil Walter Souza Braga Netto é semelhante aos programas petistas, especialmente o de Dilma Rousseff. O que se trata claramente de um giro oportunista, uma vez que o programa votado em 2018 era neoliberal. Não conseguindo cumprir a agenda de privatizações e reformas, o governo tem se ancorado na aposta econômica do outro lado. O campo econômico que o apoiava tem se mostrado desapontado com a incapacidade de Paulo Guedes de gerar crescimento, mas seguramente ficará muito mais caso essa mudança de eixo seja efetivada.
Contudo, por enquanto, o que caracteriza a gestão Bolsonaro não é nem a efetivação do seu plano econômico nem o que tem sido apontado por Braga Netto. A política de saúde pública durante a pandemia tem sido desautorizar opositores e ministros nomeados pelo próprio presidente quando não assumem a postura negacionista de Bolsonaro. Tornam-se imediatamente inimigos aqueles que não negam a gravidade da situação e os estudos científicos que demonstraram que a hidroxicloroquina não deve ser ministrada como remédio para o novo coronavírus. Segundo o chefe da nação, a gestão da saúde não deveria se pautar em dados estatísticos e estudos farmacológicos para decidir o que fazer, mas sim, demonstrar a lealdade aos líderes políticos, Donald Trump e Jair Bolsonaro, que decidiram que as medidas de profilaxia sugeridas pelas autoridades científicas não devem ser efetivadas e porque eles têm a solução. A adoção dessa falsa fácil solução não tem impacto na redução do número de adoecidos e mortos – na verdade, atrapalha a política de assistência –, a sua função é explicitar a sua rede de lealdade.
Agradeço as sugestões a uma primeira versão desse texto de Rafael Godoi.
Rafael Mantovani é sociólogo, doutor pela FFLCH/USP e pós-doutorado pela Faculdade de Saúde Pública/USP. Autor do livro “Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840)” – Fiocruz (2017).