Por uma mídia livre
A luta pela recuperação da palavra crítica é latino-americana e internacional. Em janeiro de 2009, o Pará sediará mais uma edição do Fórum Social Mundial. Devemos trabalhar desde já pela construção de uma agenda de debates que aponte para propostas concretas para a democratização da comunicação
A caminhada para a realização do primeiro Fórum de Mídia Livre começou no dia 8 de março de 2008 com um encontro que reuniu 42 jornalistas, professores e profissionais da área da comunicação em São Paulo. Ele encontro serviu como ponto de partida para uma série de outras reuniões em diversas capitais do país, mobilizando centenas de pessoas em torno da idéia da criação de um movimento nacional de mídia livre, reunindo veículos independentes e alternativos, movimentos sociais, professores e estudantes de comunicação. Esse processo nasceu acompanhado de um diagnóstico consensual: a concentração dos meios de comunicação no Brasil, na América Latina e no mundo representa um dos mais importantes desafios para o presente e o futuro da democracia.
A transformação dos veículos de comunicação em grandes empresas, com interesses que vão muito além daqueles propriamente midiáticos, fez da informação definitivamente uma mercadoria, regida pela lógica que comanda o mundo do lucro. De forma progressiva, ela deixou de ser um bem e um serviço público. Isso se reflete diretamente na qualidade dos noticiários que assistimos todos os dias nos jornais, rádios, televisões e sites. A economia passou a reinar nesses espaços e todo o resto começou a ser tratado de forma secundária, como um espetáculo. Esse fenômeno é mais dramático na política, onde a cobertura tornou-se, no mais das vezes, uma exploração de fofocas, intrigas e trivialidades. As pautas e os espaços prioritários passaram a ser definidos pelos interesses financeiros estratégicos dessas empresas, impactando a qualidade da informação oferecida ao público. As manipulações, as mentiras e a banalização de acontecimentos importantes passaram a fazer parte da rotina da grande imprensa brasileira e mundial.
Não se trata de um debate restrito aos profissionais do setor, mas de uma agenda de toda a sociedade. É o direito de dispor de uma informação de qualidade que está em jogo. Por isso, é preciso começar a nos mobilizar já. Um dos primeiros passos é o fortalecimento da articulação política entre todos os setores preocupados com a democratização da mídia no Brasil. Mais do que declarações genéricas de apoio, precisamos construir iniciativas concretas que mostrem à população a natureza do problema e como ele influencia sua vida diária. Iniciativas como a construção de uma sólida TV pública no país, que começa a ser implementada agora. A promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção, a difusão da cultura nacional e o estímulo à produção regional e independente são condições básicas para a democratização do Estado brasileiro.
O alerta dos intelectuais argentinos
No dia 14 de maio deste ano, um grupo de mais de 750 intelectuais argentinos lançou uma carta aberta alertando para o crescimento de um clima golpista no país com participação ativa dos grandes meios de comunicação. O documento advertiu também os governos latino-americanos para uma batalha simbólica necessária e que não está sendo travada. Esta manifestação identifica bem um problema estratégico relacionado à atuação da mídia em toda a América Latina e o contexto político argentino fornece a moldura da advertência, que é pertinente à realidade do continente e merece toda a nossa atenção. Os signatários do documento divulgado em Buenos Aires definiram do seguinte modo o contexto da crise em seu país, explicitada a partir da mobilização do setor ruralista contra o governo de Cristina Fernández Kirchner:
“Como em outras circunstâncias de nossa crônica contemporânea, hoje assistimos em nosso país a uma dura confrontação entre setores econômicos, políticos e ideológicos historicamente dominantes e um governo democrático que tenta implementar determinadas reformas na distribuição de renda e adotar estratégias de intervenção na economia. A oposição às retenções – compreensível objeto de litígio – deu lugar a alianças que chegaram a lançar a ameaça da fome para o resto da sociedade e questionamentos sobre o direito e o poder político constitucional do governo de Cristina Fernández para efetivar seus programas de ação, quatro meses depois de sua eleição pela maioria da sociedade.”
O que essa realidade tem a ver conosco? Tem a ver na medida em que se refere a processos que nos são bastante familiares. O alerta fala sobre uma “barbárie política diária da mídia”:
“Na atual confrontação em torno da política de retenções, desempenham papel fundamental os meios de comunicação mais concentrados, tanto audiovisuais como gráficos, de altíssimos níveis de audiência, que estruturam diariamente a realidade dos fatos, geram ‘o sentido’ e as interpretações e definem ‘a verdade’ sobre atores sociais e políticos a partir de variáveis interessadas que excedem a busca de audiência. Meios que gestam a distorção do que ocorre, que difundem o preconceito e o racismo mais espontâneos, sem a responsabilidade de explicar, informar adequadamente nem refletir com ponderação as mesmas circunstâncias conflitivas e críticas sobre as quais operam”. E o documento prossegue: “Esta prática de autêntica barbárie política diária, de desinformação e discriminação, consiste na gestação permanente de mensagens formadoras de uma consciência coletiva reacionária. Privatizam as consciências com um senso comum cego, iletrado, impressionista, imediatista, parcial. Alimentam uma opinião pública de perfil anti-político, que desacredita a existência de um Estado democraticamente interventor na luta entre interesses sociais.”
Diante dessa prática de “barbárie diária de desinformação e discriminação”, os intelectuais colocam como desafio para toda a América Latina, ou seja, para todos nós, “a recuperação da palavra crítica nos planos das práticas e no interior de uma cena social dominada pela retórica dos meios de comunicação e pela direita ideológica de mercado”.
Esse é um dos principais desafios que está colocado diante desse movimento por uma mídia livre no Brasil. Não se trata de uma luta que se encerra nas fronteiras nacionais. Tampouco de um debate que se limita à reivindicação por critérios democráticos na distribuição de verbas públicas para o setor de comunicação. Há uma dimensão política nesta disputa que envo
lve um enfrentamento com fortes estruturas de poder político e econômico ligadas ao grande capital financeiro. É disso que se trata. A luta pela recuperação da palavra crítica é uma luta latino-americana e internacional. É importante ter isso em mente no momento em que realizamos o primeiro Fórum de Mídia Livre no Brasil. Nossos problemas não são exclusividades nossas. Fazem parte de uma realidade internacional em que a chamada grande mídia não é um feudo dissociado de outras estruturas de poder.
Cabe a nós, portanto, trabalhar pela construção de uma articulação latino-americana e internacional em torno da proposta de uma mídia livre. Temos uma oportunidade histórica para fazer essa luta avançar. Em janeiro de 2009, Belém do Pará sediará mais uma edição do Fórum Social Mundial. E a agenda da mídia e da comunicação novamente estará presente em seus debates. Podemos, a partir de agora até o final do ano, trabalhar pelo fortalecimento dessa articulação e pela construção de uma agenda de discussões que aponte para propostas concretas para a democratização da comunicação e da informação. Esse é um dos principais desafios que está em nossas mãos.
*Joaquim Ernesto Palhares é diretor da Agência Carta Maior.