Poderes desequilibrados, democracia frágil
O historiador, membro da Academia Brasileira de Letras e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, José Murilo de Carvalho, analisa atuação do Ministério Público e da Polícia Federal contra a corrupção, o desequilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário, e a desigualdade social como entrave à democracia
A atuação do Ministério Público, da Polícia Federal e do sistema Judiciário, ainda que elogiada pelo combate à corrupção e pelo conceito republicano de bom uso do dinheiro público, podem contribuir para o enfraquecimento da representação política através das eleições. A avaliação é de José Murilo de Carvalho, historiador, membro da Academia Brasileira de Letras e professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo José Murilo, a situação exige atenção, também pelo desequilíbrio existente entre Executivo, Legislativo e Judiciário. “A PF, o MP e o Judiciário têm mostrado nos últimos movimentos que estão visando gregos e troianos, o que legitima sua atuação. Dessa crise toda, têm resultado dois pontos positivos para a República: o silêncio dos militares e o avanço na democratização da justiça. A situação não é sem risco. O inédito protagonismo do Poder Judiciário coloca em questão a representação via eleições e o equilíbrio entre os poderes”, avalia o historiador.
A desigualdade social perene da sociedade brasileira também é, na opinião do historiador, um entrave ao desenvolvimento da democracia. Ainda que o sistema tenha incluído uma parcela significativa no sistema eleitoral nos últimos anos, aumentando a diversidade de participação na escolha dos representantes, a baixa instrução social influencia a escolha exercida pelo eleitorado. “Não há república democrática sólida sem cidadãos capacitados para intervir na política de maneira efetiva. O eleitor pobre vota racionalmente, mas é limitado em sua liberdade pelas condições materiais de vida e pela escassez dos recursos políticos conferidos pela educação”, analisa.
Le Monde Diplomatique: Em Cidadania no Brasil, você diz que os brasileiros tinham uma relação de distância com a política até 1930. A cidadania era exercida de maneira controvérsia. A qualidade de participação cidadã mudou ou as reivindicações seguem movidas por situações adversas?
José Murilo de Carvalho: A quantidade e a qualidade da participação melhoraram muito, sobretudo a primeira. Não há mais bestializados. O que não mudou é a desigualdade, é o grande número dos excluídos social e economicamente. Mas hoje eles votam e elegeram seus candidatos nas últimas quatro eleições presidenciais. Não foi culpa deles ter dado no que deu. Há, sim, problemas sérios de representatividade nas eleições legislativas, envolvendo as regras eleitorais e partidárias: excesso de partidos, alto custo das eleições, falta de mecanismos de prestação de contas, como o recall. A dificuldade é conseguir a aprovação de medidas corretivas que contrariem os interesses dos atuais congressistas. Talvez se deva pensar em constituinte para discutir este e outros assuntos polêmicos.
A mobilização popular ocorrida no fim de abril pode influenciar as votações das reformas ou o descolamento entre sociedade civil e Congresso, nesse momento, para esses assuntos, é irreversível?
Não se pode naturalizar a “sociedade civil”. Não há uma sociedade civil. Há grupos mais ou menos organizados que representam as opiniões das parcelas mais articuladas da sociedade, mas que não incluem a grande maioria, o povão que decide eleições. A parcela que está se manifestando hoje é quase totalmente sindical. Nada tem a ver, por exemplo, com a que se manifestou em 2013. Além disso, os trabalhadores sindicalizados representam apenas cerca de 20% da população ocupada. Essa parcela tem apoio fora do mundo sindical no que se refere à oposição à reforma da previdência, não o tem necessariamente na crítica à reforma das leis trabalhistas. Não por acaso tem sido mais fácil a aprovação da última no Congresso.
Desde 1889, quando se iniciou a República, o Brasil teve problemas: primeiro para formar uma nação refém da escravidão e recém-saída da monarquia. Passada a primeira República, veio a Era Vargas. Poucos anos depois, a Ditadura Militar. Dois impeachments desde a Constituição cidadã de 1988. O que explica tantos solavancos em menos de 150 anos?
Desde 1930, 87 anos atrás, só quatro presidentes eleitos popularmente completaram os mandatos: Dutra, JK, FHC e Lula. Os dois últimos foram alvos de campanhas de impeachment. É um desempenho desastroso. Uma das possíveis causas do fenômeno pode ser a rapidez com que o povo invadiu a arena política via eleições. Em 1945, 13% da população votavam; hoje 68% o fazem. O sistema teve e continua a ter dificuldades em absorver esta invasão por conta das pressões por ela trazidas na direção de políticas redistributivas.
Temos um Executivo com líderes enfraquecidos perante a população, um Legislativo desmoralizado, e que não representa a vontade popular, e um Judiciário atuante, mas questionado por uma suposta parcialidade. Esse desequilíbrio demonstra que ainda temos uma República frágil?
Sem dúvida. A PF, o MP e o Judiciário têm mostrado nos últimos movimentos que estão visando gregos e troianos, o que legitima sua atuação. Dessa crise toda, têm resultado dois pontos positivos para a República: o silêncio dos militares e o avanço na democratização da justiça. A situação não é sem risco. O inédito protagonismo do Poder Judiciário coloca em questão a representação via eleições e o equilíbrio entre os poderes.
A desigualdade de instrução, derivada da desigualdade social, ainda é o maior problema para o desenvolvimento da nossa democracia?
Sem dúvida. Não há república democrática sólida sem cidadãos capacitados para intervir na política de maneira efetiva. O eleitor pobre vota racionalmente, mas é limitado em sua liberdade pelas condições materiais de vida e pela escassez dos recursos políticos conferidos pela educação. Com os níveis de desigualdade que temos não será possível construir uma república democrática. O grande problema, então, é forjar um sistema político que seja capaz de reduzir a desigualdade combinando desenvolvimento e distribuição.
O entendimento da política brasileira como um campo regido pela corrupção enfraquece os mecanismos de participação popular e aumenta a descrença no funcionamento das instituições democráticas?
A ênfase exagerada no fenômeno da corrupção, mesmo sendo ele inegável, pode, de fato, prejudicar os esforços de levar adiante a tarefa de construção de uma república democrática. Pode favorecer o componente republicano, entendido como bom governo, em detrimento do democrático, entendido como inclusão social.
A dificuldade dos brasileiros à formalidade e à impessoalidade das leis e do Estado, como apontou Sérgio Buarque, é um entrave à democracia?
É um fenômeno já apontado por Sílvio Romero (1851-1914, historiador e cientista político), quando falou de nossa formação comunária. Pode favorecer o clientelismo, o nepotismo, o populismo, o salvacionismo. Mas não precisa ser uma condenação. Entre 1945 e 1964, formava-se uma estrutura partidária bastante sólida e bem definida. Os governos militares puseram tudo a perder e a nova República inaugurada em 1985 não conseguiu até agora retomar o processo.
O filósofo francês Alain Badiou afirma que “Passar da revolta à ideia é passar da negação à afirmação”. A composição de novas frentes, de novas maneiras de fazer política passa pela transformação de mentalidade, ainda que a realidade brasileira seja desastrosa?
A simples negação certamente não leva à construção de coisa alguma. Mas as crises são também momentos de aprendizado. Nossa experiência de construção democrática é muito curta em comparação com a dos países europeus, por exemplo. Não há como mudar mentalidades sem o aprendizado das lutas cotidianas. Permanecendo as colunas do sistema democrático garantidas na Constituição, sempre haverá possibilidade de avanços.
Você já disse que não acredita em uma liderança carismática e nova até 2018. Mas há uma incompatibilidade notória com os políticos atuais. Como resolver esse impasse de candidatos, partindo do princípio de que a casta política não mudará significativamente até lá?
Tivemos duas experiências de lideranças carismáticas, Collor e Lula. A primeira foi um fiasco. A segunda sofreu forte abalo. Em cenário tão polarizado como o atual, continuo a achar difícil surgir outra liderança que seja capaz de agregar votos suficientes para ganhar as eleições de 2018. A Lava-Jato permitindo, teremos provavelmente variações do mesmo: Lula, Dória, Marina, Ciro Gomes e por aí vai.
O aparecimento de fenômenos políticos como o Macron, na França, dito de Centro, mas que privilegia políticas liberais, é resultado do enfraquecimento da esquerda ou é fomentado por um discurso supostamente novo de conciliação?
A esquerda não “delivered”, como dizem os norte-americanos, e o discurso de Macron não é novo. Quando parecia que a social democracia estava a caminho de resolver o problema da conciliação entre liberdade e igualdade, novos fenômenos como as crises do capitalismo internacionalizado, a imigração e as mudanças na estratificação social causadas pelas novas tecnologias vêm trazer novas complicações. É uma reafirmação do caráter dinâmico da história, da exigência de contínua criatividade no diagnóstico das novas realidades e da necessidade de persistência na luta pela justiça social.
Guilherme Henrique é jornalista