Por quê?
No dia 8 de julho, Gildo Macedo Lacerda teria completado 71 anos. Não tivesse sido assassinado pelo Exército brasileiro em outubro de 1973. Sua esposa, a jornalista Mariluce Moura, então grávida de pouco meses, relembra o período, quando também foi presa e torturada, e questiona: por quê?
Não tivesse sido brutal e lentamente assassinado entre 25 e 28 de outubro de 1973, em dependências do quartel general do IV Exército brasileiro, em Recife, por meio de torturas bárbaras infligidas por humanos tomados por alguma deformação monstruosa, nunca julgados e cujos nomes e rostos sequer sabemos, todos criminosos autorizados por uma ditadura asquerosa a destruir pessoas até a irrecorrível morte, Gildo Macedo Lacerda teria feito, em 8 de julho de 2020, 71 anos. E teria conhecido uma filha bela e brilhante como ele próprio, duas netas e um neto encantadores.
Em vez disso, o jovem idealista de 24 anos, estudante de economia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), militante da Ação Popular Marxista-Leninista, que adotara, para escapar às perseguições implacáveis da ditadura, em seu pouco mais de um ano e meio final de trabalho legal e vida normal, digamos assim, em Salvador, o nome frio de Cássio de Oliveira Alves, foi morto. Seu corpo, sonegado à família para os funerais, foi enterrado como pertencente a um indigente e depois lançado numa vala comum em Recife onde tantos outros corpos se acumulavam.
A par de uma história fantasiosa sobre sua morte num tiroteio com companheiros na noite de 28 de outubro na Avenida Caxangá, na capital pernambucana, descrita em comunicado do Centro de Informação do Exército (Ciex) que todos os veículos de comunicação do país foram obrigados a publicar entre a noite de 31 de outubro, caso do Jornal Nacional, e a manhã de 1º de novembro, como o fizeram os jornais impressos, contraditoriamente, ele seria incluído numa lista de desaparecidos, da qual só começaria a ser retirado no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso na segunda metade dos anos 1990.
Nossa filha, que nasceria meses depois, não poderia ter na certidão de nascimento o nome do pai, posto que só ao próprio ou a seu procurador, pelas leis brasileiras, cabia então o registro da criança, a não ser que houvesse uma certidão de óbito. Fora disso, as crianças eram filhas ou filhos só da mãe. E certidão não havia – nem houve com uma causa mortis definida até 2019! Sim, 46 anos depois de muita luta, graças a um trabalho incansável da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, então sob a presidência da procuradora Eugênia Gonzaga, certidões de óbito corretas começaram a ser expedidas, trabalho interrompido, claro, pelo governo Bolsonaro. Um longo processo de investigação da paternidade, mesmo em tempos sem as facilidades tecnológicas que adiante o exame de DNA ofereceria, contornou o problema e, aos 18 anos, Tessa Moura Lacerda pode ter, enfim, o nome do pai em sua certidão de nascimento.
Gildo foi preso perto do meio-dia de 22 de outubro, quando saía de casa para o trabalho. Mais ou menos na mesma hora, eu, então repórter do Jornal da Bahia e da sucursal de O Globo em Salvador, era presa, ou melhor, sequestrada, encapuzada e arrastada para dentro de um carro em frente ao Elevador Lacerda, um dos lugares mais movimentados do centro da capital. Outros quatro jovens, incluindo os também jornalistas Nadja Miranda e Oldack Miranda, eram apanhados em condições similares em diferentes pontos da cidade e igualmente levados à força para o prédio da Superintendência da Polícia Federal, comandada pelo coronel Luís Arthur de Carvalho.
Nos vimos todos entre a tarde e parte da noite numa sala da PF onde permanecemos sob a guarda de prepostos bem armados, sem podermos falar uns com os outros, tentando nos comunicar por olhares. Por volta das 10 da noite levaram Gildo, e foi a última vez em que o vi. Na manhã seguinte, fui despachada para o quartel do Forte de São Pedro, de onde só saía vendada para as sessões de tortura no quartel do Barbalho, e Gildo foi transferido exatamente para esse quartel, de onde, dois dias e intensas torturas depois, seria enviado para o sacrifício final no QG do IV Exército, com entrada pela Rua Riachuelo, e que continha no fundo, já na Rua do Hospício, a casa do Departamento de Ordem Institucional em Pernambuco, o DOI-PE, onde aconteciam as sessões de tortura e assassinatos (ver a propósito http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/laudos-periciais.html). Soube da morte de Gildo pelo capelão do exército da VI Região Militar, que me levou e entregou um jornal com o informe falso do tiroteio na Avenida Caxangá. Eu seguia presa e isolada num quarto no Forte de São Pedro, em começo de gravidez, e ali mesmo continuaria sozinha pelos seguintes 32 dias, os piores e mais aterradores de toda a minha vida, a literatura como única via de escape do real, dias interrompidos só aos sábados pelas breves visitas de minha família, permitidas a partir daquele 1º de novembro – eu faria, dois dias depois, 23 anos.
Por quê? Por que o assassinato de Gildo? Por que o assassinato de tantos como ele? Não há resposta a essa pergunta dentro de qualquer racionalidade política dita normal, mas só no âmbito de uma lógica perversa de um regime estruturado sobre uma concepção fascista de mundo, onde cada adversário torna-se um inimigo a ser eliminado. Onde cada pensamento de liberdade tem que ser combatido com armas brutais que destroem o corpo e ceifam a vida. Onde a democracia e o direito a pensar e se expressar fora dos cânones do regime estão banidos e encerrados numa noite infinita.
Filhos da baixa classe média, ele de pequeno agricultor na região de Uberaba, eu de pequeno comerciante na periferia de Salvador, tínhamos, sob a ditadura, os sonhos generosos de derrubá-la para ajudar a construir um país menos desigual, com maior justiça social. Nessa mirada do futuro, o socialismo era, sem dúvida, nosso horizonte e nossa utopia. Mas a democracia burguesa e a social democracia já seriam por si passos gigantescos para escapar ao ambiente sufocante da ditadura, entendíamos, ainda que tantos de nossos companheiros refutassem vigorosamente essa visão.
Gildo foi desde os 15, 16 anos, um militante ativo do movimento estudantil e, com vocação clara para a liderança, a filiação à Ação Popular antecedeu mesmo a entrada na Faculdade de Economia da UFMG, em 1968. Ali, destacou-se a ponto de ser, no mesmo ano, um dos delegados enviados ao famoso Congresso da UNE em Ibiúna, que terminou com a prisão de dezenas de jovens estudantes de todo o país. O AI-5 se abateria pesadamente também sobre o vigoroso movimento estudantil, depois de 13 de dezembro de 1968, e o ambiente repressivo se agravaria muito com o decreto-lei 477, em fevereiro do ano seguinte, destinado a punir com a cassação da matrícula na universidade os estudantes mais combativos. Gildo foi expulso da UFMG por força desse decreto em 1970 e, para continuar na luta contra a ditadura, optou pela clandestinidade. Foi nessa condição, inclusive, que exerceu o cargo de vice-presidente da UNE na última gestão do órgão, antes de sua reconstrução em 1979. Viveu entre o Rio e São Paulo até se mudar para Salvador, em 1972, tanto para escapar ao cerco da repressão quanto para tentar recompor a fragilizada ala denominada esquerda de AP.
E aqui cito, a propósito, artigo que escrevi quando das ofensas de Jair Bolsonaro a Fernando Santa Cruz, pai de Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil:
“A Ação Popular Marxista-Leninista (APML) era um partido da chamada esquerda revolucionária que vai se constituindo no Brasil a partir dos anos 1960 (…) À medida que a ditadura de 1964-1985 radicaliza seu combate contra todas as forças progressistas do país, o partido reorienta-se por uma visão marxista e inclina-se por uma prática política de fundamento maoista. Segue assim até que uma crescente luta interna em torno da definição do caráter da sociedade brasileira e dos melhores caminhos para desenvolvê-la no sentido da igualdade e da justiça social alcança seu auge em 1972 e levará grande parte da APML, em janeiro de 1973, a fundir-se com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – então já empenhado na Guerrilha do Araguaia como um ponto de partida para a derrubada da ditadura.
Os [sete] jovens mortos no contexto da Operação Cacau, cujos detalhes (…) estão bem descritos no relatório final da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco (páginas 362 a 405), compunham a chamada ala esquerda da APML, justamente o grupo que não aceitou a fusão com o PCdoB e a adesão à Guerrilha do Araguaia. Àquela altura (…) entendia que o Brasil era uma sociedade extremamente complexa, movida por um sistema capitalista em desenvolvimento, ainda que periférico e dependente, que exigiria novas formas de luta, legais e parlamentares inclusive, para a derrubada da ditadura e a construção da democracia, tendo no horizonte o socialismo. Era com esse olhar que mantinha conversações com outros grupos políticos de esquerda”.
Essa movimentação política produziu nosso encontro. Nos conhecemos em 11 de junho de 1972, começamos a namorar em agosto e, numa história que se constituiu para ambos numa avassaladora descoberta da paixão e do amor que querem ser concretizados, em meio às tensões e aos medos intensos provocados pelo furor da ditadura, casamos no religioso, na casa de meus pais, em 28 de outubro de 1972, eu como Mariluce, ele como Cássio. Exatamente um ano depois, Gildo seria assassinado. E, ao lado das buscas pelos rastros e pistas dos fatos verdadeiros, o por quê? invadiu minha vida para sempre. Eles são muitos, na verdade. E o mais recente é: por que, em nosso país, não foi possível praticar, após o fim da ditadura, a verdadeira justiça de transição, expandir efetivamente a democracia, e aplicar os antídotos eficazes que destruiriam a gosma abjeta de onde medram os vermes do fascismo, das milícias, do racismo, do obscurantismo, do machismo e tantos outros?
Por quê?
Mariluce Moura é graduada em jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestra e doutora em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e tem um pós-doc pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Reintegrada na UFBA em 2015 pelo Ministério da Justiça/Comissão da Anistia, quarenta anos após a demissão por perseguição política da ditadura, tornou-se professora titular da instituição, da qual se aposentou em março de 2020.