A política e a literatura
A escritora Vera Saad conta os bastidores da escrita do livro “A face mais doce do azar”, que resgata o início dos anos 1990 para ilustrar a desestruturação de uma família afetada pela política econômica da Era Collor
O ano era 2018. Tinha acabado de ler Complô contra a América, de Philip Roth, passávamos por um período bastante complicado, com a ameaça da eleição de Bolsonaro. O livro supunha a eleição de Charles Lindbergh à presidência dos Estados Unidos no início da década de 1940. O aviador, como é sabido, flertava com o nazismo, e chegou a se candidatar. Roth trabalha com a hipótese de um candidato antissemita ser, de fato, presidente de um país refúgio de muitos judeus em plena 2ª Grande Guerra. Voltando ao tempo presente, o ídolo de Jair Bolsonaro era um torturador e seu símbolo de campanha, uma arma. Acontece que no Brasil não precisamos supor nada, nossa realidade flerta com o absurdo, e Bolsonaro era, com efeito, o favorito nas pesquisas.
Em 1989, Collor foi eleito. Em 1990, implementou o Plano Collor. O Plano Collor foi um conjunto de medidas para estancar a inflação, que atingia índices altíssimos. Entre as medidas, a poupança de milhares de brasileiros seria confiscada, eles só poderiam sacar uma quantia ínfima. O plano levou muitas famílias à falência, ao suicídio, à insanidade. Pouco se falava dessa época. Pensei, então, em escrever sobre esse episódio trágico da nossa história. Assim originou o embrião do meu livro A face mais doce do azar. Suas primeiras páginas foram escritas em um blog, que já não existe mais. Bolsonaro foi eleito. Houve a pandemia. Muitos brasileiros morreram sem assistência e sem vacina, inclusive minha tia. Meu romance caminhava devagar, era escrito, apagado, reescrito. Havia nele muito de passado e de presente, de dor e de revolta.

Em 2022, com quarenta páginas, meu romance foi contemplado pelo ProAC/SP e recebeu mentoria da escritora Jarid Arraes, que me apresentou à Tainã Bispo, da Editora Claraboia, responsável pela publicação. Terminei o romance no dia 1º de janeiro de 2023, dia da posse do Lula. Digo que o livro é um grito de todos os brasileiros prejudicados com o confisco. A começar pela minha editora, cuja família passou por uma experiência bem parecida com a narrada no romance.
Penso que escrever é um ato político, de resistência. Ainda que não seja abordada a política propriamente dita, assinar um texto, levar o leitor à reflexão, ou mesmo a outros mundos, de modo que retorne ao seu com um outro olhar, é revolucionário. Por um livro, recontei a nossa história. Por outros livros, podemos mudar a história.
Vera Saad (@verah_saad) é paulista, formada em jornalismo pelo FIAM-FAAM Centro Universitário, mestre em Literatura e Crítica Literária e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). A trajetória literária da escritora começa ainda nos anos de 1990, quando vence o concurso de contos Sesc On-line, em 1997, avaliado pelo consagrado autor Ignácio de Loyola Brandão. A escritora foi finalista do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana com o romance “Estamos todos bem”. Mais recentemente publicou o livro de contos “Mind the gap” (Patuá, 2011), e os romances “Telefone sem fio” (Patuá, 2014) e “Dança sueca” (Patuá, 2019), que ganhou menção honrosa no Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE/RJ). “A face mais doce do azar” (Editora Claraboia, 136 pág.) é o seu romance mais recente. A autora também mantém uma coluna na Revista Vício Velho.