Desconstruir o “mito Pagu” para conhecer Patrícia Galvão
Homenageada na Flip deste ano, a autora ganha duas novas antologias: enquanto “Até onde chega a sonda” reúne seus escritos prisionais, “Palavras em rebeldia: uma antologia do jornalismo de Patrícia Galvão” organiza seus textos jornalísticos
Ariel, Mara Lobo, Pagu. Patrícia Galvão foi muitas em uma só, de jornalista, cronista e cartunista a tradutora, dramaturga e até poeta. A homenagem da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty, que começa nesta quarta (22) e vai até domingo (26), abre as portas para que o público brasileiro desconstrua o “mito Pagu” para conhecer as inúmeras faces de Patrícia Galvão.
“Superar o apego ao senso comum,” é o que propõem Silvana Jeha e Eloah Pina no prefácio do lançamento da editora Fósforo, “Até onde chega a sonda”. Como superar a imagem fabricada por anos de história contada por homens que a denominaram “musa” do modernismo? Para Jeha, basta ler a obra extensa que Patrícia Galvão deixa, fruto de uma carreira que começa aos seus 18 anos.
Patrícia tinha acabado de sair da Escola Normal da capital paulista quando se envolveu com os modernistas Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade – com quem se casaria em 1930, relacionamento que ainda hoje serve como base para leituras misóginas e equivocadas de seu trabalho e imagem. É também nessa época que ganha o apelido Pagu do poeta modernista Raul Bopp, que inventou a alcunha imaginando que seu nome fosse “Patrícia Goulart”. Estreia como escritora em 1929, aos 19 anos de idade, nas páginas da Revista da Antropofagia. A partir daquele momento, não pararia de escrever – entre estadias na cadeia e longas viagens, de Buenos Aires a Paris.
Entre relacionamentos amorosos e o pedestal de “musa”, a imagem de Patrícia passou a elidir seu papel enquanto artista-escritora e militante. A Flip, no entanto, fez de 2023 um ano de alegrias para os leitores que aguardavam ansiosamente que seus escritos saíssem dos arquivos da Biblioteca Mário de Andrade em direção às livrarias. Jeha conta que o projeto do livro que publica neste novembro estava programado para 2024, mas foi resgatado para o evento. O mesmo é o caso do livro que sai pela Edusp, “Palavras em rebeldia: uma antologia do jornalismo de Patrícia Galvão”, organizado por Kenneth David Jackson, professor de Literatura Luso-Brasileira na Yale University e convidado da primeira mesa da Flip. O professor conta que trabalha na antologia jornalística desde a década de 1990, sem previsão de publicação. Foi também graças à homenagem que a editora decidiu publicar o livro. Há ainda mais uma publicação, que acaba de ser lançada pela Nocelli Editora: “Os cadernos de Pagu”, organizada por Lúcia Teixeira, criadora do Centro Pagu Unisanta, em Santos.
Militância e experimentalismo: Parque Industrial
Já nos seus primeiros anos de atuação como jornalista e escritora, Pagu decide pelo caminho da militância: como conta Geraldo Ferraz – seu companheiro a partir de 1941 – em emocionado artigo intitulado “Patrícia Galvão, militante do ideal” publicado no jornal A Tribuna dias após a morte da autora, aos 20 anos Pagu vai a Buenos Aires conhecer Luiz Carlos Prestes. Ao retornar ao Brasil, ingressa no Partido Comunista. Então, em 1931, é presa pela primeira vez em Santos, durante um comício do partido na Praça da República.
Fora da prisão e em São Paulo outra vez, Pagu escreve seu romance mais conhecido hoje, “Parque Industrial”, com o subtítulo “romance proletário”. Fruto de um trabalho quase jornalístico de vivência entre os trabalhadores das fábricas do Brás, o livro é publicado sob o pseudônimo Mara Lobo, dadas limitações do partido em relação ao envolvimento com as artes. Como Ferraz descreve no artigo de 1962, “Parque Industrial” foi recebido “como um doloroso documento humano, que se servia de toda a brutalidade da linguagem para enunciar as desgraças da classe submetida.”
Além de ilustrar – o livro realmente é construído como um filme, a partir de imagens e cenas que são recortadas e costuradas pelas palavras da autora – a vida dos trabalhadores, Pagu também se preocupa em denunciar as hipocrisias de sua classe social, sobretudo no que diz respeito às normalistas, que se formaram com ela. O padrão se repete nas crônicas para o jornal O Homem do Povo, que fundou com Oswald de Andrade e para o qual contribuia com a coluna “A Mulher do Povo”. Ao mesmo tempo em que coloca em cena temas que continuam sendo silenciados na sociedade brasileira, como o aborto e o direito da mulher ao erotismo, Patrícia também se dedicava à denuncia do que ela via como “falsas feministas”, como descreve o professor Jackson: “ela se dedica mais à denúncia do que à promoção de uma teoria feminista. Ela denuncia as hipocrisias sociais de forma muito pura… ela não fazia meio.”
Reside aí mais uma imagem que ofusca a natureza complexa de Patrícia Galvão: como definiu a historiadora Ludimila Moreira em artigo para a Folha de S.Paulo, “fome por transformar Patrícia Galvão em ícone feminino ignora sua obra complexa e provoca reedições simplificadoras.” Em quatro décadas de escrita incessante, não vemos uma defesa do feminismo como o conhecemos hoje, mas sim o questionamento constante do papel da mulher e de seus direitos tanto pública como intimamente.
Silvana Jeha destaca a luta de Patrícia pela igualdade de gêneros no que diz respeito aos direitos sexuais: “é a luta por esse desejo, que é um desejo de todas nós mulheres até hoje. Não é o amor livre, mais do que o amor livre, é o direito ao erotismo, direito ao prazer, direitos sexuais, como os homens têm.”
Entre prisões, a mulher subterrânea: Até onde chega a sonda
Aquela prisão em 1931 foi apenas a primeira de muitas que atormentaram a vida de Pagu durante o governo de Getúlio Vargas. Em novembro de 1937, é decretado o Estado Novo, período de ditadura declarada que durou até 1945. Alguns meses depois, em abril de 1938, Pagu é presa no Rio de Janeiro e condenada, juntamente com membros do Partido Operário Leninista, a dois anos de prisão, momento em que sofre torturas físicas. É durante esse encarceramento, em 1939, que a autora escreve o texto “Até onde chega a sonda”, que marca uma grande mudança na obra de Patrícia.
Esse é o último texto conhecido que a autora assina como “Pagu”. Como lembra seu filho, Geraldo Galvão Ferraz, no prefácio do livro “Palavras em rebeldia”, a autora passou a odiar que a chamassem pelo pseudônimo quando se desiludiu com o Partido Comunista, após sua expulsão, “pois esse era o rótulo de uma página virada.” A escolha da organizadora dos escritos prisionais é a de colocar o nome e o pseudônimo na capa, justamente por isso, ela exemplifica: “como com Fernando Pessoa, não chamamos ele de Alberto Caeiro, ou qualquer um de seus outros nomes. Falar Patrícia Galvão é trazer ela inteira.”
Sob vigilância constante, Patrícia não poderia escrever os textos militantes aos quais estava acostumada. A limitação significou uma transposição temática, como define Jeha: “Esse texto anuncia muita coisa que ela vai fazer depois. As celas dos presos políticos eram muito revistadas, então ela acha no diálogo com Dostoiévski, com o texto ‘Memórias do Subsolo’, uma forma de escapar da vigilância. Essa escrita intimista, muito próxima do que a Clarice Lispector vai fazer, aparece em diálogo com a cidade de São Paulo e com o mundo todo. Com uma subjetividade muito grande, ela desbrava esse veio interior, subterrâneo.”
O diálogo com a obra de Dostoiévski lembra outra face muito importante da autora: a de crítica cultural. Ao produzir um “diálogo com o homem subterrâneo” – em que fala sobre o amor enquanto luz que ilumina o abismo em que a prisioneira se coloca –, ela evoca uma parcela desse conhecimento cultural internacional que poucos além de Patrícia tinham no Brasil naquele momento. David Jackson lembra: “Pagu se mostra como a grande intelectual do século, essa é uma perspectiva que não ficou tão clara para o público até hoje. O seu jornalismo mostra esses vários lados dela, como promotora das artes. Ela falou sobre artistas da vanguarda europeia como Ionesco, traduziu Octavio Paz, pode ter sido a primeira tradutora de Kafka no Brasil – isso ainda deve ser confirmado –, comentou Clarice Lispector e Hilda Hilst. Ela é surpreendentemente moderna.”
Para fazer conhecer Patrícia Galvão no Brasil e no mundo
Silvana Jeha define, enfim, que Patrícia Galvão “precisa virar essa artista e escritora que não tem esse status ainda.” Tornar-se conhecida no Brasil e no mundo não é tarefa fácil para os entusiastas da obra de uma autora que morreu há mais de 60 anos, mas é um trabalho que está sendo feito, basta que seja lido pelo público de forma ampla. Tradutor para o inglês de “Parque Industrial” – único livro da autora publicado na língua –, Jackson lembra da dificuldade de traduzir Pagu, mas também reconhece a sua importância e conta que sua visita ao Brasil trouxe mais uma oportunidade de tradução, desta vez da “Autobiografia Precoce” de Pagu.
A Flip dedica duas mesas de sua programação à autora, ambas transmitidas pelo Youtube da Festa Literária. “A mulher do povo”, com David Jackson e Adriana Armony ocorre nesta quarta (22), às 19h00. “Teatro, um precipício”, com Flora Süssekind e Marion Aubert, ocorre na quinta (23) às 10h00.
Carolina Azevedo é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.
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