Programa de Bolsonaro quase assume a responsabilidade pela tragédia na educação
A educação brasileira vive uma tragédia. O programa de Bolsonaro quase reconhece que o atual presidente foi o pior da história recente no quesito educação. Os programas de Lula e Ciro, juntos, seriam um programa educacional quase perfeito
Esse artigo precisa começar de uma forma diferente. O drama da educação brasileira é um dos reflexos mais contundentes da total falta de competência, noção e humanidade de Bolsonaro à frente da República. Durante a sua gestão, o país viu dobrar o número de crianças em idade escolar (segundo ano do ensino fundamental) que não sabem nem ler e escrever sequer uma palavra.
O bolsonarista fervoroso correria para afirmar que isso é culpa do fechamento das escolas durante a pandemia. Não é. O governo Bolsonaro trocou de ministros da educação mais do que time ruim troca de técnico. Foram cinco. As escolhas foram patéticas. Tivemos um ministro que não sabia escrever, outro que mentiu sobre sua trajetória acadêmica, e tivemos ainda a atuação de uma quadrilha de pastores que ganhavam barras de ouro para distribuir dinheiro do governo.
Os números são assombrosos. Dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) apontam que foram cortados 18 bilhões de reais (valores corrigidos pelo IPCA) em recursos autorizados para a educação entre 2019 e 2022. A execução orçamentária da pasta é outra tragédia: a infraestrutura da educação básica não gastou metade do previsto nos orçamentos em nenhum ano; a educação superior executou 6 bilhões de reais a menos; ciência e tecnologia, 4 bilhões a menos.
Assim, esse texto precisa começar afirmando que a tragédia da educação brasileira é mais uma causada pela ignorância, pela radicalização ideológica, pela corrupção e pela incompetência desse governo. Não é sobre pandemia.
Pois bem, a situação é tão absurda que o programa de Bolsonaro quase entrega a sua culpa quando toca no assunto. Primeiro porque, diferente das outras áreas, não há um preâmbulo defendendo os números da pasta. Nem mentir eles conseguiram. Segundo porque o programa afirma que “é preciso que sejam formuladas estratégias que utilizem dinheiro público em pesquisas de ponta”, admitindo, portanto, que não há estratégias formuladas. Terceiro porque diz que é preciso “consolidar ações complementares importantes” como acesso a internet nas escolas, creches e alimentação escolar, admitindo, portanto, que essas ações não estão consolidadas. Quarto porque fala que é preciso avançar no aprimoramento da gestão e da governança da rede pública de educação, com a necessidade de se definirem “melhores critérios de redistribuição de recursos”. Certamente o mais enfático defensor do atual presidente não afirmaria que a quadrilha dos pastores configuraria exatamente um bom sistema de distribuição de recursos públicos.
No mais o programa de Bolsonaro é uma enxurrada de lugares comuns que respondem retoricamente às questões da educação sem falar exatamente nos efeitos práticos dessas questões, como educação profissional, qualificação e valorização de professores etc. Mas o texto ainda conseguiu a proeza (em uma versão “light”) de abordar as pérolas do ideário bolsonarista de educação: a escola sem partido e o homeschooling. Ele fala na necessidade de os alunos exercerem “um pensamento crítico sem conotações ideológicas” e em “ampliar o combate à violência institucional contra crianças e adolescentes, sob a premissa de que os pais são os principais atores na educação das crianças e não o estado”.
Enfim, Bolsonaro não sabe o que fazer com a educação. Não tem projeto, não tem perspectiva e se resume a uma soma lamentável de ignorância com más intenções.
Programas de Ciro e Lula
Agora partiremos para os programas de Ciro e Lula. Esses dão alguma perspectiva para a educação brasileira. Mas o fazem com abordagens diferentes, que inclusive, motivaram a afirmação do início dessa coluna de que o ideal seria “somar” os dois programas.
Isso porque eles são bastante complementares entre si. Ao eleger as prioridades discursivas de seu plano de governo, Lula deu especial atenção à retomada do Plano Nacional de Educação, com o fortalecimento de toda a trajetória pedagógica brasileira, da creche à pós-graduação. Defendeu o papel da educação para o futuro da sociedade e para o desenvolvimento do país, inclusive de sua democracia. Falou expressamente em “educação pública, universal, democrática, gratuita, de qualidade, socialmente referenciada, laica e inclusiva, com valorização e reconhecimento público de seus profissionais”. O assunto volta no texto do programa de governo petista quando se fala em ciência, tecnologia e inovação, tratando de “combinar educação universal de qualidade, pesquisa científica básica e tecnológica, inovação e inclusão social”, recompondo a estrutura de fomento à pesquisa.
Já Ciro aponta para o objetivo de colocar a educação brasileira como uma das melhores do mundo, tratando especificamente de um programa de formação e capacitação de professores, alfabetização na idade certa, ensino fundamental progressivamente integral ao longo do governo, desenvolvimento de um programa (já aplicado no Ceará) de primeira infância, ensino médio profissionalizante em tempo integral com estágios remunerados pelo governo.
A parte discursiva de ambos os programas é destacável. Ambos defendem o papel da educação para o desenvolvimento do país, da democracia, da necessidade de se recuperar o atual atraso educacional, mas efetivamente se diferenciam nas prioridades apontadas em cada um. Enquanto Lula dá maior relevância aos aspectos sistêmicos da política educacional, Ciro prioriza propostas mais específicas, tratando de assuntos muito importantes. Por isso os programas são complementares. Não há necessariamente nenhuma grande divergência entre os textos. Mas o que falta em um, aparece no outro. Enquanto Lula fala bastante sobre o caráter público da educação, fomento à pesquisa e ensino superior, Ciro fala mais sobre educação básica e ensino médio. Talvez não tenha sido por acaso que o irmão de Ciro, Cid Gomes, tenha sido ministro da educação de um governo petista.
Quando o assunto é educação, não há solução definitiva. Aprender é uma única coisa que o ser humano pode fazer durante todos os dias de sua vida. Sempre há a possibilidade de entender algo novo, de desenvolver um novo raciocínio que melhore alguma coisa na vida de alguém. Por isso não se pode esperar que Bolsonaro tenha alguma ideia boa sobre o assunto. Ele, e boa parte dos seus apoiadores, renegam a evolução cultural, ostentam preconceitos e se fecham a aprender qualquer coisa que não tenha finalidade financeira.
É também pela possibilidade de se aprender algo novo que os programas de Ciro e Lula poderiam se somar. A política não traz respostas definitivas. A democracia existe para que novas ideias apareçam, para que as emergências sociais sejam solucionadas e para que as pessoas enxerguem além dos seus próprios olhos. Os próximos dias serão decisivos para que esses valores sejam ou não colocados em prática pelo governante maior da República. Boa parte do país, é verdade, já fala sobre isso abertamente. Entende que o próximo dia 2 de outubro é um dia decisivo para o patamar civilizatório que queremos para o Brasil.
Aqueles das ideias ultrapassadas, que não querem o futuro, que não querem incluir a diferença, que não aceitam a divergência já têm o seu candidato, e votarão todos juntos.
A democracia aceita a diferença. É completamente aceitável que pessoas que queiram um país que supere a tragédia dos últimos quatro anos não concordem entre si sobre o melhor candidato. Mas é preciso uma reflexão: será mesmo possível que se deixe viva a possibilidade de se prorrogar essa calamidade por mais quatro anos? Nessa eleição, não há terceira via. Há duas vias: a democracia e a barbárie. Na democracia, por mais que discordemos, sempre haverá espaço para o consenso ou o impasse civilizado, o debate de ideias, a divergência. Na barbárie o consenso é artificial e o impasse é convertido em violência, e quase sempre as vítimas são as pessoas mais vulneráveis. A barbárie não pode durar mais nem um segundo, quem dirá 28 dias.
Antonio Carlos Souza de Carvalho, advogado e cientista político, especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo.