Preservar monumentos da barbárie para a elaboração de erros
O eco por aqui das insurgências antirracistas visaram os monumentos que exaltam sobretudo bandeirantes
O cruel assassinato de Georg Floyd – cruel por ter sido explícito e não por ser fato isolado –, nos Estados Unidos, desencadeou uma série de manifestações e protestos contra o racismo mundo afora. Assim como o fogo usado pelo tunisiano Mohamed Bouazizi para se suicidar se alastrou pelos países árabes, o movimento antirracismo tem se espalhado por diversos países. Ainda aguardamos a duração dessa nova Primavera e quais serão suas consequências. De qualquer forma, estamos presenciando grupos sociais em localidades distantes se aproximando por pautas que se opõem à barbárie vivenciada historicamente. A aproximação se dá pela coincidente violência sofrida e mesma forma de resistência ao longo do tempo, mas também agora pelos métodos de insurgência.
No Brasil apesar da condição singular do racismo, foi a asfixia de Floyd que pautou o debate público sobre a condição dos negros. É necessário lembrar que o Brasil foi o destino do maior número de negros sequestrados da África para serem escravizados e o último país a abolir esse sistema de trabalho desumanizador. Após a abolição, os negros nunca receberam nenhum tipo de indenização ou reparação pela condição que lhes foi imposta. Para agravar esse panorama, teorias sobre a miscigenação despolitizam e suavizam o processo de colonização, sendo reproduzida até hoje a mitologia da democracia racial ou da redenção dos negros a partir do contato com os brancos. Dessa forma, a violência do racismo é duplicada ao ser discursivamente atenuada.
Se nós brasileiros temos motivos de sobra para discutir a necropolítica estatal e desvelar as estatísticas que demostram como a vida dos negros no Brasil são menosprezadas, o eco por aqui das insurgências antirracistas visaram os monumentos que exaltam sobretudo bandeirantes.
Apesar dos pertinentes argumentos tanto para a preservação como para a derrubada dos tais monumentos, quero contribuir para o debate com mais alguns pontos.
Primeiramente, mais importante do que refletir sobre a figura das pessoas representadas nos monumentos é olhar criticamente a sociedade ou o grupo social que decidiu monumentalizar tal personalidade. Mais profundo do que pessoalizar a liderança genocida é compreender para desmantelar o grupo social que o sustenta. Derrubar o monumento é se contrapor aos feitos daquela pessoa representada, mas não elimina as condições que levaram a se erigir tal monumento. A discussão sobre o monumento, se o derruba ou se o preserva, deve superar a pessoalização e incidir sobre a reflexão dos valores sociais que permitiram a valorização daquela barbárie. Eles que devem ser combatidos. Apesar da representatividade simbólica de derrubar a estátua de um traficante de escravos, isso não resolve os problemas da escravidão muito menos supera as mentalidades e estruturas escravocratas.
Com isso, secundamente, chega-se à questão de se elaborar o passado. Pegando emprestado um pressuposto da psicologia, derrubar os monumentos, apagar a história, ignorar os valores de sociedades anteriores pode significar, em algum momento, o retorno do trauma que foi recalcado. Não refletir criticamente sobre o que se passou pode acarretar a repetição dos erros cometidos. Não julgar crimes da ditadura, por exemplo, abre espaço para pessoas pedirem a sua volta, sem saber o que isso significa, ou tendo uma visão parcial dela.
Inspirado em Theodor Adorno, os patrimônios deveriam ter o objetivo de contribuir para que as atrocidades do passado não se repitam. Preservar monumentos que representam a barbárie poderia ter essa função, mas deveriam ser ressignificados: passariam de monumentos de cultos e exaltação para objetos de reflexão crítica. Mas para isso é preciso que essa insurgência seja acompanhada da defesa do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Brasileiro, como órgão da promoção do patrimônio brasileiro, e da defesa da profissionalização da função de historiador. Ambos pontos não estão na pauta insurgente e são atacados pelo atual governo federal ao propor uma pessoa sem qualificação para direção do instituto e recusando a regulamentação da profissão de historiador.
João Lorandi Demarchi é historiador e mestre em Geografia Humana pela USP.