Christina Sharpe: “não queremos ceder o presente aos fascistas”
A autora vem para a Flip com “No Vestígio”, um dos principais livros no debate sobre racismo da última década
A escravização de pessoas negras foi abolida, em teoria, no Brasil, há 135 anos. Esse desastre, porém, não ficou no passado. É possível encontrar vestígios desse processo violento ainda hoje no racismo que perdura no país. Esses restos violentos de tempos não tão passados assim são analisados por Christina Sharpe, professora, pensadora e crítica literária estadunidense que é uma das principais convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, de 2023.
“No Vestígio”, o primeiro livro de Sharpe publicado no Brasil, pela Editora Ubu, é uma investigação de como o passado do povo negro teima em tentar definir seu presente, não sem muita resistência e luta contra o violento determinismo do racismo, que a autora define como “o motor que move o navio dos projetos nacionais e imperiais do Estado”.
Apesar de ser escrito com um foco na América do Norte, o livro de Sharpe é pertinente para a experiência brasileira do racismo, onde “a escravização transatlântica foi e é o desastre”. Esse “passado que não passou” é uma presença constante nas estruturas sociais e até na linguagem, que Christina Sharpe destrói e reconstrói durante No Vestígio. O trabalho primoroso com a linguagem, traduzido por Jess Oliveira, serve para mostrar, nos múltiplos significados das palavras, como a língua é usada para perpetuar o racismo e como ela também pode ser um ponto-final na violência.
Além de No Vestígio, a autora irá para a Flip acompanhada de “Algumas notas do dia a dia”, um volume preparado especialmente para a Festa Literária Internacional de Paraty pela Editora Fósforo. O pequeno volume publicado agora é um gostinho do que virá em 2024 com a publicação de “Ordinary Notes”, a próxima obra de Christina Sharpe que será publicada no Brasil. Na programação da Flip, ela participará da Mesa 18 – Vocês servirão de lenha para a fogueira transformadora, no sábado, 25, às 19 horas, acompanhada da ensaísta Leda Maria Martins.
Confira a entrevista que o Le Monde Diplomatique Brasil realizou com Christina Sharpe, conversando sobre a tradução de No Vestígio, as intersecções entre vida e teoria e as possibilidades de um futuro melhor já agora.
Eu estou aqui com a edição brasileira de “In The Wake” [No Vestígio], e ‘wake’ é uma palavra com diversos significados no inglês que não se traduzem completamente para o português. Você pode explicar por que escolheu essa expressão como um pilar do livro?
Quando eu falei com a Jess [Oliveira, tradutora de No Vestígio], ela estava me contando sobre o trabalho de traduzir e porque ela escolheu o título “No Vestígio”, com o qual eu concordei muito. Eu gostei bastante do título e realmente confio na Jess como tradutora.
Eu escolhi quatro palavras – wake [vestígio], ship [navio], hold [porão de um navio], e weather [tempo], como locais da existência negra. Não como os únicos, mas sim como uma série de palavras e termos que me ajudam a entender como as pessoas negras foram posicionadas e localizadas ao redor do mundo, [entender] o que nós sabemos, resistimos, refazemos e recusamos.
Eu tenho muito interesse em palavras, em tentar trabalhar com elas mantendo múltiplas linhas de significados. Eu escolhi wake porque eu estava escrevendo sobre o que Saidiya Hartman chama de “pós-vida da escravização transatlântica”, como isso se manifesta no nosso presente, e eu comecei a pensar em algumas imagens particulares, como o caminho de um navio.
Então, eu comecei a pensar em todas as diferentes ideias que wake poderia significar: consciência, um vestígio de navegação, a linha do recuo de uma arma, as maneiras como sentamos com os mortos [wake também pode ser traduzido como velório] e as cerimônias e banquetes que acompanham isso. Eu realmente pensei que eu poderia seguir todas essas linhas de significado como uma maneira de entender isso como algo que pode adicionar às questões que fazemos sobre o pós-vida da escravização. Porque o vestígio é tanto a consciência como essa coisa muito material. É metafórico e material ao mesmo tempo.
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Já que estamos falando sobre linguagem, quero te fazer outra pergunta sobre o tema. No livro, você mostra como a linguagem é comumente usada como uma ferramenta para o racismo. Como podemos usar a linguagem para lutar contra o racismo?
As lutas sobre a linguagem e os significados são reais e importantes. Palavras e maneiras de entender as coisas pelas quais nós, progressistas, ou esquerdistas, ou pessoas negras na esquerda, lutamos, tem sido mal interpretadas e redefinidas para serem usadas contra nós.
A linguagem é uma das maneiras que nós temos para dar nome e sentido ao mundo em que vivemos. E eu penso na poeta Natalie Diaz, que esteve em uma das Alchemy Lectures [palestras que Sharpe organiza na Universidade York, em Toronto]. No ano passado, uma das perguntas que ela fez foi: qual é a linguagem de que precisamos para viver agora? Sobre o que deveríamos falar quando tantas palavras existem para nos destruir?
Nós continuamos trabalhando com palavras, continuamos buscando um tipo de clareza para tentar manifestar aquilo que sabemos e uma maneira diferente de viver no mundo. A linguagem é essencial para isso. Porém, você não pode separar o significado do resto do uso da palavra. As pessoas vão muitas vezes pegar o que você definiu e tentar usar isso contra você. Então você continua se movendo e lutando pelo significado das palavras, porque isso é importante.
Um exemplo é a palavra ‘cuidado’. Eu não estou muito disposta a abandonar essa palavra, mesmo que eu saiba que a maneira como tantos Estados mobilizam essa palavra em relação às pessoas negras e indígenas, é uma forma de violência. Mesmo assim, eu acho que ‘cuidado’ é uma palavra que representa conceitos e práticas pelos quais vale a pena lutar. Então nós continuamos tentando redefinir o que cuidado realmente quer dizer, como uma prática sustentadora, em oposição a uma prática violadora.
Você abre o livro com uma história muito pessoal. Como você acha que sua experiência pessoal pode ajudar os leitores a entender a experiência da comunidade negra dos Estados Unidos como um todo?
Eu diria três coisas aqui. As primeiras 15 páginas do livro começam misturando o pessoal com coisas que não são explicitamente pessoais. Eu diria que o livro não quer falar por toda a experiência negra norte-americana, e eu também não quero pensar a negridade [a tradução da entrevista seguiu a escolha de Jess Oliveira em No Vestígio de traduzir o termo ‘Blackness’ como negridade] só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. E isso incluiu a África continental, o Brasil, a Europa e o Caribe.
Eu começo com esse tom autoteórico porque eu estava escrevendo e pensando em meio a certos tipos de desastres. Eu estava entre múltiplas perdas, escrevendo após o assassinato de Mike Brown e de Trayvon Martin, inúmeros assassinatos nos Estados Unidos, e em meio à resistência a eles.
E, então, eu pensei que as perdas pessoais com as quais eu estava lidando, como as perdas do meu irmão, da minha irmã e do meu sobrinho, poderiam ser conectadas a essas outras perdas, não só de forma implícita, mas explicitamente na página. Eu acho que todos somos orientados aos nossos trabalhos pelos nossos próprios corpos e experiências. Enquanto algumas pessoas podem mascarar isso e chamar de objetividade, eu precisava posicionar a mim mesma como parte da trajetória das pessoas negras, ligando o pessoal ao estrutural.
Ouça o podcast Guilhotina com Fabiana Moraes sobre objetividade e subjetividade.
Isso é algo que me chama muito a atenção no seu livro, porque ele é difícil de categorizar, como um misto de teoria e memória. De onde isso veio? Por que você decidiu escrever o livro assim?
O começo de No Vestígio lida com memória de uma forma pessoal e particular. O resto do livro lida com o que Toni Morrison chama de re-memória, o vestígio e o pós-vida da escravização. As maneiras como a violência ocorre em certos locais acabam persistindo nesses locais, porque você pode dizer que a terra lembra, e as leis sobre terra também são produzidas em relação à violência e, portanto, sustentam e perpetuam ela.
Há uma longa tradição de pessoas escrevendo de maneiras que passam do pessoal para o político, que usam o “pessoal” como uma janela para mostrar as condições estruturais que moldam e delimitam a vida negra, condições essas que as pessoas negras ao redor do mundo continuamente rejeitam.
Eu queria examinar a proximidade da vida negra com a morte por meio de uma perspectiva pessoal, mas também estrutural, histórica, presente e orientada para o futuro, pensando no que podemos fazer sobre o excesso de violência que continuamente encontramos.
Quando você fala de algo orientado para o futuro, eu me lembro de uma frase de Walter Benjamin que voltou a mim enquanto eu lia seu livro. Ele diz, nas teses sobre o conceito de história: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”. No seu livro, você usa uma citação muito parecida, da poetisa canadense M. NourbeSe Philip: “defenda quem morreu”. Qual a importância de examinar a memória das pessoas negras, por mais doloroso que isso seja, para que possamos imaginar novos futuros?
Obrigado pela pergunta. Eu talvez adicionaria uma ou duas palavras à sua pergunta. Uma delas está na questão em si, “história”, mas, mais claramente, histórias. Qual a importância das histórias de pessoas negras no mundo, das pessoas que se tornaram negras por meio de certos processos? Porque, é claro, a negridade é produzida no vestígio daqueles navios negreiros. Essa é uma produção dos séculos XV e XVI. Antes, essas pessoas estavam vivendo com seus grupos linguísticos e étnicos. Elas não eram negras. A negridade é um processo.
Outra palavra que eu adicionaria seria “presença”, como algo que está no contemporâneo, no agora. Eu me interesso em pensar como nós imaginamos e produzimos uma nova e habitável presença? Nós não queremos ceder o presente aos fascistas. Estamos tentando criar e habitar “agoras” que sejam bons para a vida.
A importância de examinar isso é ver que, durante a história, em todos os espaços pelos quais vivemos, nós lutamos para conquistar e construir espaços nos quais possamos viver. Muitas vezes, esses ambientes são violentamente encerrados. Mas você pode enxergar exemplo atrás de exemplo atrás de exemplo. Temos quilombos, temos cidades negras nos Estados Unidos e espaços maroons nos EUA e no Caribe.
Esses exemplos nos mostram que é possível, não importa quão difícil seja conquistar espaços para viver no meio de tremenda violência. Essa é, para mim, uma das principais razões pelas quais olhamos para a história. As pessoas imaginaram essas maneiras de viver em comunidade, e nós precisamos aprender com elas.
Na última parte do livro, você fala da importância de realizar anotações e revisões negras. No mundo digital, onde as imagens viajam para todos os cantos, sem supervisão, qual a importância da anotação e revisão negra?
Essa é uma ótima pergunta. Porque as imagens realmente viajam dessas maneiras, não? E as revisões e anotações podem ser separadas delas. Para mim, a anotação e a revisão negra foram maneiras de atender e analisar certos tipos de imagens com cuidado.
As imagens, mesmo aquelas que alguém talvez imagine que estão dizendo algo, como ‘aqui está uma pessoa negra que sobreviveu a uma coisa horrível’ ou ‘aqui está uma jovem negra vivendo sua vida cotidiana’. Não importa o que o fotógrafo pode ter pensado sobre como essas imagens entrariam no mundo, porque elas normalmente aterrissam em uma terra onde as pessoas negras estão em um espaço de abandono total. Então, para mim anotação negra e revisão negra são duas maneiras de trazer uma outra lente para observar a imagem.
Nicholas Mirzoeff fala sobre o direito de olhar, e como olhar é diferente daquilo que pensamos como visualidade. Porque a visualidade vem de e está ligada a práticas que emergem das economias de plantation. É um tipo de um olhar de vigilância, enquanto o direito de olhar assume uma mutualidade, um tipo de retorno.
No livro, eu escrevo sobre os pais de Mike Brown, que contrataram uma pessoa para fazer uma segunda autópsia, porque eles queriam que o mundo pudesse ver o quanto ele estava realmente ferido quando foi assassinado. Eles acharam que essa série de novas anotações poderia fazer o fato de seu ferimento ser incontestável. Não foi o que aconteceu.
Então, por que continuamos tentando anotar? Quais são as maneiras que podemos fazer isso indo contra a lógica totalizante da antinegridade, maneiras que possam fazer as vidas e os ferimentos visíveis? As anotações e revisões negras são formas experimentais de tentar fazer isso.
Em “Algumas notas do dia a dia”, você conta algumas lindas anedotas sobre sua mãe e fala de como ela usava a beleza como um método. Por que você diz que devemos prestar atenção a um tipo de estética que escapou da violência?
Uma das coisas que percebi quando me tornei uma pessoa muito mais velha foi que [o que minha mãe fazia] não era um “só”. Eu não tentei diminuir isso. Eu não pensei “ah, a minha mãe só gosta de coisas bonitas por gostar” ou “minha mãe se apega a isso no meio das outras coisas que não são tão boas em nossas vidas”.
Quando eu estava escrevendo essa seção, eu entendi completamente que o que minha mãe fazia era uma teoria e um método. Isso era uma práxis para como você tenta manter alguma parte do seu espírito como inteira, inquebrantável. Eu tenho um tremendo respeito pela minha mãe, um maravilhamento vendo o que ela foi capaz de fazer.
Se nós prestamos atenção, enxergamos coisas que escapam ao capital, que escapam de certo tipo de violência, que escapam do desejo de só possuir. Eu acho que essa é a erupção de algo como a liberdade.
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Eduardo Lima é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.