Poder político e institucional de militares permanece
Sessenta anos de um aparelho repressivo violento que se molda, quase se desfaz; mas se reorganiza na manutenção da ordem brasileira
Sessenta anos de 1964. Essa data poderia ser um exercício de memória de um passado distante e superado, sem a interferência de militares na política brasileira na atualidade. No entanto, a natureza da data é exatamente oposta. Esses sessenta anos vêm carregados de permanências da militarização na nossa sociedade: a tentativa golpista do 8 de janeiro, o governo militar de Jair Bolsonaro, o genocídio militarizado nas periferias, a execução de Marielle Franco por milicías e, sobretudo, as permanências autoritárias de instrumentos militarizados na institucionalidade brasileira.
E não só. Também são sessenta anos sem respostas do Estado brasileiro para inúmeras famílias que seguem buscando informações acerca de seus familiares mortos e desaparecidos pela ditadura. Sessenta anos sem a responsabilização nem individual, nem institucional das Forças Armadas nos crimes cometidos na ditadura. Sessenta anos sem a responsabilização adequada das empresas que lucraram com a ditadura. E sessenta anos de um aparelho repressivo violento que se molda, quase se desfaz; mas se reorganiza na manutenção da ordem brasileira.
Apesar de pela primeira vez termos indiciamentos de militares pelos crimes cometidos em atividades antidemocráticas decorrentes do 8 de janeiro de 2023, a invisibilização das estruturas que sustentam o golpismo permanece. É imenso o risco de limitarmos a cadeia de responsabilização (se conseguirmos chegar a condenações) e não viabilizarmos reformas estruturais que impeçam, efetivamente, novos acontecimentos semelhantes.
A história do 8 de janeiro de 2023 não começa apenas no governo Bolsonaro. Ela é muito anterior. Assim como a construção política e militar que viabilizou o golpe de 1964 foi um processo de décadas. Para o êxito em 1964, além das variáveis conjunturais, o controle político realizado pelas Forças Armadas com relativo sucesso foi importante, a profissionalização das armadas, a construção de uma ideologia intervencionista sobre a Revolução Brasileira nas Forças (a ideia de que apenas as FA eram imbuídas de um espírito nacional capaz de realizar um processo de unidade nacional para fins de desenvolvimento econômico), o acordo de aliança interna (maioria da imprensa, igreja, setores políticos e econômicos) e externa (em especial Estados Unidos) para a realização do golpe, a construção de um sistema de inteligência capaz de sustentar esse processo, o controle das polícias pelas FA; dentre outros fatores.
Antes de 1964, era comum a intervenção das FA na política brasileira durante toda a república. A exigência do parlamentarismo para a assunção de Jango em 1961, tentativas de golpe em 1956 e 1954 (interrompida pelo suicídio de Getúlio) e, inclusive um golpe em Getúlio em 1946, poucos dias antes da posse de Eurico Gaspar Dutra (que também era militar, mas ganhou por eleições). O golpe do Estado Novo em 1937 e formação de um Estado policial, a própria base de sustentação da Revolução de 1930 (onde se inicia um novo momento das Forças em termos de profissionalização e construção ideológica); dentre outras participações e processos durante a velha república.
Em 1964, a parcela política que apoiou o golpe, esperava que após a cassação de mandatos parlamentares e expurgos nas instituições estatais, incluindo as militares, se retomasse o controle civil. Foram 21 anos de controle de militares aliados a civis e setores econômicos importantes. Esse período garantiu um dos maiores crescimentos industriais, com maior índice de exploração do trabalho e aumento da desigualdade; não foi circunstancial. O processo autoritário permitia um maior controle dos trabalhadores e a impossibilidade de sindicatos autônomos. A morte e violência no campo também permitiam maior controle dos proprietários. Isso sem contar o quanto os termos do nosso endividamento externo e a crise inflacionária posterior significou para a imensa maioria dos brasileiros.
Esse projeto teve como base a repressão política, a violência policial militarizada e completa quebra de processos com garantias processuais. Em outras palavras, dentro da ditadura vivemos um Estado policial.
A nossa transição de regime durou cerca de uma década. A Lei da Anistia de 1979 é o primeiro pacto fundacional do nosso regime político e da própria efetivação da transição. Ocorre que a Lei é proclamada e construída numa correlação de forças ainda muito pendente para os militares, que não englobava militantes da luta armada num primeiro momento, mas anistiava o terrorismo de Estado. Outras legislações foram ampliando a anistia para militantes da luta armada. No entanto, a anistia para o terrorismo de Estado, a tortura, o desaparecimento e o assassinato organizado pelas instituições nunca foi alterada. Para pensarmos um processo de reconhecimento real dos crimes de militares na ditadura precisaríamos da revisão da Lei da Anistia.
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O percurso histórico para a transição ainda levou um certo tempo. Embora o marco de 1985 seja importante para a assunção novamente de um presidente civil, é apenas em 1989 que teremos eleições diretas e é a Constituição de 1988 que desenhou o modelo institucional da Nova República.
A influência dos militares na Constituinte permaneceu decisiva apesar das denúncias já existentes – e da publicação em 1985 do livro Brasil: nunca mais, a partir da cópia e relatos sistematizados de processos judiciais que corriam no Superior Tribunal Militar na época, que reunia as práticas de torturas, nome de desaparecidos e mortos (e até torturados, embora não divulgados imediatamente).
Por meio de um organizado lobby e de importantes ameaças, os militares mantiveram o artigo 142 no seu desenho histórico de outras constituições, mantendo o papel direto das Forças Armadas na ordem interna através do mecanismo da Garantia da Lei e da Ordem e da manutenção dos poderes constituídos. Ademais, manteve importantes instrumentos autoritários no seu texto: a polícia ostensiva ainda militar, a competência ainda ampliada da justiça militar para julgamento de alguns casos envolvendo civis (embora esse ponto tenha sido objeto de avanços e retrocessos por emendas constitucionais ao longo dos anos) e a manutenção dos sistemas de inteligência. O SNI não foi dissolvido imediatamente, passando por alterações e outras nomenclaturas, mas apenas consolidando uma agência civil de inteligência com a Abin em 1999. No entanto, esta sempre ficou subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional “GSI”, com a chefia ocupada historicamente por um militar. De igual modo, as inteligências das três forças permanecem operantes, assim como as das polícias.
A influência de militares vai oscilar ao longo das décadas seguintes. Embora com essas vitórias, a derrota desse setor tenha sido maior e com isso tenha amargado os problemas concretos da perda de poder. Teremos a criação, em 1995, da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, da Comissão da Anistia em 2002, e a Comissão da Verdade em 2011. Essas comissões foram importantes para alguma forma de reparação das vítimas da ditadura e seus familiares, assim como da assunção de algumas responsabilidades de grupos empresariais. No entanto, os limites de documentos ainda sigilosos e a vigência da Lei da Anistia impossibilitaram um maior desvelar dos fatos e, sobretudo, da responsabilização dos agentes envolvidos.
A cultura militar permaneceu sob a guarda dos próprios militares, sem controle educacional e político de suas escolas. De igual modo, convivemos ao longo das décadas com setores golpistas estimulando uma disputa de narrativa histórica.
Convivemos com os métodos repressivos da ditadura absolutamente aplicados pelas polícias militares nas periferias. Todo aparato foi deslocado para a “guerra às drogas”, numa verdadeira “exceção” autoritária do território periférico e negro do país. A polícia que mais mata no mundo, também não é circunstancial, vem, exatamente, desse projeto político de controle social pela força das armas.
Assim como o surgimento das milícias está relacionado com o empoderamento de militares durante a ditadura, que acentuam a radicalidade do domínio autoritário nos territórios periféricos, num processo de corrupção e “semi autonomização” do domínio central das instituições militares, terá seu centro o Rio de Janeiro. O processo mais recente de milicianização do Rio, com um domínio cada vez maior de territórios, aliança com o tráfico e setores constitutivos, é a sofisticação desse projeto por meio de um novo ciclo de empoderamento desses setores e de facções ligadas ao governo estadual e federal, em especial com a assunção de Bolsonaro à presidência.
As revelações dos mandantes da execução da vereadora Marielle Franco no Rio, de uma família de políticos milicianos do Rio (os Brasão) e com o envolvimento do delegado Rivaldo, que assumiu a partir da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro em 2018, sob comando do general Braga Netto, não poderia ser mais simbólica desse domínio que tem uma construção que vem desde a ditadura e que vem se articulando novamente em um novo projeto político de poder.
É importante ressaltar como o golpe de 2016 foi uma virada importante da rearticulação mais hegemônica de um grupo político que vinha ganhando espaço na política brasileira. Foram anos de construção e aumento da bancada da bala, e também da família Bolsonaro como um polo desse cenário mais reacionário diretamente relacionado com a ditadura militar e os militares em geral. nesse sentido, é importante frisar que os militares nunca saíram completamente da política. mantiveram uma coluna importante batalhando por suas pautas corporativas e também pela manutenção de privilégios e espaços de poder político na sociedade.
O processo mundial de articulação de uma extrema direita vai encontrar no Brasil um ator determinante que são os militares. Isso se dará pelas construções históricas que mencionamos, e como sempre que a saída passa ser mais autoritária no Brasil, haverá o envolvimento e protagonismo do setor militar brasileiro. Essa articulação se inicia em 2016, com a retomada do Ministério da Defesa por militares, assim como dos sistemas de inteligência (o primeiro contrato do software espião da Abin é feito durante a intervenção Federal de Temer no Rio), a ameaça para a manutenção da prisão de Lula em 2018 (articulada pelo alto comando) e a sua consequente impossibilidade de disputa do pleito eleitoral e, sobretudo, o processo dirigente com a candidatura de um militar, com um vice também militar (chapa Bolsonaro-Mourão).
O processo de militarização do governo Bolsonaro é tema de inúmeros debates, além da máquina pública encharcada de cargos comissionados para militares da ativa e da reserva (cerca de 7 mil), seu primeiro escalão é composto de maioria militar e com uma lógica também cada vez mais militarizada. É um governo militar sem um Estado policial, mas que romperá com inúmeros processos institucionais e democráticos (alguns que permanecem ainda hoje como as escolas cívico-militares).
Não pretendemos desenvolver uma análise do governo de Jair Bolsonaro, mas apenas apontar como os instrumentos persecutórios da ditadura foram utilizados por seu governo e como o 8 de janeiro vem dessa mesma tradição militar. Durante seu governo, todos os 31 de março tiveram as tais “ordem do dia” reivindicando o golpe de 64. E mesmo após o indiciamento de militares na tentativa golpista do 8, o general Mourão e o Clube Militar fizeram demonstrações públicas e notas saudosistas sobre 1964.
É verdade que é fato inédito essa possível responsabilização de militares por atos antidemocráticos. Todavia, reconhecer que a memória é uma só é fundamental para compreendermos como desmontar as estruturas que permitiram esse golpe: participação dos militares na política, falta de controle civil sobre as instituições militares (escolas, inteligência, atividades em geral), permanência na justiça militar de alguns julgamentos de militares contra civis (é o caso da lei de 2017 sobre crimes contra a vida em GLOs, onde a competência passa a ser da justiça militar), o domínio dos sistemas de inteligência, a polícia militar, a possibilidade da GLO; dentre outros. Como novidade, as escolas cívico- militares são um legado que precisa ser desmontado deste processo.
Por isso, Lula se equivoca quando aponta que é passado e revanchismo a tentativa de responsabilização de militares pelos atos cometidos durante a Ditadura e impede manifestações do governo de memória e rechaço deste período no dia 31 de março. Sem olharmos para esses agentes e essas instituições como um todo, sem entendermos que a Constituição de 1988 foi cidadã em muitos aspectos, mas não nesse, é impossível revertermos as ameaças que os atentados de 8 de janeiro representam.
Não podemos reduzir a um número restrito de militares, mesmo que inclua o próprio Bolsonaro, e acreditarmos que estamos resolvendo o problema autoritário do país. Senão, ocorrerão cada vez mais chacinas, mais violência de Estado, mais instituições autoritárias com força para burlar os processos democráticos, mais tentativas de golpe. A extrema direita segue organizada e mobilizada. A agenda econômica dessa extrema direita é evidente, a radicalização do neoliberalismo, com precarização do trabalho e retirada de direitos. Temos que aproveitar nossa janela histórica para realizar reformas que protejam e transformem o país.
Além da necessária e justa reivindicação de familiares de mortos, desaparecidos e torturados pela ditadura, é sobre a memória do nosso país. Memória que permite reparação e construção de mecanismo para que, efetivamente, nunca mais aconteça.
Julia Almeida é autora do livro A militarização da política no Brasil contemporâneo, publicado pela editora Alameda em 2023. É doutoranda em Direito pela USP, mestre em Direito pela UFRJ (2020), advogada, professora de Direito na Universidade Anhembi Morumbi e pesquisadora no DHCTEM/USP e no NEV/USP.