Procuram-se desesperadamente fiscais da receita
Podemos mudar o mundo sem incomodar muito os poderosos? Os governos latino-americanos progressistas, aceitando condicionar suas políticas de justiça social ao crescimento das exportações, facilitaram a tarefas daqueles que operaram para derrotá-los: com a economia em baixa, os caixas secaram… e a crítica fez a festa. E se a audácia começasse pelo imposto?
No dia 4 de maio de 2017, em Manágua, uma delegação de elite do FMI anunciou ao governo nicaraguense as recomendações para o ano vindouro: aumentar a arrecadação de impostos, eliminando as exonerações e isenções.1
Uma instituição financeira internacional, que propaga a cartilha neoliberal, aponta o dedo para um governo – considerado socialista! – por sua falta de audácia em relação a imposições fiscais? A situação não é tão inusitada quanto parece: ao longo da última década, ela repetiu-se várias vezes na América Latina, onde o FMI, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) se mostraram, na questão fiscal, mais redistributivos que a maior parte de seus interlocutores governamentais, tanto de direita como de esquerda.
Estudos e relatórios sucessivos denunciam esse cenário: a América Latina permanece a região com as maiores desigualdades internas na repartição das riquezas. Dos dez países onde a concentração de renda do 1% mais rico da população é mais elevada, sete se encontram na América Latina.2 Impossível compreender a razão disso sem evocar as políticas fiscais do continente, que, se não constituem a única explicação, pelo menos esclarecem essa desigualdade estrutural.
“A desigualdade do mercado, ou seja, aquela que prevalece antes de o Estado desempenhar seu papel redistributivo graças às políticas fiscais, não é muito maior na América Latina que nos países europeus”, analisa a economista María Fernanda Valdés, especialista tributária. “Isso significa que a diferença entre as regiões em matéria de desigualdade resulta de sistemas fiscais divergentes, que chegam a reduzir as distâncias na Europa, mas não na América Latina”,3 completa. Assim, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), das Nações Unidas, o coeficiente de Gini (que mede as disparidades de renda) abaixa apenas 3% depois dos impostos no continente latino-americano, contra 17% em países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Na América Latina, portanto, a política fiscal não opera como uma ferramenta de distribuição, coesão e justiça social. As situações são naturalmente heterogêneas: o Brasil e a Argentina sustentam uma carga fiscal duas vezes e meia mais elevada que a República Dominicana e a Guatemala, última da lista. O nível de percepção dessa questão também é particularmente baixo. Regressivas, as estruturas fiscais poupam as elites, submetidas a uma contribuição proporcionalmente inferior à de setores populares. A fórmula é conhecida: pouco ou nada de taxação sobre a fortuna ou patrimônio – apenas 0,8% do PIB – e taxas sobre bens e serviços (que afetam indistintamente ricos e pobres) cinco ou seis vezes mais altas que o imposto de renda das pessoas físicas, teoricamente mais progressivo. Em 2015, a média continental de impostos indiretos coletados equivalia a 10% do PIB, enquanto o imposto de renda, a apenas 1,8%.4 Por comparação, esse último imposto totalizou no mesmo ano 8,4% do PIB nos países da OCDE e 3,2% na África, quase o dobro dos índices na América Latina. Se no México, Argentina e Uruguai esse valor passa os 3%, ele permanece inferior a 0,5% na Bolívia e na Guatemala.
O cenário era mais injusto no início do século XIX, quando o imposto sobre a renda das pessoas físicas culminava em média em 1% do PIB continental. A tendência, portanto, é de alta, ainda que a carga total em seus diversos países permaneça baixa (21% do PIB em 2015, contra 18% em 2005), muito aquém dos integrantes da OCDE (cerca de 35%). Os impostos indiretos, como o imposto sobre valor agregado (IVA) e os que incidem na importação e exportação, constituem a maior parte – mais da metade entre 2000 e 2015. O imposto sobre pessoa jurídica, em particular as de extração e comercialização de recursos renováveis, teve forte aumento, ultrapassando seu equivalente no interior da OCDE, antes de novamente cair: aproveitou o boom das matérias-primas e o aumento do extrativismo, para amargar a queda desses produtos nos mercados internacionais a partir de 2014.
Como analisam diversas instituições econômicas e financeiras internacionais, “as escassas receitas de impostos sobre a renda, os lucros e o capital na América Latina se explicam em parte pelas generosas isenções e pelos benefícios das concessões, assim como pela evasão fiscal dos contribuintes mais ricos”.5 Outro fator explicativo: o peso em geral grande do trabalho informal na economia. Para além disso, a chave de toda evolução significativa em direção a sistemas fiscais mais eficazes e redistributivos se encontra, sem dúvida, na persistência de estruturas sociais piramidais e, mais ainda, na extraordinária influência das elites e seus interesses nos âmbitos de poder, que termina por autorizá-las a ditar grandes diretrizes empresariais… e fiscais.
As recentes experiências governamentais progressistas ou pós-neoliberais (em alguns casos ainda em curso) modificaram esse cenário? Sim e não. A Venezuela de Hugo Chávez, o Equador de Rafael Correa e a Bolívia de Evo Morales, por exemplo, conseguiram aumentar significativamente suas receitas fiscais, que foram redistribuídas por meio de políticas sociais que notadamente reduziram a pobreza e as desigualdades. Mas as experiências mais recentes trouxeram benefícios essencialmente à produção e exportação de matérias-primas. “A renda dos recursos naturais aumentou a pressão sobre a necessidade de taxar a sociedade para poder gastar”, explica Valdés.6 Apesar dessa fonte (em refluxo há três ou quatro anos) e de algumas medidas legislativas adicionais, não há uma reestruturação das estruturas fiscais nem reformas de fundo que visam aumentar significativamente a taxação e sua progressão.
O presidente Correa, em seu último mandato (no poder de 2007 a 2017), de fato tentou emplacar uma lei mais ambiciosa que nos outros países. Diante da virulência da oposição, precisou recuar.7 “Seus projetos de lei sobre a herança e a especulação foram totalmente incompreendidos”, analisou em 2015 François Houtart, fundador do Centro Tricontinental, na Bélgica. Os setores privilegiados, alvos diretos da reforma, “conseguiram suscitar uma reação de rejeição junto a grande parte das classes médias e populares, até mesmo camponeses e indígenas, enquanto as medidas prometiam uma melhoria na distribuição das riquezas”.8 Em sua análise, as mudanças fiscais que se deram no continente na última década são, ao mesmo tempo, disparatadas e cheias de lacunas. E não se limitam às medidas tomadas por governos progressistas.
Reformas tímidas
Se a Cepal celebra as reformas empreendidas no Uruguai em 2006 e no Chile em 2014 (dois países geridos então por governos de esquerda), por outro lado também realça as da Colômbia (2012) e do México (2013),9 onde a direita governa desde sempre. Aos olhos da comissão, esses quatro países operaram as únicas “reformas fiscais estruturais” do período. A Cepal qualifica a reforma uruguaia, que reorganizou completamente o imposto sobre a renda e diminuiu os impostos indiretos sobre o consumo, como “pioneira”. Curiosamente, o índice de desigualdade no país – o coeficiente de Gini – piorou…
Ela tem em comum com a política empreendida seis anos depois na Colômbia uma modificação na estrutura fiscal que visa reduzir a desigualdade, sem aumentar o total da carga. Por outro lado, as reformas empreendidas no México e no Chile – a segunda mais ambiciosa que a primeira em termos de progressividade – visam aumentar as receitas do Estado, reduzindo o déficit fiscal no México e financiando novas medidas no setor de educação em Santiago.
Independentemente das frágeis qualidades redistributivas de todas essas modificações, o nível da taxação global experimentou suas maiores altas na Argentina, Equador e Haiti (mais de 6% do PIB) entre 2000 e 2015; e as menores no Brasil, Uruguai, Panamá e Costa Rica (menos de 1,5%).10 Apenas a Guatemala cortou ainda mais sua carga – já na soleira – de 0,8%, na esteira dos compromissos estabelecidos há mais de vinte anos na assinatura do acordo de paz de 1996, concretizado após uma guerra causada pelo essencial: as desigualdades abissais que já assolavam o país.
O contragolpe deflacionário sofrido há três ou quatro anos pelos combustíveis fósseis e pelas matérias-primas de mineração e agrícolas exportadas pelo continente afetaram profundamente as entradas fiscais. Atualizou e expôs as carências do sistema de taxação e mergulhou vários Estados em novas crises de financiamento público, elas mesmas alvo de novas reformas… O retorno ou a manutenção da direita no poder na maioria dos países são um sinal de sua orientação, mais regressiva que progressiva? Os governos colombiano, argentino e chileno, notadamente, já responderam. O primeiro aboliu o imposto sobre a riqueza, em vigor desde 2002, e elevou o IVA ao maior patamar da história. O segundo, com o governo de direita de Mauricio Macri eleito em 2015, reduziu a contribuição das empresas sobre o patrimônio. O terceiro, em vigor desde a eleição do empresário Sebastián Piñera em 2017, prometeu voltar atrás com a reforma de 2014, colocada em prática por sua predecessora, Michelle Bachelet.
A luta contra a evasão fiscal poderia constituir outra resposta à fonte de recursos dos Estados, mas não parece figurar na lista de prioridades. Os bilionários latino-americanos, que veem suas fortunas pessoais aumentarem seis vezes mais rápido que as economias da região desde 2002, figuram entre os que, junto com as multinacionais, beneficiam-se dessa grande facilidade de se esquivar, de forma fraudulenta ou não, de suas obrigações fiscais.11 As estimativas mais conservadoras – notadamente as da Cepal – calculam as perdas anuais por ineficácia fiscal em 6,3% do PIB, ou seja, US$ 350 bilhões: um terço devido ao não pagamento de IVA e dois terços em razão do não pagamento de impostos sobre a renda de pessoas físicas e empresas. O conjunto da dinâmica é reforçado pelas economias informais, que chegam a 50% em média no continente, e pela fuga de capitais em paraísos fiscais.
Sem dúvida, as desigualdades redistributivas acobertam as relativas à distribuição primária de riquezas, cuja amplitude crescente torna cada vez mais difícil sua correção apenas por políticas fiscais. Mas a experiência dos governos progressistas na América Latina da última década levantou uma questão: é possível transformar a sociedade sem aumentar a contribuição dos mais ricos?
*Bernard Duterme é diretor do Centro Tricontinental (Cetri), em Louvain-la-Neuve, Bélgica, e coordenador de État des résistances dans le Sud. Amérique latine [Estado das resistências no Sul. América Latina], Cetri/Syllepse, 2017.