Por que falamos em cisnormatividade?
Em “Batalhas morais: Política identitária na esfera pública técnico-midiatizadora”, o sociólogo Richard Miskolci denomina os conceitos “cigeneridade” e “cisnormatividade” como uma “novilíngua” que destoa e corrompe os estudos contemporâneos de gênero e sexualidade. Neste artigo, buscamos demonstrar nossa discordância
“Cis” e “trans” são termos que, há alguns anos, adentraram a cena pública brasileira e de inúmeros outros lugares do mundo, causando debates intensos que se alargam aos dias de hoje. Em termos sintéticos, trans seriam as pessoas que são designadas a um sexo no momento de seu nascimento (ou mesmo antes), e que vivem sua vida com algum tipo de conflito a tal interpelação, tais como transexuais, travestis ou pessoas não-binárias. Cis, por outro lado, foi uma contribuição de ativismos transgêneros para demarcar a posição de pessoas que, da mesma interpelação fundamental, seguem sua vida de acordo com alguma linearidade. Nascem com pênis, tornam-se homens; com vagina, mulheres. Uma forma de demarcar tal experiência como uma posição social, recusando a pretensa naturalidade de tal roteiro de desenvolvimento humano. Sumariamente: nomear o que não é nomeado, para que este não assuma, ingenuamente, uma posição natural e, portanto, incontestável. A essa interpelação fundamental do gênero – que, em dias mais recentes, se manifesta em frases como “menina veste rosa e menino veste azul -, gostaríamos de chamar “cisnormatividade”. Aqui vamos explicar o porquê.
Embora a categoria “cis” pareça nova, ela é fruto da década de 1990. Foi com a professora Dana Leland Defosse que, em 1994, a expressão foi utilizada pela primeira vez com o sentido de se referir a quem não era trans. Professora cis de biologia, Dana buscou na isometria geométrica, cis e trans, uma forma de se referir a uma alteridade pouco observada. A partir de sua experiência como bioquímica, encontrou nesses prefixos algum potencial para mudar a maneira como falávamos sobre quem cruzava ou não o paradigma do gênero designado no nascimento. Se trans era o termo adotado para quem não permanecia se identificando com a forma atribuída ao nascer, cis seria a expressão utilizada para falar acerca daqueles que aderiam a essa designação.
Não muito depois, em 1995, o ativista trans Carl Buijs viria a ser creditado como o idealizador do termo, mas somente em 2007, com o lançamento do livro Whipping Girl, da intelectual Julia Serano, é que a expressão realmente se popularizou. Após isso, o resto é história. O que convém salientar é que essa discussão ocorria em paralelo com o lançamento da décima versão da Classificação Internacional de Doenças (CID), em 1993, quando observávamos a transexualidade no rol de patologias como um distúrbio sexual de natureza psicológica. Divulgada pela Organização Mundial de Saúde, a CID é um guia responsável por orientar diversas profissões no cuidado a enfermidades.
Levando em consideração que a transexualidade estava situada na literatura médica como um transtorno de personalidade, tema de interesse especial de psicólogos e psiquiatras, o diagnóstico se dava a partir da fala. Mas o que na linguagem poderia atestar um gênero? Profissionais de saúde mental, diante dessa controvérsia, engajaram-se em identificar no discurso de transexuais e travestis algo que assegurasse uma posição masculina ou feminina. Um dos problemas dessa arbitrariedade é que o gênero é um artefato da cultura; o diagnóstico de transexualidade, consequentemente, precisaria ser um resgate das relações sociais entre homens e mulheres. Dito de um modo simples, determinados estereótipos, que iam desde a busca por uma atitude agressiva (em homens trans) ou um comportamento delicado (em mulheres trans), até brincar com carrinhos ou bonecas, preferir leões ou borboletas, e assim por diante.
Apesar de parecer evidente, é de igual importância dar destaque à força simbólica que a Saúde detém, enquanto instituição, levando-nos a reconhecer que as verdades da medicina acabam por regular nossas vidas cotidianas. Esse talvez seja um dos grandes legados deixados por Michel Foucault, quando analisou a passagem do século XVIII para o XIX, momento em que a leitura biológica do dimorfismo corporal passou a ganhar espaço na literatura médica. O paradigma binário que passou a circular na ciência pressupunha a existência de dois sexos (opostos, porém complementares), considerados como base elementar da humanidade. Diante do fracasso desse paradigma (exposto, por exemplo, nas pessoas trans ou intersexuais), surge a psicopatologia enquanto forma de explicar não o colapso da leitura biológica, mas sim a existência “incorreta” daqueles que nela não se encaixavam.
Genital e gênero
A correlação entre genital e gênero se tornou soberana, implicando na compreensão de que haveria uma forma patológica de vivenciar o gênero (o transgênero) e uma forma saudável (ainda não nomeada, e por isso mesmo universal). Com efeito, essa forma “saudável” estava subentendida como aquela desempenhada por quem não cruzava as fronteiras entre a masculinidade (pênis) e a feminilidade (vagina). As pessoas que não eram trans, portanto, frequentemente receberiam o rótulo de normais, verdadeiras e naturais. Não só a transexualidade era explicada como um adoecimento de gênero, mas como uma ameaça ao gênero correto, congruente. Não é de se espantar que, diante desse raciocínio, milhares de pessoas trans tenham sido estudadas, avaliadas e diagnosticadas desde então por diferentes equipes profissionais.
O crivo clínico passou a tornar auto evidente que, quando falamos de homem, estamos nos referindo a alguém que nasceu com um pênis, e vice-versa. Embora estejamos nos remetendo a uma concepção recente dentro da história da ciência, já que, até o século XVIII, entendia-se a vagina como um pênis subdesenvolvido (o modelo de sexo único da filosofia de Galeno), essa compreensão ingênua nos guiou enquanto civilização em direção à intolerância com as experiências de gênero diversas. Travestis e pessoas trans chegaram até aqui sofrendo a censura de grandes instituições, como a família, escola, saúde e trabalho. Foi somente com o boom da Aids, nos anos 80 e 90, quando os organismos de saúde começaram a encará-las como grupo de risco, que estas passaram a se estruturar como movimento social organizado, que, desde a ditadura militar, dava sinais de seus primeiros passos.
No Brasil, surgiram assim os primeiros coletivos de travestis e liberados, como eram tratados aqueles que depois ficaram conhecidos como simpatizantes. Na década de 1990, o Encontro Nacional de Travestis e Liberados que Atuam na Prevenção da Aids passou a ser a principal forma de reivindicação política, com demandas que iam desde prevenção ao HIV à criação de uma rede capaz de articular as especificidades dessa agenda, culminando no surgimento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) nos anos 2000. Após isso, diversas mobilizações marcam a mudança de uma demanda sanitária para uma demanda cidadã, dentre as quais gostaríamos de pontuar: as políticas educacionais do Inep relacionadas ao uso do nome social e a Ação Direta de Inconstitucionalidade responsável pela mudança do registro civil no Supremo Tribunal Federal (STF).
Nesse intervalo, mulheres trans e travestis passaram a se aproximar dos coletivos de mulheres cis e a participar de algumas reivindicações, como a Marcha das Vadias, em meados da década de 2010, unindo-se às prerrogativas feministas. Neste período, com a construção ainda artesanal do transfeminismo brasileiro, em 2012, Jaqueline de Jesus e Hailey Alves deram um passo importante, demandando outra forma de compreensão de gênero, ao instigarem a academia a questionar a normalidade ontológica de quem não seria trans, nomeando-os como cisgêneros – acompanhando as problematizações que já estavam em ebulição nos Estados Unidos. Em paralelo, diante da já resistente academia, os fóruns virtuais e a criação de um portal transfeminista popularizaram a diferença entre gênero e sexualidade, assegurando às pessoas trans a possibilidade de serem muitas coisas. Inclusive, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, lésbicas, entre tantos outros.
Essas idas e vindas podem ser interessantes para explicar as condições de emergência da expressão “cis” – que tinha como proposição central o seguinte objetivo: deixar de ver essa condição como evidência e passar a vê-la como uma interrogação. Ora, se perguntássemos a alguém o que era ser homem ou mulher, possivelmente obteríamos como resposta que homens e mulheres são aqueles que assim o nascem. Com pênis ou com vagina. Quem se torna homem ou mulher a partir de outros critérios, entretanto, seria fruto de uma desarmonia no desenvolvimento humano. A normalidade, então, considerada intrínseca às pessoas cis, passa finalmente a ser colocada em questão. Se todo mundo sabe o que é ser homem ou mulher, o transfeminismo iria expor as condições históricas que viabilizaram à ciência a criação de um gênero real versus um gênero construído.
Mais intelectuais trans passaram a se somar ao debate, como é o caso das dissertações de mestrado de Viviane Vergueiro e Brune Bonassi, responsáveis por complexificar o entendimento inicial dado ao termo “cis”, deixando de vê-lo somente como uma identidade, mas também como um modo de organizar a vida. Ao mesmo tempo em que altos índices de abandono familiar, evasão escolar e violência social acometiam pessoas trans nos mais diferentes países, sendo o Brasil, atualmente, líder no ranking de assassinatos dessa população. Outras pesquisas passam a ser feitas. Beatriz Bagagli, Céu Cavalcanti, André Guerreiro e tantas pessoas trans defendem suas investigações em programas de pós-graduação ao redor do país. Lidaram com a resistência e o estranhamento de pesquisadores de gênero que, incomodados com a chegada recente de um novo marcador analítico nos espaços acadêmicos, questionaram a capacidade das pessoas trans de lerem e produzirem teorias sobre suas próprias realidades.
Dessa forma, nos últimos anos, as problematizações em torno da categoria cis vêm abrangendo temáticas mais complexas que identificações pessoais ou posicionamentos individuais sobre o corpo e o gênero de cada sujeito. Nesse ínterim, o termo “cisnormatividade” passa a aparecer como uma ferramenta capaz de alargar as discussões sobre cisgeneridade ao campo mais amplo das normas sociais; ou seja, um complexo arranjo biopolítico que delimita pretensas normalidades de viver e experienciar um corpo ou comunidades de corpos no mundo. Ainda, falar em biopolítica é útil por expor os elementos que compõem a nossa subjetivação, ou seja, as tramas que são criadas em torno das relações entre o sujeito e o poder. Falar sobre cisgeneridade, consequentemente, é falar sobre uma forma única, privilegiada, que é apresentada aos demais como a maneira adequada de viver a vida. Ou seríamos nós ensinados a conduzir nossas vidas à diversidade de gênero?
Retomando a década de 1990, percebe-se que o conceito de cisnormatividade é inspirado no vocábulo heteronormatividade, e resgata discussões historicamente travadas nos Estados Unidos, com o advento acadêmico que veio a ser conhecido como teoria queer. Michael Warner e Lauren Berlant, dois expoentes desse campo, escreveram, no ano de 1998, o texto Sex in Public – que, em uma nota de rodapé, definia pela primeira vez a chamada heteronormatividade. Para os autores, esta se materializaria em “instituições, estruturas de entendimento e orientações práticas que fazem a heterossexualidade parecer não apenas coerente – isto é, organizada como uma sexualidade – mas também privilegiada”.
Ao longo das últimas duas décadas, a heteronormatividade passou de uma simples nota de rodapé a um termo amplamente reconhecido e corriqueiro, seja no campo acadêmico, midiático, em grupos de ativismo e até mesmo nas relações interpessoais. Acreditamos que esse procedimento tomou consistência com o acoplamento entre diferentes escritos referentes à teoria queer estadunidense, como, por exemplo, o livro “Problemas de Gênero”, publicado em 1990 por Judith Butler. Nesta obra, a autora reconhece uma “matriz heterossexual de inteligibilidade”, que performa a pretensa congruência entre sexo, gênero e desejo. Sinteticamente, trata-se da ideia de que uma pessoa que nasce com pênis tornar-se-á homem e terá seu desejo sexual voltado a mulheres, e vice-versa. Um roteiro que, sabemos, frequentemente apresenta inúmeros desvios na realidade de boa parte das pessoas.
Em livros e artigos científicos, é comum vermos a heteronormatividade sendo conceituada a partir da definição butleriana, embora os termos tenham sido propostos em momentos e obras distintas. De todo modo, o contexto incipiente e produtivo da teoria queer estadunidense permitiu a conexão entre diferentes autores e teorias, construindo uma gama conceitual profícua para a crítica a modelos violentos e excludentes que privilegiavam (e ainda privilegiam) a heterossexualidade sobre outras formas de existência.
O bojo intelectual estadunidense foi, em termos gerais, bem aceito na academia brasileira, sobretudo a partir de meados dos anos 2000. Heteronormatividade se tornou uma palavra altamente teorizada e problematizada em livros e artigos sobre gênero e sexualidade em nosso país. No entanto, cisnormatividade, termo posterior e correlato, parece não gozar do mesmo prestígio. A título de exemplo, o livro “Batalhas Morais: Política identitária na esfera pública técnico-midiatizadora”, publicado por Richard Miskolci em 2021, além de considerar cisgeneridade uma “novilíngua”, também afirma que o conceito “contradiz as teorias feministas e queer sobre o gênero como produto regulatório”.
“Novilíngua” não é um termo neutro neste debate. Trata-se da referência à obra “1984”, de George Orwell, que narra a distopia na qual um governo centralizado deturpava palavras, alterando seus significados, a fim de controlar o pensamento de seus cidadãos, inviabilizando a proliferação de ideias indesejáveis e potencialmente contestadoras contra o poder totalitário instituído. É disso que estamos falando quando dizemos “cisnormatividade”? Queremos, de fato, inviabilizar o pensamento crítico de nossos pares de modo autoritário, ou simplesmente adicionar um conceito em vias de complexificar as discussões densas sobre corpo, gênero e sexualidade, que já acontecem há décadas em nosso país e em diversos cantos do planeta?
Se seguirmos com a segunda opção, veremos que “novilíngua” não se sustenta frente à cisgeneridade. De fato, é uma palavra relativamente nova (as primeiras menções, em inglês, aparecem no início da década de 2010). Mas nenhuma palavra existe antes de sua invenção. Não há um mundo prévio de termos mais verdadeiros que outros. As palavras surgem, justamente, para dar conta de uma realidade em constante movimento. E por que não seguir, então, apenas com a heteronormatividade, que, como visto, já dá conta do corpo no processo de assujeitamento performativo que nos impõe, muitas vezes através da violência, categorias estanques como “homem”, “mulher”, “hétero” e “homossexual”? De fato, esse é um argumento que ouvimos com frequência: por que falar em cisnormatividade se a heteronormatividade já pressupõe uma linearidade entre sexo e corpo?
Pois bem, já se tornou consenso entre autores vinculados à teoria queer que, em seu momento incipiente, na década de 1990, temáticas relativas à sexualidade sobrepuseram-se ao gênero. Butler, por exemplo, afirma tal preocupação em uma entrevista recente. A vinculação entre queer e transexualidade pode ser acompanhada de forma mais concisa por autores de uma nova geração, tais quais Jack Halberstam, Paul Preciado e Dean Spade. O que queremos dizer com isso é que, sim, é viável conceber que um germe da cisnormatividade já estava pressuposto nas discussões sobre heteronormatividade, mesmo sem receber esse nome. Digamos, uma lateralidade ao termo, que poderia servir a utilizações específicas, mas sem nunca ocupar o centro do debate. No entanto, por que nos contentaríamos com uma mera lateralidade? Não seriam as questões trans – dentre as inúmeras variações de identidades e nomenclaturas que tal termo pode sugerir – merecedoras de uma centralidade teórica, empírica e epistemológica? E não é justamente isso que o termo cisgeneridade está tentando promover?
Demarcação compulsória do sexo no registro civil. Medo de sair na rua e ser reconhecida como trans. Necessidade de atendimento psicológico para comprovar o gênero. Não é o social que explica quem são as pessoas trans, são as pessoas trans que explicam o que é esse social. Ao se recusarem diante das normas de gênero, expuseram a presença de um raciocínio latente no social: um que atribui ao genital a inteligência de saber sobre o sujeito. Quando dizemos “cisgeneridade” não falamos apenas sobre quem é cis, mas sobre uma crise ética instalada entre nós. Essa talvez seja uma das maiores realizações políticas do transfeminismo, a capacidade de alterar a gramática que temos para lidar com o que não foi nomeado ainda. Essa nova gramática, que não é uma “novilíngua”, foi capaz de desnaturalizar o status de doença dado à transexualidade. A recusa da categoria “cis” implica numa postura de violência nostálgica, sobre um mundo em que tais sujeitos não eram capazes de ter nenhum repertório para pensar sequer suas próprias realidades.
Outro argumento corriqueiro contrário ao conceito de cisnormatividade – presente também no livro de Miskolci – é o de que o termo tornaria estanques as posições sociais de pessoas a partir do modo como se identificam ou são identificadas. Isso, simplesmente, não é verdade. Não há qualquer garantia de segurança para uma bicha afeminada ou para uma lésbica masculina apenas por essas pessoas não se considerarem trans. Nenhum agressor homofóbico ou transfóbico vai perguntar o seu pronome antes de te bater com uma barra de ferro na cabeça.
Seria, então, a cisnormatividade inútil para tais pessoas que habitam alguma fronteira entre as expectativas que congregam, de modo idealizado, um corpo, um gênero e uma sexualidade? Acreditamos que não. Sofia Favero, uma das autoras do presente texto, recentemente escreveu um artigo chamado “Cisgeneridades precárias: Raça, gênero e sexualidade na contramão da política do relato”, no qual argumenta que a cisgeneridade não é, necessariamente, um privilégio, mas também um lugar de precarizações e violências. Afirma, ainda, algo que nos parece óbvio, mas merece ainda algumas reiterações: existem muitas formas de ser cis, assim como existem muitas formas de ser trans. E há, também, formas de co-habitar essas duas demarcações. Poderíamos pensar que a experiência de uma transexual branca e de classe média se iguala à de uma travesti negra da periferia? Faria sentido considerar que, somente por serem gays, um homem branco masculino e um homem negro afeminado se relacionam do mesmo modo com as normas hetero e cisnormativas que lhes interpelam?
Se reconhecermos que uma rejeição analítica da “cisgeneridade” acarreta no resgate da noção de natureza para o gênero de homens e mulheres, logo, no de desvio para transexuais e pessoas trans, devemos admitir que seu uso representa uma defesa ética-epistêmica de vidas assombradas por essa mesma estrutura que está sendo rejeitada. Fingir que essa é uma palavra ficcional, como se hétero e homo não o fossem, reitera a noção de fantasia atribuída às subjetividades trans que, a partir desse mesmo estigma, tiveram de participar de psicoterapias compulsórias ao longo das últimas décadas. Nessa mesma linha de pensamento, dizer “cisgeneridade” é falar sobre algo que afeta negativamente quem também não é trans, pois o que está em discussão é como há uma força institucional em busca de conformar corpos e singularidades em papéis sexuais fossilizados.
Na mesma entrevista já citada, Judith Butler afirma ser uma pessoa não-binária – ou seja, uma pessoa para quem as categorias “homem” e “mulher” não dão conta de sua experiência corpórea e existencial. Uma categoria que, usualmente, figura dentro do “guarda-chuva” que abrange inúmeras possibilidades de ser trans. A autora afirma que o passo para assumir tal nomenclatura partiu mais das interpelações que recebia em circunstâncias sociais, quando era chamada eventualmente no masculino, no feminino, ou causando algum tipo de confusão entre ambas. Em uma anedota frequentemente narrada por Butler, um recepcionista de hotel, ao vê-la, repetiu ininterruptamente os pronomes de tratamento que poderiam lhe caber: “senhor, senhora, senhor, senhora”.
Situações como essa são frequentemente vivenciadas por pessoas próximas aos autores deste texto, sobretudo mulheres lésbicas masculinas. Uma amiga nos disse, recentemente, que já estava cansada de ser chamada de “senhor” quando adentrava espaços comerciais, embora a situação também lhe causasse algum tipo de graça, além de constrangimento. Dados esses pequenos exemplos, gostaríamos de propor que a cisnormatividade – bem como a cisgeneridade por si – não habita um corpo individual, como uma identidade ou, muito menos, uma essência. Trata-se, sim, de um posicionamento social no qual as pessoas são relegadas, às vezes encontrando algum tipo de congruência e aceitação, às vezes causando graça (na melhor das hipóteses), constrangimento e, principalmente, violência.
Ser cis, portanto, não seria um escudo de privilégio contra a transfobia ou outros tipos de precarização. Cis, em nosso entendimento, é uma posição dialógica, articulada a outros marcadores sociais, que interpela os corpos no mundo e os afirma performativamente como “homem” e “mulher”. Afirmação essa que, não raro, apresenta intensa incoerência com as formas de existência das pessoas por ela interpeladas.
Ademais, a exigência de que a categoria cis “venha pronta” pressupõe ao modo de fazer conhecimento uma distorção custosa para nós: a de que nossas ideias e conceitos sejam pouco discutidas, potencializadas, repensadas. Decerto, quando nos deparamos com essa provocação, não estejamos de fato diante de pessoas que questionam a pretensa superficialidade da categoria, mas de pessoas que expõem suas resistências às epistemologias trans. Autores como Richard Miskolci, ao afirmarem que “cisgeneridade” e “cisnormatividade” carecem de densidade sociológica, e seriam até mesmo uma “novilíngua”, talvez não levem em consideração que o processo de criação e sustentação de um conceito não acontece de um dia para o outro. Trata-se, como já expomos aqui, de algo que se desenvolve há pelo menos duas décadas (tal como já ocorreu com o conceito de heteronormatividade) e, supomos, seguirá se proliferando nas próximas. Queiram alguns ou não. Inclusive, vemos emergir em alguns nichos acadêmicos a junção dos dois termos: cis-heteronormatividade, visando à articulação das duas propostas, sem abrir mão das especificidades de cada uma.
Assim sendo, tomamos a cisgeneridade muito mais como uma norma social do que um posicionamento pessoal. Autores como Michael Warner, Lauren Berlant e Paul Preciado já afirmaram que a heteronormatividade não é uma forma de atribuir culpas ou execrar pessoas que se interessam pelo sexo/gênero oposto, mas sim apontar como esse tipo de relação recebe um privilégio social em detrimento de outras formas de experiência e existência. Não poderíamos pensar algo semelhante sobre os debates entre cisgeneridade e cisnormatividade?
É com isso em mente que advogamos pelo termo cisnormatividade, que indica o espaço dialógico onde tais normas são efetivadas e materializadas, para além de um individualismo neoliberal – como muitos críticos costumam afirmar – onde qualquer um poderia escolher seu gênero de forma volitiva.
Em suma, essa pode ser descrita como uma crise antropológica. Se, por muitos séculos de história, alguns sujeitos detiveram o poder e o saber sobre outros, estamos vivenciando um giro nas questões de gênero e sexualidade (um giro que também acompanha, há décadas, questões étnicas, raciais, coloniais). Pessoas demarcadas pela diferença estão assumindo seus locais nos espaços de debate e questionando a máxima de que “identidade tem sempre o outro”. Todos somos atravessados por identidades, e acreditamos que a política se constituiu, propriamente, na relação agonística entre elas, como nos lembra Chantal Mouffe. Mas, para sermos entendidos enquanto sujeitos falantes, sujeitos a quem a política pertence por direito, necessitamos ser reconhecidos enquanto tais. Para tanto, deslocar as demarcações que nos tornam simplesmente “outros” – como é o caso do conceito cisnormatividade – torna-se um pressuposto para uma política que contemple dignamente um número cada vez maior de pessoas. Este é um giro fundamental, seja no campo ativista, acadêmico, político e existencial. Estaria a comunidade acadêmica brasileira preparada para esse giro?
João Gabriel Maracci é doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais;
Sofia Favero é doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.