Privatização ameaça território sagrado
Em 5 de junho, o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Junior (PSDB), apresentou edital prevendo a concessão da administração do Mercado Público, por 25 anos, à iniciativa privada. A medida ameaça um espaço sagrado de religiões afro-brasileiras, um território repleto de histórias, de relações surpreendentes entre paredes e caminhos, mercadorias, divindades e seres humanos
Pai Tiago de Bará gravou uma live improvisada, em sua própria casa, no dia 4 de junho deste ano. Visivelmente nervoso, ele advertia: “Nós podemos perder o nosso espaço sagrado […]. A gente não está falando só do Bará do Mercado. Todas as paredes, todos os portais, todos os caminhos internos e externos do Mercado Público são espaços sagrados desde quando ele não existia. Desde quando as ganhadeiras vendiam seus quitutes para comprar a alforria dos seus maridos, dos seus parentes, dos seus amigos”.
Pai Tiago preside uma entidade destinada à proteção das religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul, a Associação Independente em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (Asidrab), além de ser pai de santo. Sua fala era motivada pelo lançamento iminente de um edital que concederia a administração do Mercado Público da capital gaúcha, por 25 anos, à iniciativa privada. De fato, o prefeito Nelson Marchezan Junior (PSDB) apresentaria esse edital, por videoconferência, no dia seguinte.
Ainda que o documento de concessão mencionasse que o Mercado é um patrimônio histórico municipal e citasse as religiões afro-gaúchas em um de seus anexos, a visão desse mesmo lugar que sua leitura trazia era oposta àquela do religioso. Pai Tiago faz questão de qualificar todo o Mercado como um espaço sagrado, um território repleto de histórias, de relações surpreendentes entre paredes e caminhos, mercadorias, divindades e seres humanos. Já o Mercado do edital e das declarações oficiais da prefeitura é sobretudo um espaço físico.
De meados de 2019 para cá, diversos setores da sociedade civil (dos afrorreligiosos à OAB-RS e aos permissionários, os comerciantes do Mercado) e da política (do poder legislativo municipal e estadual ao Ministério Público, o Tribunal de Contas e os serviços de patrimônio regional e nacional, Iphae e Iphan) associaram-se, tendo em vista a patrimonialização definitiva do prédio que abriga o Mercado Público e de algo que está bem no meio dele, o Bará do Mercado, do qual falava Pai Tiago. Essa união de pessoas e instituições tão diversas foi impulsionada pela intenção de prevenir as possíveis descaracterizações ou mesmo danos a esse edifício, seu entorno e, especialmente, à memória da população negra local, que poderiam decorrer da concessão.
Em setembro de 2019, o prefeito confirmou sua intenção de lançar o edital. Depois de algumas consultas públicas, convocadas para discuti-lo, foi lançada, no dia 4 de novembro, uma Frente em Defesa do Mercado Público na Câmara de Vereadores da cidade. Em março deste ano, houve a última audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado, antes do agravamento da crise sanitária causada pelo coronavírus. Depois disso, por conta da pandemia, Marchezan alterou o funcionamento do Mercado, muitas vezes sem consulta a seus trabalhadores, por meio de diversos decretos especiais.
Desde o lançamento do edital, a agitação se intensificou nas redes sociais, com destaque para a atuação da Asidrab, dos permissionários, da deputada estadual Sofia Cavedon (PT) e da frente encabeçada pelo vereador Adeli Sell (PT). A batalha judicial e a tentativa de patrimonializar de uma vez por todas esse espaço sagrado, porém, estão longe de terminar.
O coração da cidade
O Mercado Público é, realmente, central para a vida da capital gaúcha sob muitos aspectos – econômico, popular, religioso etc. Sua construção, que em outubro completa 151 anos, se confunde com a história de Porto Alegre, fundada como uma pequena freguesia no final do século XVIII e elevada à capital de província por conta das rotas comerciais que começaram a passar por ali. O Mercado, localizado na zona portuária de uma cidade que tem porto até em seu nome, logo acabou se tornando o coração dessa povoação com ares de entreposto mercantil.
Além de pessoas e mercadorias, porém, muitas lembranças circulam aquele espaço. Elas fazem parte da história oficial porto-alegrense e também perpassam suas inúmeras memórias afetivas e familiares. Para a comunidade negra local, o Mercado Público é ainda um dos territórios de referência da área central da cidade. A despeito do branqueamento da identidade gaúcha, que convence até mesmo alguns de seus artistas e intelectuais,1 Porto Alegre foi construída pelas mãos de milhares de escravizados.
No antigo Largo do Paraíso, antes mesmo de o Mercado existir, as chamadas pretas-minas e uma multidão de ambulantes negros vendiam de tudo, de quitutes e ervas a amuletos. Por ali, entre as docas do carvão e das frutas, passavam também os cativos africanos ou brasileiros recém-chegados à cidade, vindos dos portos do Rio de Janeiro ou de Paranaguá.
Décadas depois, toda essa região central continuava sendo ocupada por uma expressiva população afrodescendente que, mais tarde, passaria por dolorosos processos de deslocamento forçado e invisibilização. Esses processos foram (e, de certa forma, ainda são) contínuos e sempre vieram acompanhados de políticas públicas conservadoras, que invariavelmente se colocavam do lado da modernidade, da civilização ou da higiene. Era preciso, aos olhos dos homens de bem do passado e dos especuladores imobiliários de hoje, limpar o centro, respectivamente, de seus costumes africanizados e de sua população empobrecida.
No entanto, essa história não ficou no passado. Como diria a mãe de santo Yá Vera Soares de Oyá, na mencionada audiência pública do mês de março: “Nós tivemos lutas incessantes por essa questão de território. E, no olhar da matriz africana, a questão do nosso sagrado, que centraliza todo um comércio, que movimenta um capital a partir dos povos tradicionais que compram e gastam. E perdura a renda per capita daquilo ali. […] Mais uma vez querem tirar nossa identidade. A identidade do preto, da tradição africana que perdura neste estado. Porque o Mercado Público está localizado em Porto Alegre, mas ele hegemoniza 60 mil casas tradicionais que têm no estado do Rio Grande do Sul e que, de uma forma ou de outra, vêm, sim, à capital para saudar aquele sagrado”.
Yá Vera refere-se ao ritual do passeio. Trata-se de uma peregrinação que marca o final da iniciação dos adeptos do batuque, importante religião de matriz africana do Rio Grande do Sul (ao lado da umbanda, do candomblé etc.) e a única que tem sua origem nesse estado.
Nesse ritual, o novo adepto, cercado por outros membros de seu terreiro, vai até o Mercado Público, uma igreja – normalmente a do Rosário, também no Centro Histórico – e, finalmente, a uma praia – em geral, o Cais Mauá, bem em frente ao Mercado – para saudar as entidades das águas, em especial a deusa Oxum. Essa divindade, junto ao orixá Bará, protege toda a cidade de Porto Alegre.
O passeio devolve ao tempo do instante e do agora a presença negra maciça que existiu nesses lugares antes de aqueles processos de desterritorialização e gentrificação os atingirem. Essa peregrinação – que consagra o novo filho de santo, mas também renova o axé, a força vital, da própria cidade – é marcada por uma percepção do espaço e do tempo própria do batuque. Fazê-la caber em algum agendamento, credenciar os terreiros que podem ou não realizá-la ou instituir qualquer tipo de regra extrarreligiosa, como provavelmente acabaria acontecendo caso o Mercado Público fosse administrado pela iniciativa privada, seria um desrespeito com os batuqueiros, que estão entre os principais guardiões da história negra da cidade.

O Bará do Mercado
Desde o início da pandemia, as atividades dos permissionários sofreram severas restrições por parte da prefeitura. O Mercado Público passou todo o mês de julho, por exemplo, de portas fechadas. A Covid-19, que de fato tem se espalhado velozmente no Rio Grande do Sul, justificaria tais ações. Para eles, porém, as medidas foram aplicadas de forma desigual, uma vez que outros estabelecimentos comerciais puderam funcionar com menos limitações. A propósito, as quatro floras, lojas especializadas em produtos afrorreligiosos, que ficam à esquerda de cada uma das quatro portas do Mercado, foram obrigadas a seguir protocolos especialmente rígidos…
Por ora, o estabelecimento tem funcionado com apenas duas dessas portas abertas. Para os religiosos de matriz africana da cidade, esse não é um mero detalhe. O ritual do passeio acontece por conta do assentamento de Bará que existe no centro do prédio. Na verdade, esse orixá vive ali. No batuque, assim como em outras religiões afro-brasileiras, a força vital (axé) dos fiéis e dos próprios deuses deve ser ativada, assentada e plantada, isto é, enterrada cuidadosamente. Assentamentos são, portanto, pedras (otás) e outros objetos que servem de suporte para os fundamentos (áwo) que mantêm a vitalidade de alguém. Os assentamentos correspondem a verdadeiros corpos externos: eles personificam seres humanos e divinos específicos. E, como Bará é o deus das encruzilhadas, seu assentamento, sua casa, fica bem no meio do edifício, no cruzeiro formado pelo encontro das duas vias que dividem a construção, suas lojas e armazéns em quatro partes.
Bará, também chamado de Exu, é o orixá do movimento, que dá vida e dinâmica a tudo. Além disso, ele é o mensageiro imprevisível e zombeteiro que comunica e efetiva a vontade de todos os outros deuses. Bará deve ser honrado antes de qualquer atividade, recebendo a primeira porção de tudo o que se oferta aos outros deuses.
Essa divindade também ocupa os espaços públicos. Bará é o dono da rua. Ele é o responsável pelos encontros (e confrontos) entre as coisas e as pessoas, pela abertura e fechamento das possibilidades, dos caminhos. É por isso que as quatro portas do Mercado, que levam diretamente ao seu cruzeiro central, projetando-o no espaço da cidade, devem permanecer simultaneamente abertas. É através delas e do fluxo constante de pessoas e mercadorias em todas as direções que, afinal, a circularidade promovida por esse deus é garantida.
Como os objetos extremamente poderosos que estariam ali, junto aos alicerces do prédio, teriam sido assentados pelos escravizados que o construíram em 1869, os fundamentos do Bará se confundem com as fundações do Mercado Público. Em outras versões da história, eles foram enterrados por uma importante personalidade regional, Osuanlele Erupê, mais conhecido como príncipe Custódio. Custódio era membro da família real de Ajudá, no atual Benin, e veio para o Brasil exilado por motivos políticos, chegando ao Rio Grande do Sul no final do século XIX. Ele teria sido proprietário de uma banca no Mercado, no início do século seguinte, e estabeleceria boas relações com a elite gaúcha da época.
Patrimônio
De modo geral, os afrorreligiosos têm enfrentado a Covid-19 com paciência, respeitando os protocolos sanitários locais e da OMS em todo o país, o que não surpreende em cultos nos quais tudo é feito de modo cíclico e lento, com longos períodos de resguardo entre um ritual e outro. Além disso, o território e a memória dos mortos são elementos centrais para as comunidades de terreiro.
No caso do Mercado Público de Porto Alegre, todas essas dimensões se cruzam. São os ancestrais do povo de santo que o levantaram. Foram eles mesmos, ou o príncipe Custódio – uma figura memorável do batuque gaúcho –, que plantaram o Bará no meio do prédio. A notícia do lançamento do edital de concessão no meio da pandemia, em contraste com o pesar do momento, indignou os afrorreligiosos. Para uma parte deles, a prefeitura teria aproveitado a crise sanitária para tocar o projeto de modo rápido e sorrateiro. Nas palavras de um pai de santo, ditas assim que ele soube que essa proposta seria levada adiante: “Essa administração intolerante e racista do Marchezan não respeita nem o período de Covid, em que a gente está com mais de 30 mil mortos neste Brasil […]. Covardemente, o Marchezan está lançando o edital de concessão do Mercado Público. Que é que ele vai fazer? Aí sim, ele vai justificar que tem doença, que tem Covid, vai ter uma coletiva de imprensa em que tem que se cadastrar para poder falar. Ou seja, ninguém de nós vai poder se manifestar, tá, pessoal?”.
A mobilização on-line que se formou desde então contradiz essa avaliação sombria. De qualquer forma, o carinho que a maioria dos porto-alegrenses tem pelo Mercado, defendendo-o por décadas, é um dos maiores indícios da força que emana desse território sagrado.
A história do Mercado Público sempre foi repleta de ameaças, afinal. Além de seu prédio ter sido atingido por grandes incêndios e inundações, a ideia de derrubar o Mercado em nome da modernidade acompanha a rotina dos permissionários há tempos. O prédio quase veio abaixo, por exemplo, na administração do prefeito Thompson Flores, nos anos 1970. Na época, a população reagiu a tal ponto que ele abriu mão do projeto e o prédio acabou sendo tombado como patrimônio histórico municipal. De lá para cá, o Largo do Mercado foi declarado sítio arqueológico e mesmo o assentamento do Bará foi registrado como patrimônio imaterial de Porto Alegre em 2013. Apesar disso tudo, a casa desse orixá ainda não está totalmente protegida, correndo o risco, inclusive, de virar uma espécie de shopping, apenas com sua antiga arquitetura preservada.
Neste momento, a patrimonialização definitiva, em âmbito federal, do prédio e do Bará está sendo deliberada. E não se trata somente de manter as paredes do Mercado de pé, mas de salvaguardar tanto os jeitos de mercar dos permissionários quanto a convivência entre o sagrado e o profano desse lugar que viu a cidade nascer, dessa encruzilhada central que serve de moradia para o deus que tudo inicia, desse território densamente povoado pela memória dos africanos escravizados que viveram na capital gaúcha.
Levará tempo para que se construa um processo de patrimonialização que contemple a importância do Mercado para a população de Porto Alegre como um todo. Certamente Bará há de permitir que isso seja feito com o devido zelo e que sua casa seja mantida, após a pandemia, do jeito que ele gosta: frequentada por todo tipo de gente, cheia de cheiros e cores, agitada e com suas quatro portas bem abertas.
Vítor Queiroz é mestre em História e doutor em Antropologia pela Unicamp. Pesquisa os cultos afro-brasileiros, questões étnico-raciais, arte, patrimônio e território.
1 Gabriela Sales, “Cineasta gaúcha faz comentário racista em live”, Fórum, 7 jul. 2020.