Por alguns bilhões a mais
No momento em que a crise dos subprimes sacudia os EUA, entrava em vigor uma norma europeia para desregulamentar o mercado financeiro em nome da concorrência. Graças a ela, os bancos desenvolvem “plataformas opacas” nas quais as ações trocam de mãos a toda velocidade e sem qualquer tipo de controle
Segunda feira, 20 de setembro de 2010, Bruxelas. Rua de la Loi, edifício Charlemagne, sala Alcide-De-Gasperi, a multidão de sempre. O comissário encarregado do mercado interno e dos serviços abre a reunião com uma “lembrança de cunho pessoal”: “Há alguns meses, quando me preparava para assumir as funções de comissário europeu, promovi longas sessões de trabalho com meus serviços. Nessa ocasião, o diretor-geral me disse: ‘Vai ser preciso revisar a MIF…’. Ousarei dizer a ele que essa afirmação não me pareceu muito clara?”. Desde então, Michel Barnier já aprendeu muito.
Dessa forma, a Comissão Europeia procedeu à revisão da diretiva Mercado de Instrumentos Financeiros (MIF), que desde o final de 2007 desregulamentou a organização dos mercados de bolsas de valores na Europa. O público – quase que exclusivamente financistas, advogados e representantes de “interesses privados” – não gostou nem um pouco da ideia de uma re-regulação. Mas rapidamente Sharon Bowles, a presidente da Comissão de Assuntos Econômicos e Monetários do Parlamento, tranquilizou o auditório. Para essa democrata-liberal inglesa, “não teríamos como contrariar os mercados”. Como é costume, nessas reuniões formalmente abertas a todos, os eurocratas evocaram de modo incessante as virtudes da concorrência, além de apelar para as competências “técnicas” do meio dos negócios para “melhor legislar” – mas podemos imaginar alguém dizendo o contrário?
Um mercado de bolsas
No final dos anos 1990, os bancos e financistas que operavam tendo como sede a capital inglesa travaram uma luta feroz para acelerar o ritmo da desregulamentação financeira que teve início nos anos 1970, no Reino Unido. Os interesses da City vão de encontro ao desejo da Comissão – consolidar o Mercado Único – e a sua mania de desmontar tudo que se assemelhe a uma “barreira de regulamentação”. A fortiori, quando ela acolhe um monopólio, no caso, o de transações na Bolsa.
Em outros países da União Europeia, em especial na França, é em nome da concorrência internacional, para satisfazer os organismos financeiros e manter seus ricos profissionais, que se desfaz a legislação, ou os acordos que a travavam.1 Por fim, a euforia que atiça o conjunto de títulos de baixo preço e com liquidez oferecidos pelos bancos centrais para absorver as crises financeiras (crise asiática, estouro da bolha internet…) favorece os promotores de uma regulamentação fraca (“light touch regulation”, como se diz no jargão de finanças).
Em uma lógica tipicamente neoliberal de construção do quadro da concorrência, a norma MIF institui na Europa uma espécie de “mercado para os mercados”. Para isso, abole – nos países onde ela existia, como na França – a regra de concentração de ordens, segundo a qual as transações eram efetuadas na Bolsa. Adotada em 2004, a norma MIF entrou em vigor em 1º de novembro de 2007. Ironia da história, esse texto emblemático da desregulamentação foi investido de força de lei no exato momento em que estourava a crise financeira internacional.
Até então, as bolsas eram instrumentos de regulação instituídos por negociantes e governos com a preocupação de controlar o curso das transações. Assim, a Bolsa de Paris, por exemplo, nasceu oficialmente em 1724, após a falência do sistema de Law, para conter as operações anteriormente feitas no tumulto da Rua Quincampoix. Ou seja, as bolsas organizavam a igualdade formal dos compradores e vendedores, a concorrência regulamentada entre eles e o caráter público das informações relativas às operações, sob controle de uma autoridade e em um espaço dados. No lugar desse modelo clássico, a norma MIF instaurou a concorrência entre as bolsas (transformadas, na virada do século XXI, em empresas privadas muitas vezes cotadas… na Bolsa) e outros dispositivos privados de operações, em que as transações são feitas de modo não transparente, para alegria dos maiores financistas.
Negociações mais “discretas”
Na primeira fila dessas novidades, as – adequadamente – chamadas dark pools (“plataformas opacas”). Desenvolvidas pelas principais instituições financeiras nos interstícios da regulamentação europeia, elas permitem realizar transações sem revelar as condições (quantidade e preço). As crossing networks (“redes cruzadas”) servem para que os bancos possam relacionar diretamente as ordens (de compra e venda) de seus clientes. Há também as inúmeras plataformas previstas pela diretiva MIF para estabelecer a concorrência entre as bolsas. Na Europa, existe atualmente mais de uma centena de sistemas multilaterais de negociação (multilateral trade facilities, MTF). Permitindo transações em condições de controle bem menos rigorosas, portanto a um custo inferior, esses sistemas prejudicaram significativamente a atividade das bolsas regulares. Sem dúvida, os profissionais desejosos de negociar discretamente grandes blocos de títulos sempre operaram à margem das bolsas tradicionais. Mas com a norma MIF a exceção foi transformada em regra: hoje em dia, menos da metade das transações é feita na Bolsa.2
Dessa forma, os bancos encontraram meio de se livrar dos mercados organizados. Na Europa, a segunda plataforma de venda de ações chama-se Chi-X. Seu capital reúne os pesos-pesados das finanças: Instinet, que pertence à Nomura Holdings, do Japão, e que comprou as atividades europeias do Lehman Brothers; mas também Goldman Sachs, UBS, Crédit Suisse, BNP Paribas, Société Générale; e dois fundos especializados em especulação rápida, o norte-americano Citadel e o holandês Optiver. Frente a essa concorrência, as bolsas tradicionais mimam seus principais clientes – os bancos e os fundos, que atualmente também são seus principais concorrentes –, reduzindo as comissões cobradas em cada negociação. Isso os obriga a transferir aos pequenos operadores e às empresas cotadas uma parte crescente de suas despesas, em especial as que incidem sobre as obrigações estatutárias das bolsas no que diz respeito ao controle de transações.
Para reconquistar sua posição privilegiada, as Bolsas aumentaram de tamanho: a de Londres tentou comprar sua homóloga canadense; a Deutsche Börse se aliou à NYSE Euronext, ela mesma resultante da fusão das bolsas de Nova York e um aglomerado que reúne Paris, Amsterdã, Bruxelas e Lisboa, assim como o mercado de derivativos de Londres. A London Stock Exchange adquiriu um MTF, e a NYSE Euronext desenvolveu sua própria “plataforma opaca”. Ou seja, esse é o primeiro efeito pernicioso da concorrência instituída pela norma MIF: ela desrespeita os limites entre o chamado mercado de balcão3 e as bolsas regulamentadas. Aliás, quando foi ouvido pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre os mecanismos de especulação, Dominique Cerruti, diretor-geral adjunto da NYSE Euronext, admitiu: “Nosso objetivo é sobreviver. […] Por isso, nos adaptamos. Se a regulação autoriza as dark pools e os MTFs, e se os espertos querem utilizar os sistemas para transformar nossa vida num inferno, então jogaremos o mesmo jogo deles”.4
Além disso, a dispersão das transações induzida pela concorrência entre as centenas de dispositivos de execução de ordens deteriorou de modo considerável as informações disponíveis para as empresas cotadas em bolsa, mas também para as autoridades de regulação.5 Martin Bouygues, presidente da empresa de mesmo nome, declarou à Autoridade dos Mercados Financeiros (AMF): “Eu não sei o que está acontecendo com os meus títulos. […] Todos os dias são feitas operações com eles, sobre as quais não se consegue informações transparentes”.6 Mais grave ainda, o presidente da AMF admitiu, diante dos aturdidos deputados: “Há um ano nos demos conta que já não conseguimos sequer cumprir nosso papel fundamental de controle e vigilância dos mercados financeiros”.
Pesca com isca viva
Na verdade, só os grandes operadores transacionais podem investir nos custosos equipamentos informativos e pagar os (caríssimos) profissionais capazes de lidar com uma informação dispersa, condição prévia de uma especulação ultrarrápida, sobre uma miríade de sistemas de compra e venda.7 Como confessou com franqueza um banqueiro, “os mercados de ações não financiam mais a economia. Eles existem para possibilitar que os profissionais façam a arbitragem dos amadores”.8 À pergunta do presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, Henri Emmanuelli: “Será que os grandes operadores, acostumados a ‘lances’ no limite da legalidade, perceberam todas as potencialidades decorrentes da fragmentação [de transações, induzida pela diretiva MIF]?”, o diretor de operações da Bolsa de Paris respondeu, laconicamente: “Sem dúvida. Alguns casos concretos permitem chegar a essa conclusão”.9
Uma das manipulações mais simples lembra a pesca de anzol com isca viva. Ao passar uma grande quantidade de ordens de compra, você “ativa” o índice de mercado de um título do qual quer se desfazer. Isso atrai os compradores, e então, em frações de microssegundo, você anula as ordens de compra e vende seus títulos aos “trouxas”, a um preço artificialmente inflado. Além das possibilidades multiplicadas de manipulação dos preços, as transações de alta frequência aumentam o risco de crise sistêmica.
Em 6 de maio de 2010, nos Estados Unidos, o índice Dow Jones caiu mais de 9% num único dia, e as ações da Procter & Gamble e da consultoria Accenture, em especial, desabaram em poucos minutos. Depois de cinco meses de investigação, os dois reguladores norte-americanos da bolsa conseguiram refazer o encadeamento dos acontecimentos. O algoritmo de um operador do Kansas gerou automaticamente 75 mil contratos futuros sobre as variações de um índice da Bolsa. Em seguida, sua execução automática, sem limite de preços, semeou o pânico entre os outros supercomputadores dos bancos e fundos de investimento: em quatorze segundos, os contratos mudaram de mãos 27 mil vezes, precipitando a queda brutal dos índices.
Se esse incidente ilustra, uma vez mais, o fracasso dos mercados pela generalização da concorrência entre operadores financeiros paramentados com a parafernália informática, nem por isso ele provocou o questionamento do princípio contemporâneo de organização das atividades das bolsas – o imperativo de liquidez. Segundo esse princípio, os detentores de capitais, ou mais precisamente, os que lidam com eles de modo profissional, devem poder investir e desinvestir instantaneamente, ao sabor de seus interesses crematísticos (a acumulação pela acumulação). Ao fazer isso, impõe-se o imediatismo do mercado como horizonte temporal aos ciclos da empresa, ao tempo da ação pública e à existência individual.
Em vista da revisão da norma MIF, a então ministra francesa das Finanças, Christine Lagarde, encarregou Pierre Fleuriot, presidente do Crédit Suisse na França e ex-diretor geral da Comissão de Operações de Bolsa (COB), de definir a posição comum do mercado financeiro de Paris. Seu relatório, publicado em fevereiro de 2010, retoma a lógica da desregulamentação comunitária europeia. Em Bruxelas, a situação não é melhor. O relatório pré-legislativo de Kay Swinburne enumera as consequências nefastas da norma MIF, sem todavia quebrar a convicção de sua autora nas vantagens da concorrência.10 É preciso lembrar que a eurodeputada britânica conservadora tinha, em sua vida pregressa, abraçado a carreira financeira cuja interrupção se deveu única e exclusivamente à misoginia explícita de seu superior hierárquico?
Fortalecimento do poder público
Frente à hegemonia dos financistas sobre a produção do direito e do saber em matéria de bolsa de valores, a ideia de “fechar a bolsa”11 só faz sentido se as saídas de emergência do capital para as zonas escuras e desregulamentadas das operações tiverem sido previamente dinamitadas. Na verdade, é preciso ter em mente a função original da instituição bolsa de valores: mais que o tempo do capitalismo privado, a bolsa constituiu por muito tempo um prolongamento híbrido da autoridade pública, com o objetivo de ordenar e conter o comércio de títulos.
Assim, uma revisão útil da norma MIF teria a missão de recolocar as bolsas no centro da arquitetura financeira europeia. Ela proibiria as dark pools e as crossing networks, sob pena, para os acionistas, de perda de benesses (enquanto bancos ou prestadores de serviços financeiros). Os MTFs seriam forçados a respeitar as mesmas obrigações regulamentares que as bolsas (sobretudo em matéria de transparência e controle de transações), ou então desaparecer. Antes de poder cotar uma ação, seria preciso obter autorização prévia da empresa emissora, que poderia vetar a dispersão das transações com esses títulos.
Quanto às transações ultrarrápidas e automáticas, elas servem essencialmente para beneficiar das diferenças de preço artificialmente multiplicadas pela dispersão de transações que a norma MIF induziu. Da mesma forma que existem limitações de velocidade, apesar de a maioria dos automóveis poderem rodar mais depressa que o limite imposto, seria preciso conter as máquinas, ou até mesmo proibir o trading de alta frequência. As vantagens que essa ferramenta propicia diminuiriam consideravelmente em um sistema no qual seria restaurada a rigorosa separação entre bolsas regulamentadas e as chamadas operações de mercado de balcão – e no qual estas últimas seriam objeto de proibições e obrigações estritas.
Essas reformas – ínfimas – devolveriam ao poder público os meios não só de controlar e sancionar, mas também de limitar a atividade dos profissionais do meio financeiro. Ao fazer isso, reafirmar-se-ia a dimensão política do funcionamento do mercado financeiro, assim como o espaço que seus agentes deveriam ocupar: o de meros auxiliares de operações de compra e venda.