Pós-neoliberalismo: Reflexões sobre os governos progressistas e as resistências possíveis
Uma vitória dos governos de esquerda foi a problematização das estratégias de despolitização instaladas nos anos 1990, que serviram para cimentar as estruturas neoliberais. Trata-se de uma mudança na forma de entender o papel do Estado e das políticas públicas, que, durante a década de 90, ficaram resumidas ao consenso tecnocrático e convertidas em veículo de desregulação, flexibilização e liberalização
A “guinada à esquerda” e a “onda rosa” já são termos consolidados na análise política para se referir à onda eleitoral de partidos de esquerda, que chegaram aos cargos presidenciais em toda a América Latina. Considera-se que esta onda começou com Hugo Chávez na Venezuela, em 1999, seguida rapidamente pelas vitórias eleitorais de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, em 2002, de Néstor Kirchner na Argentina, em 2003, de Tabaré Vásquez no Uruguai, em 2005, de Evo Morales na Bolívia, em 2006 e de vários outros candidatos progressistas e da centro-esquerda, durante a mesma década. Em 2011, dois terços da população do continente viviam sob um governo progressista.
Esses governos foram eleitos e apoiados por um eleitorado em aberta oposição à herança neoliberal e aos seus nefastos efeitos nas instituições, na economia e nos tecidos sociais da região. Já no poder, avançaram nas reformas institucionais e sociais que, pela primeira vez em muito tempo, contribuíam para reduzir os alarmantes índices de pobreza e de desigualdade que vinham aumentando após a introdução de modelos neoliberais nos anos 1980 e 1990. Falava-se da recuperação da política, da década “ganhada”, de outros mundos possíveis, do bem-viver, do socialismo do século XXI.
No entanto, como bem sabemos, nos últimos anos esta tendência decaiu e os governos progressistas foram perdendo o apoio eleitoral nas mesmas bases que os levaram ao poder. Entre as convocações para uma autocrítica da esquerda frente à ascensão de governos conservadores e das novas direitas, circula com frequência a chamada “tese da cooptação”: a ideia de que forças de esquerda capturaram e desmotivaram a própria mobilização social que os havia apoiado.
Não obstante, vale a pena refletir sobre algumas dimensões em que os governos progressistas também prepararam o solo para as novas resistências latino-americanas e suas demandas emergentes.
Conflito de Modelos: o pós-neoliberalismo
Redução dos índices de pobreza e de desigualdade, expansão do acesso à saúde, introdução de programas inovadores como “um computador por criança” (como o Conectar Igualdad na Argentina e o Ceibal, no Uruguai) e programas massivos de apoio à renda por família (como o Bolsa Família no Brasil ou os Programas Jefes y Jefas de Hogar e a Asignación Universal por Hijo na Argentina. É longa a lista de avanços materiais tangíveis conseguidos pelos governos da guinada à esquerda. No entanto, dizem alguns especialistas que estas conquistas foram possíveis apenas sob duas condições essenciais: o chamado “boom das commodities” da década de 2000-2010, e uma temporada especialmente próspera para as exportações do setor primário em escala global, das quais dependem, em grande medida, as economias da região.
Assim se configurou o termo “Pós-neoliberalismo” para explicar esta combinação de avanços progressistas: expansivos e de aspiração universal no âmbito das políticas sociais, a par das estratégias mais tradicionalmente liberais e moderadas na política econômica. Deste modo, mantiveram-se em pé modelos dependentes dos mercados internacionais, e que não representaram um questionamento à herança neoliberal, nem ao sistema capitalista global.
A ideia de pós-neoliberalismo dá nome a este conjunto de estratégias híbridas e de manobras conjunturais de governos, que apontaram para a construção de um Estado presente, seguindo os ditames dos estados de bem-estar social do norte global, sem nenhum dos recursos institucionais— ou econômicos— dos países mais privilegiados. Mas o termo representa, sobretudo, uma categoria interpretativa relevante, porque retoma o verdadeiro peso da herança neoliberal na região, que não só marcou as crises econômica e política dos anos 1990, mas também os espaços de negociação e frentes de ação dos governos que as seguiram.
Assim, junto com os avanços, houve necessariamente concessões e limitações: a falta de reforma impositivas e sistemáticas que dessem fundamento a um sistema fiscal redistributivo e sustentável, o reconhecimento dos direitos de comunidades originárias simultâneo a invasivos projetos neo-extrativistas, a aprovação de uma legislação pioneira em matéria de direitos LGBT+ enquanto se negou sistematicamente – e até há pouquíssimo tempo – um debate aberto sobre a autonomia das mulheres sobre seus corpos e o acesso ao aborto.
A persistência do neoliberalismo na região torna-se mais evidente com a chegada das “novas direitas” conservadoras ás presidências, pouco antes ocupadas por governos progressistas: Macri na Argentina (2015-2019), Moreno no Equador (2017-2021), Kuczynski no Peru (2016-2018), Áñez na Bolívia (2019-2020) e, claro, Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2019-2022), no Brasil. Com eles, vieram a instalação não só de medidas econômicas desfavoráveis aos setores populares e à integração regional, mas também – e com força renovada – discursos racistas, misóginos, retrógrados e autoritários.

Conquistas e dívidas simbólicas
Se aceitamos que o legado do pós-neoliberalismo é híbrido em termos de reformas sociais, institucionais e econômicas, o que poderíamos dizer sobre as conquistas e dívidas simbólicas do período progressista?
Uma grande vitória das últimas duas décadas se pode resumir na frase esperançosa da “recuperação da política”, ou em termos acadêmicos, da repolitização da política social (como instrumento de melhoria das condições de vida dos setores populares), da economia (como espaço de luta pela soberania e pela autodeterminação da região) e, sobretudo, do Estado. A repolitização do Estado significa interpretá-lo como aparato regulador que pode – e deve – funcionar a favor dos desprotegidos. O Estado como lugar central de escuta e mediação de conflitos sociais, de articulação de respostas e de alianças entre setores populares.
Em outras palavras, uma vitória dos governos de esquerda foi a problematização das estratégias de despolitização instaladas nos anos 1990, que serviram para cimentar as estruturas neoliberais. Trata-se de uma mudança na forma de entender o papel do Estado e das políticas públicas, que, durante a década, ficaram resumidas ao consenso tecnocrático e convertidas em veículo de desregulação, flexibilização e liberalização. Trata-se de recuperar o mesmo Estado que, em décadas neoliberais, converteu-se em objeto de desconfiança e no alvo dos protestos massivos, refletido na histórica demanda de “fora todos”.
Um exemplo desta mudança simbólica pode ser vista, por exemplo, na adoção do discurso de direitos a nível institucional. Sob os governos progressistas, cimentou-se o enquadramento das problemáticas sociais, necessidades e desigualdades como a) problemas essencialmente políticos e, por tanto b) de responsabilidade estatal, que c) devem ser enfrentados por meio da regulação e do investimento público. Cada um destes pressupostos havia sido negado pelo neoliberalismo. Converter necessidades (como o acesso à saúde) em direitos (a cobertura universal), e grupos vulneráveis (como os casais LGBT+) em sujeitos de direito (concedendo-lhes capacidade matrimonial), é uma conquista dos progressismos da região, que vai além de reformas concretas.
O discurso dos direitos produz, além de tudo, uma diferença essencial na forma como os cidadãos podem interpretar o papel do Estado. É uma linguagem que não foi inventada por partidos ou coalizões de governo. Ao contrário, já vinha circulando e sendo promovida nos espaços dos movimentos sociais — desde os espaços locais até o nível internacional. Sua adoção se justifica, às vezes, com a própria “tese da cooptação”, ou melhor: a ideia de que os progressismos se apropriaram dos discursos e das práticas dos movimentos populares, incorporando-os nas estruturas institucionais que serviram para desativar e desanimar a crítica.
Talvez o caráter híbrido do modelo pós-neoliberal se manifeste, então, também na dimensão simbólica. É uma interpretação possível. No entanto, a mudança fundamental que significou a adoção de certas categorias para nomear a realidade por parte dos governos progressistas transcende suas intenções e seus mandatos. Isto se vê, por exemplo, no reconhecimento das desigualdades estruturais como fundamento, e não como objetivo, da intervenção estatal em matéria social. Há uma diferença essencial em se considerar a desigualdade como um dado de fato, como realidade dada, e justificar o gasto público social como assistência para garantir a sobrevivência dos setores de renda mais baixa e – de quebra, incorporá-los ao mercado de consumo, como acontece sob as reformas neoliberais. Não é, certamente, o mesmo tratar a desigualdade como a causa da pobreza e, assim, ampliar o gasto social como resultado da responsabilidade das instituições frente a esta pobreza.
As conquistas das últimas duas décadas, dos governos e das mobilizações populares, vão além das melhorias nos índices (que se demonstraram tão essenciais como frágeis). Não esquecendo suas limitações e dívidas com a democracia, com a institucionalidade e com os movimentos sociais, vale a pena refletir sobre o que o ciclo progressista nos deixou para organizar as resistências às novas direitas do nosso tempo. Um argumento possível é que estes governos combateram o status quo neoliberal não somente através de políticas públicas, mas fundamentalmente através do discurso e da circulação de categorias que permitem interpretar a realidade de outros modos, incluindo o papel do Estado e suas responsabilidades.
Imaginar projetos políticos-institucionais
A recuperação do Estado não significou, e possivelmente não pode significar, uma tradução instantânea e fiel das demandas sociais. Projetos político-institucionais avançaram vulneráveis e incompletos. Foram reconhecidos direitos, mas faltaram recursos e infraestrutura para transformá-los em realidade; foram denunciados os efeitos dos mesmos modelos econômicos que, visível ou disfarçadamente, continuaram; subsistiram defeitos organizacionais que impediram o tratamento sério da corrupção, o nepotismo e o machismo dentro dos próprios partidos e forças progressistas.
No entanto, é possível que o legado mais importante da guinada à esquerda para as resistências atuais ao neoliberalismo não tenham sido as reformas sociais, nem as mudanças institucionais. Deu-se início a um processo de mudança no senso comum, nas formas de entender as relações entre Estado e sociedade, nas categorias de interpretação que podem ser traduzidas como instrumentos legais para requerer direitos. É um legado de expansão da imaginação política: outros mundos são possíveis, mesmo se esses governos não foram capazes de produzi-los.
A evidência definitiva sobre a centralidade das palavras com que nominamos e interpretamos a realidade pode ser vista nas conjunturas atuais, que desloca os limites do aceitável no discurso público e na mídia, quando candidatos racistas e misóginos assumem cargos públicos, reproduzem discursos de ódio e exaltam clivagens sociais. É aí onde se incentiva a polarização e se disputam as narrativas sobre a constituição do corpo social.
Não existe democracia sem conflito, nem conquistas sociais definitivas – já que implicam sempre redução de privilégios arraigados nas estruturas sociais e institucionais da região. Poderão os novos progressismos, mais moderados e ainda mais híbridos (como o do AMLO no México ou o de Alberto Fernández, na Argentina) superar os rachas e a polarização decorrentes dos movimentos pendulares entre neoliberalismo e pós-neoliberalismo? O que, sim, sabemos é que, ao transformar o Estado no lugar de articulação de resistências e no interlocutor que já não pode ignorar as demandas sociais, os governos progressistas contribuíram para superar o projeto de despolitização dos anos 1990. A repolitização, a volta ao conflito, à necessidade do diálogo e da articulação de interesses já estão demonstrando ser uma ferramenta essencial para a reorganização das resistências frente aos neoliberalismos do século XXI.
Melisa Ross é pesquisadora do WZB Berlin Social Science Center e doutoranda em ciência política na BGSS Berlin Gaduate School of Social Science da Universidade Humboldt em Berlim, Alemanha.
(Tradução por Victor Moreto)