Por que ler Félix Guattari?
A obra do filósofo francês ajuda no cuidado sobre o olhar para a política na atualidade
“Não existe estrutura universal do espírito humano” (p.31). A assertiva de Félix Guattari está em A revolução molecular, lançado recentemente pela Ubu Editora. A obra foi organizada, traduzida e muito bem prefaciada por Larissa Drigo Agostinho, consistindo em uma coletânea de textos, os mais diversos, desde artigos, conferência e entrevistas, publicados originalmente entre 1972 e 1979.
Por que ler Guattari? A pergunta reflete a necessidade de um exercício de observação de nossa realidade. Isso por vermos com bastante vigor o surgimento de movimentos de esquerda mundo afora que representariam a alternativa de um capitalismo pulsante. Simultaneamente, o crescimento da extrema direita autoritária a partir de uma ideia de consenso majoritário também é observado. Ao fundo, o que temos é a descrição da complexa realidade.
Guattari é muito assertivo. O autor, de vasta produção e célebre por sua parceria com Gilles Deleuze, sobretudo em O anti-Édipo, vive a década de 1970. Nela, há a cobrança sobre a filosofia, bem como de todo o sistema de pensamento de então, quanto à revisão de alguns dos principais cânones sociológicos e filosóficos vigentes. É notável como as teses de Guattari vêm na esteira de muitos dos questionamentos que emergiram do Maio de 1968 que, por certo, abriram as portas para que se deixasse de pensar em uma lógica universal, ampla, para não dizer estrutural, de maneira a se focar diretamente no indivíduo e em seus desejos. E ele insiste no quanto isso pode ser revolucionário.
A chave para o entendimento de sua obra está no desejo. O autor exige que haja o reconhecimento dos desejos individuais como referência para que se pense não apenas nos sujeitos, mas, principalmente, na sociedade como um todo. Determinadas instituições, como o Estado, ou mercado, deixariam de ser tomados como orientação máxima, tendo em vista que eles funcionariam como cerceadores do desejo, independentemente da configuração dos sistemas em que se viva, qual seja, capitalismo, socialismo ou comunismo.
Por certo, Guattari está num contraponto ao momento da Guerra Fria. Traz à tona dados para que tanto o capitalismo de modelo norte-americano como o socialismo de matriz soviética sejam questionados. Ambos, para ele, representariam a condenação do desejo à esfera privada, com o seu antípoda, o público, sendo sacramentado pela lógica do trabalho – economicamente produtivo, no caso do capitalismo, ou disciplinarmente organizador, como no socialismo soviético. No final, isso seria uma espécie de máscara dos próprios sistemas, penalizando o indivíduo, o sujeito.
Em seu entendimento, qualquer uma das saídas propostas então, à esquerda e à direita, sinalizariam para a perda de controle do poder por parte dos sujeitos em sociedade. Eles estariam condenados a viver em sistemas limitadores, operando em nome de uma estrutura objetivante – qual seja, a suprimir a qualidade de sujeito ao inseri-lo como agente produtor. O sujeito se torna coisa.
A ebulição social dos anos de 1960 seria a demonstração de que algo disso escapa. Como uma maneira de conseguir observar com mais clareza esse aspecto, ele propõe uma micropolítica do desejo, que, em seu traço pragmático, garantiria a manifestação das individualidades das ações desejantes. A sua incidência mais clara está nos movimentos sociais. Eles conseguiriam aglutinar as manifestações moleculares, subjetividades, em uma direção única, operando à margem de organizações sistemáticas, como, por exemplo, os partidos políticos. Os desejos, então, adquiririam protagonismo nas ações sociais.
Lembrando que, desde o princípio, a relevância que Guattari atribui aos movimentos sociais está justamente no fato de eles se constituírem como unidade externa às instituições hegemônicas, sobretudo Estado e mercado. E esta sua compreensão é o que daria a dimensão da relevância de A revolução molecular para os dias de hoje.
Nesta semana, vemos o crescimento da extrema direita nas eleições europeias. O episódio apenas acompanha aquilo que temos observado com bastante veemência em um cenário como o da realidade brasileira. Aqui, essa extrema direita, em grande medida, cresce à sombra de uma ideologia religiosa conservadora como a dos evangélicos neopentecostais. Seguindo Guattari, podemos interpretar esse agrupamento como sendo aquele a limitar ao máximo as manifestações dos desejos.
Isso não poderia ser diferente. Ainda mais se tomarmos como referência o crescimento de movimentos sociais com pautas que, antes, estariam longe da lógica tradicionalmente tida como digna de consideração política. Por certo que devemos fazer ponderações críticas, mas, é evidente que a temática racial, de gênero, movimento estudantil, por moradia, por terra, entre outras temáticas, ocuparam espaço no cenário mundial pela possibilidade de difusão e iniciativa dos agrupamentos e não por uma manifestação voluntária de instituições, como o Estado ou partidos políticos, mesmo um Estado socialista.
Por isso a atenção de Guattari se volta para o micro, para o molecular. Naquele momento, da década de 1970, ele já identificava essa ruptura para que fosse feita a condução à emancipação social. E o momento atual é o de robustez das manifestações em busca de posições singulares de desejo. Não por acaso observamos o contramovimento da extrema direita. O jogo está montado.
Embora seja originário de um tipo de pensamento vigoroso há meio século, resgatar reflexões como esta, de Guattari, nos dias de hoje, é algo relevante. Isso porque a ênfase nas singularidades, com a tônica do respeito às particularidades das constituições individuais, se sobrepõe ao ponto de cobrar da sociedade e do Estado que suas demandas componham pautas políticas para a elaboração de políticas públicas.
Enfim, republicar A revolução molecular pode jogar luz à compreensão dos nossos dias atuais de uma maneira muito mais ampla. Auxilia-nos, inclusive, para sabermos a postura que devemos assumir na lógica global atual.
Faustino Rodrigues é psicanalista e professor de sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).