Por que o nazismo deve ser criminalizado, mas o comunismo não
Nos últimos dias, em curto espaço de tempo, um conhecido podcaster defendeu a legalidade do partido nazista e um comentarista de TV, risonhamente, fez a saudação hitlerista chamada seig heil. Manifestações como essas se tornaram frequentes nos últimos anos, em particular após a eleição de Jair Bolsonaro. Seu governo, aliás, tem sido uma permanente fonte de inspiração para esse tipo de gesto.
Já tivemos assessor presidencial fazendo sinal de supremacistas brancos, secretário fazendo cosplay do nazista Joseph Goebbels… Isso para não falar do próprio presidente da República, que, além de exaltar torturadores, recebe visitas como a da deputada alemã Beatrix Von Storch, neta de um ministro de Hitler e expoente do partido neonazista Alternativa para a Alemanha (AfD).
Com tantos exemplos vindos de altas autoridades da República, não surpreende que a defesa da barbárie venha ganhando espaço. Tornou-se mais fácil, no último período, naturalizar posições indefensáveis. Muitos se acham tão à vontade que chegam a fazer comparações entre o nazismo e a ideologia comunista.
Mas a história não autoriza qualquer comparação entre essas duas ideologias.
O nazismo foi um capítulo tenebroso da história humana. Os valores e práticas que tiveram lugar no regime de Hitler deitaram consequências catastróficas, como o Holocausto. O chamado Terceiro Reich promoveu o genocídio de judeus, mas também de ciganos, eslavos, negros e homossexuais, como também de comunistas e democratas em geral.
Décadas depois, o mundo volta a assistir à expansão de grupos neonazistas. Nos últimos anos eles voltaram a crescer no Brasil. Pregam a intolerância e o ódio contra certos grupos sociais e partem, em muitos casos, para as vias de fato, cometendo atos bárbaros e violentos.
De acordo com o ordenamento legal em vigor, o nazismo é crime. A lei federal 7.716, de 1989, no parágrafo 1º de seu artigo 20, afirma que é crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”.
O mesmo artigo, em seu parágrafo 2º, enquadra como criminosas as pessoas que utilizam os “meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza” para disseminar ideias nazistas, sob pena de “cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio” e de “interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores”, conforme preveem os incisos II e III do parágrafo 3º. A pena individual para quem for condenado é de multa e prisão de dois a cinco anos. Vale lembrar que diversos países têm leis semelhantes.
Há quem diga que, se o nazismo é criminalizado, o comunismo também deveria ser. Essa é, na verdade, uma forma sorrateira de defender o nazismo, um truque retórico usado por aqueles que pretendem reabilitar suas práticas. Trata-se de uma falsa simetria.
Nazismo e comunismo são ideologias opostas e incompatíveis. O nazismo é uma ideologia intrínseca e declaradamente intolerante, antidemocrática e racista. Enquanto o nazismo defende a luta darwinista entre raças ou nações, o comunismo defende uma democracia autêntica, pautada pela igualdade, pela fraternidade e pelo respeito entre os povos de todo o mundo.
Quem defende a criminalização do comunismo argumenta que o regime teria sido responsável pelo derramamento de sangue e por inúmeras mortes humanas. Ora, essa visão é completamente a-histórica, pois abstrai, descontextualiza e generaliza ocorrências, dispensando uma análise detida das circunstâncias concretas em que tais fatos ocorreram. Ao tentar trivializar “mortandades”, esse argumento superficial conduz a contrassensos que podem abrir espaço para criminalizar um enorme número de ideologias políticas e religiosas, dissimulando a tragédia hedionda do nazifascismo.
Ninguém dotado de bom senso proporia criminalizar católicos e protestantes pelas mortes ocorridas durante a Guerra dos Trinta Anos, que envolveu uma série de nações europeias, ou pelas guerras religiosas na França, ou ainda pela Guerra dos Três Reinos, envolvendo Inglaterra, Escócia e Irlanda. E ninguém proporia criminalizar a Igreja Católica pelos crimes cometidos durante a Inquisição.
“Mas isso é passado!”, diriam alguns. De fato, para falar da época contemporânea, não foi em nome de nenhuma ideologia religiosa, e também não do comunismo, que se promoveu a completa destruição de um país como o Iraque, sob o argumento — inverídico — de que esse país possuía “armas de destruição em massa”.
Se o argumento são as mortes associadas à afirmação de uma ideologia determinada, alguém poderia propor, com propriedade, a criminalização do próprio liberalismo. Pois, quando examinamos atentamente a história, não é possível desconsiderar a trajetória de colonialismo suportada por inúmeras potências liberais.
Um autor como Domenico Losurdo afirma que a noção liberal de liberdade não se coaduna com a igualdade entre as pessoas e os povos. Isso porque a liberdade liberal possui inúmeras “cláusulas de exclusão”. Diversos autores — marxistas ou não — mostram que, além do saque econômico, a opressão política e a hierarquização de povos e nações sempre caracterizaram o comportamento imperialista de muitos países autoproclamados “liberais”.
Já Marx, em O capital, não se furtou a observar quanto sangue foi derramado pelas potências capitalistas desde a chamada “acumulação primitiva”. Essa realidade se revelou desde cedo nas próprias nações centrais. Mas é nos países em situação colonial ou semicolonial que a situação se pinta de cores mais vivas. Como afirma Losurdo,
“Entre os ‘idílicos processos’ que caracterizam a ‘acumulação originária’ e ‘a aurora da era da produção capitalista’ insere-se a transformação da África numa ‘reserva de caça para os mercadores ilegais de peles-negras’ — observa O Capital com transparente alusão à trágica sorte também dos peles-vermelhas, ou seja, à ‘aniquilação, escravização e enterramento dos indígenas nas minas’.”[1]
Não se pode dizer que o colonialismo seja um “acidente de percurso” jamais previsto ou sequer cogitado na fortuna teórica da tradição liberal. Senão vejamos o que diz o britânico Stuart Mill em seu ensaio intitulado On Liberty, referindo-se aos povos das colônias inglesas:
“O despotismo é uma forma legítima de governo quando se lida com bárbaros, desde que o objetivo seja o progresso deles e os meios se justifiquem pela eficiência, no presente, para atingir esse resultado. O princípio da liberdade não se aplica a nenhuma situação anterior ao momento em que os homens se tornaram capazes de melhorar através da discussão livre e entre iguais.”[2]
O que se pode depreender desse trecho é que Mill está longe de conceber o colonialismo britânico como mera “externalidade”. Poder-se-ia alegar que esse autor é do século XIX. Mas, em primeiro lugar, a defesa teórica e política do colonialismo está longe de se restringir ao liberalismo daquela época. Além disso, é precisamente do Oitocentos que nos chegam algumas das mais vigorosas manifestações do liberalismo progressista, o que só revela as ambiguidades intrínsecas dessa doutrina.
A verdade é que o humanismo liberal de Stuart Mill é débil e incoerente: vale apenas para os povos “civilizados”. A liberdade não é para qualquer um, mas apenas para aqueles que superaram a “barbárie”. Para todos os outros se pode usar qualquer meio para a “nobre” finalidade de remover os “bárbaros” do estado de natureza. Qualquer meio, repito, inclusive o despotismo, que nesse caso para Mill era “uma forma legítima”.
O que acontece muitas vezes é que, enquanto a avaliação dos regimes inspirados no comunismo é extremamente exigente, outros regimes são avaliados de forma, digamos, menos rigorosa, e acabam sendo definidos como “democráticos” independentemente da exclusão que produzem, por mais ampla e cruel que seja. Sobre isso vale a pena voltar a Losurdo:
“[…] A democracia não pode ser definida independentemente dos excluídos; o ‘despotismo’ exercido sobre ‘bárbaros’ obrigados à ‘obediência absoluta’ própria dos escravos e às infâmias da expansão e do domínio colonial lança uma luz inquietante sobre os Estados liberais, e não só no que respeita à sua política internacional. Esta não é um elemento estranho à estrutura político-social interna. É elucidativo o exemplo dos Estados Unidos; aqui, é no próprio território nacional que residem as raças ‘na menoridade’, de cuja condição não se pode prescindir nem sequer quando se trata de analisar países como a Inglaterra ou a França ou a Itália. Na tradição liberal, a teorização ou celebração da liberdade avança a par e passo com a enunciação de cláusulas de exclusão, pelo que a liberdade em última análise acaba por se configurar como privilégio.”[3]
Importante notar a histórica diferença de atitude entre a Rússia bolchevique, de um lado, e as potências imperialistas, de outro, no que respeita aos países em situação colonial e semicolonial.
Os partidos comunistas sempre se caracterizam pela denúncia da dominação em todos os seus aspectos. Vale lembrar que foi a ascensão dos comunistas ao poder que encerrou a opressão das minorias nacionais na Rússia — inclusive dos judeus —, pondo fim ao expansionismo grão-russo e garantindo direitos às diversas nacionalidades ali existentes. Isso para já nem falar do inestimável papel que tiveram a União Soviética e os países socialistas no processo de descolonização da Ásia e da África.
No mesmo sentido, a Rússia soviética foi a grande protagonista da derrota do nazifascismo na Segunda Grande Guerra, proeza pela qual os russos pagaram um altíssimo preço. Em contraste com esse histórico, vejamos o que dizia Marx sobre a conquista britânica da Índia:
“Não pode haver nenhuma dúvida de que a miséria infligida ao Industão pela Grã-Bretanha é de um tipo essencialmente diferente, e mil vezes mais intenso, do que tudo o que o país sofreu em épocas anteriores.”[4]
Não menos notável é a histórica diferença de atitude que mantiveram em relação à China, ao longo do século 20, a Rússia soviética e as potências imperialistas liberais. Estas, ao mesmo tempo que agitavam a bandeira da liberdade e da democracia, nunca hesitaram em tentar perpetuar a condição semicolonial da China. Uma postura que, aliás, já se mantinha desde os tempos da Guerra do Ópio. A esse propósito, valha-nos o que dizia um clássico do liberalismo — o francês Alexis de Tocqueville — que definia a Guerra do Ópio como cruzada pela liberdade e pela civilização:
“[…] Eis finalmente a mobilidade da Europa a braços com a imobilidade chinesa! É um grande acontecimento, sobretudo se pensarmos que este não é senão a continuação, a última etapa de um rol de acontecimentos da mesma natureza que vão impelindo gradualmente a raça europeia para fora dos seus confins e submetendo exclusivamente ao seu império ou à sua influência todas as outras raças […]; é a sujeição das quatro partes do mundo por obra da quinta.”[5]
Ora, os liberais podem dizer que, apesar das palavras de autores como Tocqueville, essas experiências não representam o liberalismo. Eles podem alegar que se trata de deturpações históricas tópicas e situadas, ainda que perpetradas por países e lideranças de bandeira liberal. Contudo, sequer é necessário entrar no mérito desse argumento para fazer notar que, num diálogo honesto e franco, se o ponto é aceito pelos liberais, ele não pode ser sonegado aos comunistas, pois também em favor dessa ideologia se pode argumentar que certos erros e contradições não derivam de sua doutrina, mas de situações dadas e historicamente circunscritas.
O nazismo, contudo, não pode usar esse argumento, por um motivo simples: suas práticas em nenhum momento se revelam em contradição com suas doutrinas. Ao contrário: elas representam a materialização líquida e certa dessas mesmas doutrinas.
E aqui reside uma diferença importante, que não pode ser ocultada, entre o nazismo e o comunismo, mas também entre o nazismo e o próprio liberalismo. Nesse último caso, por mais que o liberalismo, em muitos momentos da história — em particular nos períodos de crise — tenha dado as mãos ao nazifascismo para combater os trabalhadores, não se pode igualar as duas coisas.
Liberalismo e nazifascismo — para já nem falar do comunismo — são coisas qualitativamente distintas nos planos da ideologia e também da política. O liberalismo deve ser superado politicamente. O nazismo deve ser criminalizado. Da mesma forma que a falsa simetria entre nazismo e comunismo serve ao primeiro, o mesmo ocorre com a falsa simetria entre nazismo e liberalismo. Quem iguala ambos está “aliviando a barra” do nazismo.
É verdade que o liberalismo — em sua fase neo — flerta crescentemente com pressupostos irracionalistas reveladores de uma conexão subterrânea com princípios ultraconservadores. Ainda assim o liberalismo mantém-se, pelo menos parcialmente, no campo da racionalidade, pois os liberais aceitam pressupostos que viabilizam consensos e a própria existência de uma esfera pública. Não à toa, em momentos diversos da história, com destaque para a Segunda Guerra Mundial, a frente democrática uniu comunistas e liberais na luta contra o nazifascismo.
Este último, por outro lado, configura-se como irracionalismo puro e destrutivo, que corrói as bases do diálogo razoável e da própria vida, pelo que tem que ser parado não no campo do diálogo, mas no da coerção política, ou seja, da lei. O nazifascismo é a própria barbárie. É por isso que é esta a ideologia que deve ser criminalizada.
Fábio Palácio é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP), professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhã
[1] LOSURDO, Domenico. Liberalismo. Entre civilização e barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006, p. 23.
[2] MILL, J. S. Sobre a liberdade. São Paulo: Hedra, 2011.
[3] LOSURDO, Domenico. Op. Cit. p. 18.
[4] MARX, Karl. The British Rule in India. In:__________. Dispatches for the New York Tribune: Selected journalism of Karl Marx. London: Penguin Books, 2007. p. 213.
[5] TOCQUEVILLE, A. De la démocratie en Amérique (1835-40). Apud LOSURDO, Op. Cit., p. 24.