Por onde andam os Pontos de Cultura?
A Cultura Viva morreu? De maneira alguma. Ela segue viva como sempre seguiu e, inclusive, em um novo e mais poderoso patamar. Vários Pontos de Cultura se empoderaram nesse processo, se equiparam, avançaram na consciência política, saindo do estágio do “em si” para o “para si”
Cultura Viva e Pontos de Cultura, essa política é hoje referência no mundo e até o papa Francisco a abraçou, com os Pontos de Encontro e Agentes Jovens de Cultura Cidadã. De forma inusitada, em termos de políticas públicas, há que destacar que, mesmo sofrendo um forte desestímulo e até perseguição e criminalização por parte do Estado brasileiro (e isso de antes do golpe de Estado), os Pontos de Cultura seguem por aí, mesmo sem receber nenhum tipo de apoio ou recurso oficial há vários anos. Isso porque foi uma política de aderência àquilo que o povo já faz como base de suas tradições e vínculos comunitários.
Para compreender essa política pública, porém, há que destacar dois momentos distintos. Entre 2004 e início de 2010: formulação, implantação e consolidação do programa. Este foi lançado em julho de 2004, partindo do zero e alcançando 72 Pontos de Cultura seis meses depois; o orçamento, que em 2004 era de pouco mais de R$ 3 milhões, saltou para R$ 67 milhões em 2005, via emenda parlamentar coletiva (R$ 55 milhões mais R$ 12 milhões no orçamento previsto). Com surpresa do êxito inicial foi possível lançar um segundo edital para seleção de Pontos de Cultura a desesconder o Brasil, como nunca antes havia sido feito: 2,5 mil projetos se apresentaram, chegando a 470 Pontos de Cultura ao final de 2006. Em 2007, via programa Mais Cultura, um novo salto, com a descentralização dos editais por meio de acordos com estados e municípios de grande porte. Mais 2,5 mil pontos conveniados, até alcançar, ao final de 2009, a marca de 3,5 mil Pontos de Cultura no país, espalhados por 1,1 mil municípios e beneficiando entre 8 milhões e 9 milhões de pessoas (Dados Ipea – Cultura Viva – Avaliação do Programa, 2010), sempre sob o conceito da gestão compartilhada entre Estado e sociedade, ou Estado-rede.
Esses números compreendem desde a rede de cineastas indígenas até grupos de jovens em favelas, assentamentos rurais, pequenos municípios, grupos de arte de vanguarda, tudo integrado, pois a cultura se integra e se entrelaça no tempo e no espaço, daí o próprio nome Cultura Viva. O Ponto de Cultura funciona como um agregador local, incentivando o empoderamento comunitário e, em torno dele, uma série de ações: setecentas bolsas para mestres da cultura tradicional, os griôs; 11 mil bolsas para os jovens agentes de Cultura Viva (entre 2005 e 2006); Escola Viva integrando escolas, comunidades e Pontos de Cultura; Interações Estéticas com residências artísticas (foram três editais gerando duzentas criações comuns entre Pontos de Cultura e artistas profissionais); oitenta Pontos de Mídia Livre, para sites independentes, comunicação popular, rádios e TVs comunitárias, a mídia livre; a Cultura Digital, com desenvolvimento de software livre para edição de imagem e som (na época, 2004, praticamente inexistiam no mundo ferramentas livres para edição), estúdios multimídia e 82 oficinas de conhecimentos livres, realizadas em quilombos, pequenos municípios e favelas; trezentos Pontinhos de Cultura (para cultura lúdica e da infância); Cultura e Saúde, fortalecendo projetos de medicina popular e terapias alternativas, a arte da arte; oitenta Prêmios Tuxauas para articuladores em rede; duzentos Pontões de Cultura, atuando como capacitadores, articuladores e difusores em rede; economia viva para projetos de economia solidária em Pontos de Cultura, criando, inclusive, moedas comunitárias, como o Sampaio, no bairro do Campo Limpo, na periferia de São Paulo; Prêmio Asas, para Pontos de Cultura que concluíssem os convênios, no valor de R$ 80 mil para cada ponto.
Segundo dados do Sistema de Controle Orçamentário do Ministério do Planejamento, o maior orçamento anual realizado foi em 2009, no valor de R$ 120 milhões, totalizando um investimento federal de R$ 450 milhões entre 2004 e 2009. Para 2010, havia um orçamento previsto no valor de R$ 210 milhões, mas a partir desse ano começou um desinvestimento no programa, incluindo cancelamento de editais, de modo que o orçamento realizado foi inferior a 40% do previsto. Nos anos seguintes, ainda menos, até chegar a pouco mais de R$ 10 milhões em 2014 e zero de realização orçamentária em 2015 e 2016.
Também houve uma série de encontros, publicações e análises sobre o programa e as Teias, encontros dos Pontos de Cultura, com forte componente simbólico e espaço para reflexão, organização e articulação entre os Pontos de Cultura. Entre 2006 e 2010 foram realizadas quatro Teias Nacionais e dezenas de estaduais, organizadas sempre em espaços de referência para a cultura – a primeira na Bienal de São Paulo, depois no Palácio das Artes em Belo Horizonte, na Esplanada dos Ministérios em Brasília e no Dragão do Mar em Fortaleza, esta com mais de 5 mil participantes, inclusive com delegações internacionais. A cada Teia era escolhido um tema gerador: “Venha se ver e ser visto”, “Tudo de todos”, “Iguais na diferença” e “Tambores digitais”. Foram grandes momentos, incluindo intercâmbio entre Pontos de Cultura e centros culturais do Reino Unido.
Todo esse conjunto de ações proporcionou um amplo reconhecimento internacional, tornando o programa uma política pública em diversos países (Argentina, com 670 Pontos de Cultura, Peru, cidades de Medellín e Bogotá (Colômbia), Costa Rica, El Salvador, entre outros) e efetivando um movimento continental, a Cultura Viva Comunitária, presente em dezessete países e tendo realizado dois congressos latino-americanos, em La Paz (2013, com 1.200 participantes) e San Salvador (2015, com seiscentos participantes) – o próximo será em Quito (novembro de 2017). O paradoxo é que, enquanto crescia o reconhecimento internacional, a partir de 2011 houve no Brasil um sistemático processo de desconstrução do programa, feito exatamente pelo governo federal.
Os Pontos de Cultura e o programa Cultura Viva, a síntese da ousadia e dos novos paradigmas. A cultura que o povo faz, o desenvolvimento em rede, a autonomia, o protagonismo e o empoderamento das comunidades. As trocas simbólicas, a quebra da hierarquia na cultura e a construção das novas legitimidades. O povo pelo povo, na voz e na expressão do povo, as interações estéticas; os griôs e a cultura tradicional transmitida pela oralidade; os Pontinhos e a cultura infantil e lúdica; a Cultura e Saúde; os Agentes Jovens da Cultura Viva; a Cultura Digital, o software livre, o trabalho em rede, colaborativo, a generosidade intelectual; a economia viva e a economia solidária e criativa, as economias da vida, da dádiva e da colaboração; a mídia livre; as Asas e as Teias. O entrelaçamento de sujeitos, a criação, a poesia e a cultura do encontro.
O retrocesso
A partir de 2011, a bem da honestidade intelectual, é necessário reconhecer que houve um processo deliberado de desmonte e paralisia do Cultura Viva, mesmo com discurso favorável ao programa, uma vez que não havia argumentos teóricos, técnicos e filosóficos para combatê-lo.
Parecia um governo de oposição, e não de continuidade, praticando uma política de terra arrasada. Houve o desmonte do programa Cultura Viva, a perseguição burocrática e assédio moral, até a pura e simples criminalização dos milhares de Pontos de Cultura do Brasil. Igualmente foram canceladas as demais ações do programa, levando ao estrangulamento total na transferência de recursos para convênios em andamento. Para comparação: entre 2004 e 2009 foram assinados oitocentos convênios que possibilitaram a formação de 3,5 mil Pontos e Pontões de Cultura, além de mais duas dezenas de editais, beneficiando mais de 3 mil iniciativas. Entre 2011 e 2016 foram realizados apenas oito convênios (exatamente), permitindo a formação de aproximadamente trezentos Pontos de Cultura e alguns poucos editais. Também houve medidas de desconstrução com pouco efeito orçamentário, mas forte impacto político-simbólico, como a abrupta interrupção de pacotes de assinaturas de revistas alternativas às da mídia hegemônica, que eram distribuídas gratuitamente para 5 mil Pontos de Cultura e bibliotecas públicas do país, além do cancelamento de editais para mídia livre, rádios e TVs comunitárias. Do macro ao micro, foi um desmonte completo e deliberado. Isso começou em 2011, e o golpe de Estado apenas segue no mesmo curso.
Buscando compreender as razões e os motivos
1) Uma política pública como a Cultura Viva e os Pontos de Cultura só pôde surgir em um momento político muito determinado. Não em relação ao ponto de vista político-partidário, mas ao simbolismo da eleição do presidente Lula, em 2002, que abriu um novo ambiente para o protagonismo popular. A história de vida do presidente Lula se mistura com a própria história do povo e provocou uma simbiose que permitiu que as pessoas acreditassem mais em si mesmas, colocando-se em movimento. Foi esse caldo de cultura que arou um terreno fértil para a experimentação de políticas públicas participativas e inovadoras.
2) A inclusão social foi a marca do novo ciclo governamental iniciado em 2003 – os dados são incontestes. Todavia, apesar do forte componente inclusivo da Cultura Viva e dos Pontos de Cultura (“reconhecer e apoiar grupos sociais e culturais historicamente alijados”), o programa pretendia ir além, apresentando o componente emancipatório, alicerçado no tripé autonomia/protagonismo/empoderamento. E essa era uma contradição, pois o indicador de êxito do programa estaria na “perda do controle” por parte do Estado.
3) A lógica do Estado é a lógica da imposição e do controle. Porém, a lógica da Cultura Viva era outra: “do Estado que impõe para o Estado que dispõe”, “do Estado que controla para o Estado que está disposto a perder o controle”. A imposição e o controle do Estado são estabelecidos pela técnica (principalmente quando técnica se transforma em ideologia), que se traduz em burocracia, com suas normas, portarias, decretos e leis. E habitus burocrático, como uma maneira de ser do aparato de controle estatal. Aí reside a contradição entre a lógica de um governo reformista e com proposta de inclusão social, mas subordinado à lógica de controle de Estado e de manutenção do equilíbrio de poder que o sustenta. Como a Cultura Viva se propunha ir além da inclusão, houve o embate e o programa travou.
4) Na primeira fase do governo Lula, sobretudo no Ministério da Cultura, havia algum espaço para a experimentação de políticas públicas inovadoras, principalmente pela carga simbólica representada por um deslocamento de classes no exercício de governo. Foi nessa brecha que a Cultura Viva surgiu, como se tivesse entrado por uma pequena fresta de porta que logo mais se fecharia. Enquanto houve vontade política combinada com a baixa institucionalidade no Ministério da Cultura, foi possível avançar. Depois, tudo se tornou mais difícil.
5) No governo Dilma, essas poucas frestas simbólicas foram ainda mais fechadas, e o império da técnica e da gestão se sobrepôs ao mundo do encantamento e das utopias. Não que tenha sido uma intenção perversa e premeditada, buscando conter inovações para além das formas tradicionais, mas foi da própria lógica do sistema do Estado, que precisa se autopreservar. Cultura Viva diz respeito à pluralidade da vida, de suas expressões e desejos, mas o mundo da técnica transforma tudo em coisa, até mesmo a gratuidade da vida. Com isso, Oficinas de Conhecimentos Livres tiveram de ceder lugar à Economia Criativa (submetendo a cultura à lógica da economia, e não o oposto, como deveria ser), e processos formativos horizontais (em que um ponto contribuía com outro via afecções e as ideias se disseminavam de forma virótica) passaram a ser substituídos por formações verticais. Tudo amparado no discurso da qualificação técnica, em que os agentes do Estado são os qualificadores, e os representantes da sociedade, os desqualificados, os despreparados.
Esses cinco fatores nos levam a entender como aconteceu o ciclo de “encantamento/expansão/contenção/declínio” da Cultura Viva.
Isso significa que a Cultura Viva morreu? De maneira alguma. Ela segue viva como sempre seguiu e, inclusive, em um novo e mais poderoso patamar. Vários Pontos de Cultura se empoderaram nesse processo, se equipararam, avançaram na consciência política, saindo do estágio do “em si” para o “para si”. Houve o exercício do movimento coletivo, desencadeado pelas Teias, Teias estaduais, comissões representativas, que continuam. Também houve o exercício da ação reflexiva, com diversos seminários e publicações, como as dezenas de teses e dissertações de mestrado, e os livros. Parte das entidades, talvez aquelas mais artificiais, com menos vínculos comunitários e mais assemelhadas ao funcionamento de ONGs tradicionais, já nem faz parte do movimento dos Pontos de Cultura; mas outro tanto (em 2016 foram mais de 2 mil que se autodeclararam Ponto de Cultura, mesmo sem receber nenhum recurso do Estado) se mantém, inegavelmente, em outro patamar de protagonismo na formulação e defesa de políticas públicas avançadas, inclusive ocupando espaços institucionais, no Brasil e na América Latina. Hoje, a Cultura Viva Comunitária, como definimos no ambiente latino-americano, é um movimento social pautado no eixo “Cultura, descolonização e bem viver”. Tudo isso fornece um ambiente propício à retomada e ao avanço da Cultura Viva, muito além da própria ação do governo do Brasil.
Assim, os Pontos de Cultura seguem vivos, em uma cultura sem fim, com ciclos de vida, morte e ressurreição, em que o grande desafio será se unirem a um povo que ainda vai brotar como nunca se viu!
*Célio Turino é historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Autor de diversos livros e ensaios, entre eles Na trilha de Macunaíma: ócio e trabalho na cidade (Ed. Senac, 2006) e Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi, 2009), traduzido em vários idiomas e editado em diversos países. Ocupou vários cargos públicos, tendo sido secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004-2010), quando idealizou e desenvolveu o programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura. Desde 2011 dedica-se à difusão e organização de movimento e políticas públicas de cultura em mais de vinte países, tendo sido convidado pelo papa Francisco para a difusão da Cultura do Encontro e dos Agentes Jovens de Cultura Cidadã pelo mundo.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}