Política da morte e a reconstrução da cidadania
Onde o controle vertical foi experimentado e mantida a circulação das pessoas, houve uma disseminação mais rápida e ampla do vírus, o que fez com que se voltasse atrás ao se perceber o erro – como é o caso da Itália e do Reino Unido. A comparação de China e Coreia do Sul com Itália e Espanha sugere que aqueles que relutaram em suspender o grosso da atividade econômica têm enfrentado desafios maiores que os demais.
Em pronunciamento à nação no dia 24 de março, o presidente do Brasil, Jair M. Bolsonaro, disse que, durante a pandemia do Sars-Cov2, a prioridade do governo deve ser a de manter empresas funcionando normalmente porque a fome matará mais que o coronavírus. Em um momento em que os brasileiros se põem em quarentena, e médicos, governadores e parlamentares buscam preparar o país para a crise sanitária, o presidente parece exclusivamente preocupado com a economia, desafiando o conhecimento científico sobre formas para melhor proteger a sociedade. O seu discurso é composto de falácias e falsidades.
Tentemos compreender o que disse o presidente. Para ele, o controle da epidemia e o funcionamento regular da economia seriam objetivos alcançáveis simultaneamente. Mas o funcionamento da economia é a prioridade, pelo seu potencial de salvar mais vidas. Se as pessoas perderem seus empregos, morrerão de fome; se voltarem a trabalhar, poderão se alimentar. Do outro lado da equação, a maioria dos infectados não terá sintomas. No cálculo comparativo seria preferível escolher (já que a escolha seria incontornável) um número maior de vidas salvas.
A realidade se imporá. Onde o controle vertical foi experimentado e mantida a circulação das pessoas, houve uma disseminação mais rápida e ampla do vírus, o que fez com que se voltasse atrás ao se perceber o erro – como é o caso da Itália e do Reino Unido. A comparação de China e Coreia do Sul com Itália e Espanha sugere que aqueles que relutaram em suspender o grosso da atividade econômica têm enfrentado desafios maiores que os demais. Os sistemas de saúde não suportam a demanda massiva por internações decorrente de quadros de insuficiência respiratória.
O diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, lembrou, em resposta direta ao presidente brasileiro, que “em muitos países, as UTIs estão lotadas”. Projeções apontam que o mesmo pode acontecer no Brasil se a vontade de Bolsonaro se impuser. Mas seu cálculo é realmente o de que, para manter empresas abertas, o sacrifício de milhares e milhares de vidas é necessário, por um lado, e justificado, por outro. Trata-se de uma política da morte que desautoriza inclusive o corpo técnico do Ministério da Saúde, cujo ministro oscila entre declarações condescendentes ao presidente e reiterações da posição oficial, recomendando isolamento social.

Inadmissível
Mas, ainda que admitíssemos o inadmissível, a saber, o sacrifício de milhares de vidas para manter empresas abertas, é verdade que dessa maneira empregos seriam salvos? E é verdade que essa seria a única maneira de salvar empregos? Não! Conforme o número de doentes graves for aumentando, e se aproximando o momento em que o sistema de saúde tenha de fazer triagens cada vez mais cruéis, o pânico social será inevitável. O antagonismo entre medidas sanitárias e necessidade econômica é falacioso já desde a perspectiva da economia: no modelo de isolamento vertical, o colapso dos sistemas de saúde seria inevitável, por um lado, e por outro lado a segurança alimentar pode e deve ser assegurada pela ação do Estado.
Também é falacioso desde uma perspectiva moral. No cálculo de mal menor em defesa da suspensão de medidas sanitárias, vidas de pessoas mais maduras e com doenças comuns, como bronquite asmática, deixam de ser consideradas valiosas diante da prioridade de manter empresas funcionando. Grupos sociais como idosos, doentes e moradores de rua passam a ser descartáveis. Além disso, o presidente insiste em uma solução inócua e perigosa, enquanto economistas como Monica de Bolle, Laura Carvalho, Armínio Fraga e outros lhe apresentam alternativas reais para resguardar as condições para a retomada da atividade econômica, passada a crise sanitária.
Direita e esquerda
Economistas à direita e à esquerda têm mostrado que não há normalidade possível diante da inevitável recessão que virá. Elas têm apresentado alternativas reais para evitar o colapso econômico: todas dependentes, claro, da ação do Estado. Aspectos das propostas têm sido adotados em quase todo o mundo, e compreendem, de modo geral, a provisão vultosa ou ilimitada de recursos para os sistemas públicos de saúde, de renda emergencial para desassistidos e o auxílio a empresas condicionado à manutenção do emprego. Visam fortalecer a rede de proteção social e manter o emprego em um momento de diminuição brutal e abrupta da atividade econômica.
Mas há aqui oportunidade para ao menos iniciar uma reflexão urgente, e que examina as razões da nossa vulnerabilidade. Tais medidas de natureza social, justificadas publicamente pela excepcionalidade do contexto, deixam claras as condições de realidade em que o mercado e a democracia têm funcionado – com ou sem vírus. No Brasil, a crise sanitária encontra um sistema público de saúde cuja necessidade é contestada pelo grupo no poder, combalido por falta de recursos, em parte por um esforço atabalhoado de ajuste das contas públicas pela chamada “PEC do Teto”, em cuja formulação parece ter pesado certa desconfiança de agentes econômicos e economistas em relação à democracia representativa. Também encontra uma parcela importante da população morando em espaços de aglomeração, sem saneamento básico e por vezes sequer água para lavar as mãos, e vivendo de trabalhos informais ou desempregada, na miséria e na pobreza, sob o ditame constante e absoluto dos seus corpos (Arendt). A normalidade do capitalismo brasileiro, sua forma e seu funcionamento antes da crise sanitária, já convivia com a precariedade de vidas individuais.
No entanto, o mainstream econômico justifica a adoção das medidas de proteção pela excepcionalidade das circunstâncias. Subitamente, ideias relativas à ampliação dos gastos públicos para fins sociais deixa novamente de ser tabu e há abertura para se rediscutir a relação entre interesses econômicos, necessidades vitais e a possibilidade da política. Nossa impressão é de que, como têm dito de Adam Tooze a Monica de Bolle, a atual crise é sem precedentes e marco de descontinuidade na história do capitalismo, compelindo a imaginação a pensar os efeitos distorcivos do capitalismo na sociedade brasileira e abrindo espaço para ampliar o debate sobre as condições materiais da cidadania.
Um bom ponto de partida para esse esforço é a distinção que Arendt propõe entre liberdades individuais, como a de não se ocupar dos assuntos públicos e perseguir interesses privados, e direitos públicos, associados ao que o Oitocentos chamou de felicidade pública. Essa distinção se baseia na ideia de que todos temos ao menos duas vidas: a nossa vida privada e aquela que a cidadania nos confere, ao nos igualar uns aos outros. Nas democracias constitucionais, o que nos iguala é a lei, mas trata-se de uma igualdade formal, que não se faz acompanhar das condições materiais para que os cidadãos possam se despreocupar de sua subsistência e tomar parte nas deliberações concernentes ao bem comum. Eles continuam sendo constrangidos por suas necessidades vitais, que são mais urgentes. O acesso a recursos de subsistência pode ser pensado, portanto, como uma condição para a política e, por consequência, a liberdade, o único espaço em que, para Arendt, ela se pode alcançar. Formulado nesses termos, o problema remonta ao par liberação-liberdade (Sobre a revolução). Já em Direitos públicos e interesses privados (1974) ela afirma expressamente que, quando se fala em igualdade nas condições modernas, é preciso perguntar como mudar as circunstâncias da vida dos pobres, além da proteção do público em relação aos interesses dos ricos. Para isso, segue Arendt, é preciso dar-lhes dinheiro, uma provisão direta para criar as condições para um esforço de imparcialidade na deliberação pública, através da satisfação de necessidades privadas. Apenas a prestação de serviços públicos, insinua Arendt, não seria suficiente.
No momento, é porque todos precisam ficar em casa pelo bem da saúde pública que as agruras cotidianas de milhões de brasileiros encontrarão, ao que parece, resposta – uma resposta temporária e tímida. Na sua versão mais robusta, ela passaria por formas de ação do Estado que têm sido propostas por alguns grupos para tempos normais, como a renda básica incondicional à universalidade da cidadania, além do fortalecimento de serviços e seguros públicos. Uma medida desse tipo tem sentido no Brasil, se considerarmos a nossa relação histórica com o trabalho, como o remuneramos, a persistência da desigualdade entre nós e que um mundo global orientado para o acúmulo de riqueza sob proteção estatal e o consumo nos torna mais suscetíveis a vicissitudes da vida, catástrofes ambientais e fenômenos pandêmicos. A provisão de uma renda básica ajuda a resguardar a própria economia, por dar a todos maior segurança, ampliar a esfera de autonomia, mudar a relação com o trabalho, dar a trabalhadores recursos para se qualificarem, etc. Ela é uma espécie de equalizador material que contribui para criar condições mais favoráveis à deliberação pública. Amplia a esfera dos participantes na conversação democrática e potencialmente diminui o peso do poder econômico nela. Sua construção como um direito público representa, enfim, uma ruptura com a associação ideológica entre transferência de renda e assistencialismo, que tem sido usada para a construção de seus recipientes como cidadãos sem agência em um discurso público com tonalidade antiplebeísta. Ora, a razão de ser da renda básica, liberar os indivíduos para a cidadania, é republicana.
Terá sido necessária uma calamidade pública para nos darmos conta da urgência e razoabilidade dessas propostas, o que diz muito sobre o estado da conversação pública no Brasil. Note-se que, como para Arendt a liberação dos constrangimentos que a subsistência impõe é condição para a liberdade, ou seja, para a agência na cidadania, o argumento por essa liberação não deveria ter coloração política específica. Estamos falando das condições de possibilidade do jogo ainda não jogado, de um consenso mínimo para a existência de um debate democrático no seio do qual antagonismos se confrontem. Antes disso, há apenas uma forma sem vida de cidadania, e não uma real conversação pública acerca do aperfeiçoamento contínuo da comunidade. Esperamos que da catástrofe emerja uma percepção mais clara sobre a necessidade de corrigir um modelo que, finalmente, mostra-se incompatível com a participação democrática e a liberdade – em uma palavra: com a cidadania.