Porto Alegre e suas contradições eleitorais
Não há dúvida de que Porto Alegre fez uma virada à direita no século XXI, mas é preciso pontuar dois aspectos: há um eleitorado de esquerda e centro-esquerda expressivo na cidade e o município – assim como o estado do Rio Grande do Sul – nunca elegeu governadores e prefeitos da extrema direita
Porto Alegre é uma cidade eleitoralmente complexa. Nas últimas cinco eleições presidenciais, desde a primeira vitória de Lula até a de Bolsonaro, seus eleitores votaram majoritariamente, por duas vezes, em candidatos vencedores, por coincidência com a mesma proporção de votos no segundo turno. Em 2002, Lula obteve 56,23%; em 2018, Bolsonaro teve 56,84%. As demais eleições na capital gaúcha deram vitória aos perdedores: em 2006, Alckmin obteve 53,08%; em 2010, Serra teve 55,93%; e, em 2018, Aécio teve 53,93%.
Desavisadamente, seria possível concluir que a votação de 2002 foi um descuido desta população conservadora, que se entusiasmou com a força do PT no Brasil. O fenômeno, contudo, é mais complexo. A cidade foi a única capital do país que teve, por dezesseis anos seguidos, a partir de 1989, prefeitos do PT: Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e novamente Tarso Genro.

Na primeira década do século XXI, apesar dos resultados adversos para a esquerda nas eleições presidenciais, o voto para governador não repetiu resultado semelhante na capital. Em 2002, o estado elegeu o PMDB, mas o PT ganhou em Porto Alegre (50,1% versus 49,8%). Em 2006, o PSDB se elegeu, mas perdeu em Porto Alegre por centésimos para Olívio, do PT. Já em 2010, Tarso se elegeu governador do estado em primeiro turno, com 51,04% dos votos da capital, contra 26,1% do candidato do PMDB. A partir de 2014, o PT passou a mostrar fragilidades cada vez maiores. Nesse ano, Tarso não se reelegeu e, em 2018, a esquerda não chegou ao segundo turno.
Também nas eleições para prefeito, após dezesseis anos de hegemonia, a esquerda não chegou mais ao poder. As quatro eleições municipais que se sucederam foram ganhas por candidatos de partidos de centro: em 2004 e 2008, venceu Fogaça, do PMDB, nas duas vezes em disputa contra o PT. Em 2012, Fortunati, no PDT, ganhou em primeiro turno, com 65,22% dos votos e, em 2016, pela primeira vez desde 1988, a esquerda sequer chegou ao segundo turno.
Não há dúvida de que Porto Alegre fez uma virada à direita no século XXI, mas é preciso pontuar dois aspectos: há um eleitorado de esquerda e centro-esquerda expressivo na cidade e o município – assim como o estado do Rio Grande do Sul – nunca elegeu governadores e prefeitos da extrema direita, não embarcando em candidaturas do tipo Witzel no Rio, Zema em Minas Gerais ou Moisés em Santa Catarina.
Visto o quadro formado pelas eleições majoritárias, vale chamar a atenção para a composição da Câmara Municipal de Porto Alegre. Tomando as três últimas legislaturas, é expressivo o aumento de vereadores de partidos de direita. De 2012 para 2016, a esquerda e o centro perderam 33% de sua representação, enquanto os partidos de direita aumentaram 41%.
Por isso, ao pensar na virada para a direita da cidade, uma pergunta se impõe: como os candidatos de centro e de direita à prefeitura, em 2020, se relacionarão com o governo Bolsonaro?
Na nominata de treze candidatos, tirando Manuela d’Ávila, da coligação PCdoB-PT, Fernanda Melchionna, do Psol, Juliana Brizola, do PDT, Luiz Delvair, do PCO, e Julio Flores, do PSTU; os demais candidatos, todos homens, representam partidos de centro ou de direita. Três deles têm trajetórias curiosas, pois saíram de partidos de esquerda e agora são candidatos da direita. João Derly foi vereador pelo PCdoB e é candidato pelo PR. Rodrigo Maroni foi vereador pelo PCdoB, passou pelo PT, Psol, PR, Podemos e agora é candidato do Pros. José Fortunati é o mais surpreendente, pois foi líder sindical dos bancários na juventude, fundador do PT, prefeito eleito pelo PDT de Porto Alegre e é candidato pelo PTB, partido de Roberto Jefferson, um dos grandes apoiadores do governo Bolsonaro.
Representam partidos de centro o atual prefeito Marchezan Junior,1 do PSDB, e o deputado estadual Sebastião Mello, do MDB. Aparece ainda, em uma posição muito secundária, o candidato do PV, Montserrat Martins.
Marchezan e Mello, que já disputaram um segundo turno em eleições municipais passadas, devem se manter na mesma toada de centro. Nenhum se arriscará defendendo a cloroquina ou negando a pandemia. O atual prefeito tem se esforçado para passar a imagem de preocupado com a Covid e de seguidor de normas científicas. Mello, por sua vez, está em um MDB gaúcho, mais distanciado do bolsonarismo do que o nacional.
Cinco candidatos estão no campo estrito da direita, dois sem nenhuma expressão política: João Derly (PR) e Rodrigo Maroni (Pros). Outros três representam uma direita com tradição política: Fortunati (PTB), Gustavo Paim (PP), que foi vice-prefeito de Marchezan, e Valter Nagelstein (PSD), um vereador de muitas legislaturas.
Entre eles, há muitas diferenças: o primeiro foi prefeito pelo PDT e provavelmente explorará a condição de ex-prefeito durante a Copa do Mundo. Ainda há na cidade obras inacabadas da Copa, mas ele enfatizará suas realizações. Mesmo em um partido que hoje é íntimo do presidente da República, Fortunati deverá tentar se afastar do governo federal para manter um eleitorado que supõe cativo, ou mesmo nostálgico, de seu tempo de militante de esquerda.
Os outros dois candidatos, Paim e Nagelstein, em debates e na propaganda política, se declaram de direita. O primeiro, autodeclarado de centro-direita, fala em lei e ordem, defende as escolas cívico-militares e a cloroquina. O outro define-se como o candidato mais à direita e foi protagonista de um escândalo, no início do ano, quando postou uma coreografia caseira do “meme do caixão”, com sua família dançando, com máscaras nas mãos, enquanto simulava o cortejo fúnebre de alguém que havia morrido de Covid.2 Na propaganda eleitoral, repete o mantra bolsonarista de que a saúde é tão importante quanto a economia. Não cita o presidente, mas se declara repetidamente um conservador nos costumes. Em diversas oportunidades, diz que é casado com a mesma mulher há 27 anos, com a qual tem todos os seus filhos. Isso soa irônico, pois Bolsonaro, o conservador, é casado pela terceira vez e tem filhos com todas as esposas.
Os dois candidatos apostam no chamado bolsonarismo de raiz e em uma classe média porto-alegrense que foi amplamente bolsonarista nas eleições de 2018, mas também pró-Sergio Moro e anti-PT, o que complica bastante as pretensões de quaisquer dos candidatos no atual cenário.
Escrevo faltando quase um mês para o primeiro turno. Neste momento, parece-me que a tendência é que esses candidatos busquem amealhar votos na direita conservadora da cidade, sem, no entanto, associarem-se fortemente a Bolsonaro, que vem perdendo espaço entre os setores médios “educados” de Porto Alegre. Se um deles chegar ao segundo turno, o que é bem pouco provável, a história será outra e a aproximação com o nome Bolsonaro poderá ser diferente. Isso depende, inclusive, da disposição do próprio presidente de entrar nas disputas municipais fora do eixo Rio-São Paulo, onde tem sua base política e interesses privados a defender.
*Céli Pinto, cientista política, é professora emérita da UFRGS.
1 Machezan Junior está passando por um processo de impeachment na Câmara Municipal. Como tem franca minoria na casa, é possível que perca o mandato, não podendo continuar como candidato.
2 Há inúmeras notícias nas redes sociais e na imprensa sobre esse vídeo e ele pode ser visto em clickpb.com.br. Após a repercussão, o vereador pediu desculpas.