O discurso político de Ciro: projeto nacional de desenvolvimento.
No terceiro texto da série A análise dos discursos dos candidatos, produzida pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), os discursos do presidenciável Ciro Gomes: Cabe destacar um aspecto importante na moralização da fronteira presente no discurso de Ciro com relação ao PT e Lula, este considerado velho amigo, “São Lula”, brinca, o que poderia levar à sua presença como parte do “nós”. Apesar da amizade, a proposta de ser vice de Lula foi considerada um insulto
Ciro Ferreira Gomes, homem, branco, 60 anos, nascido em Pindamonhangaba, São Paulo, cresceu em Sobral, no Ceará, é formado em Direito e foi professor universitário. Na carreira política foi deputado estadual, federal, prefeito de Fortaleza e governador do Ceará, além de ministro da Fazenda no Governo Itamar Franco (1992-1994) e ministro da Integração Nacional no primeiro Governo de Lula (2003-2006). Disputou a presidência da república pela primeira em 1998 e a segunda em 2002, ambos os pleitos pelo Partido Popular Socialista (PPS). Atualmente é filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT) e disputa pela terceira vez a presidência, tendo como vice a senadora Kátia Abreu.
“[…] Ciro tem 38 anos de vida pública e seu nome nunca foi associado a escândalos ou roubalheira. Ficha Limpa, Ciro Gomes tem […] o preparo, a firmeza, a experiência e a honestidade que o Brasil precisa” [1]. Ciro é visto como alguém que domina números e estatísticas de economia, segurança pública e outros assuntos, chegando até mesmo a ser confundido com economista. Demonstrando autoridade e capacidade, frequentemente ele enfatiza que é professor de direito e que não faz da política carreira. “Eu sonho a vida inteira em servir a essa Nação. Só preciso de uma oportunidade do povo”, afirma Ciro, em entrevista ao Jornal Nacional, no dia 27 de agosto, buscando conquistar os/as eleitores.
No discurso [2] de Ciro, a construção de um projeto nacional de desenvolvimento é o ponto nodal, elemento que articula as diferentes demandas de seu discurso, sustentado por um pacto social que gere a reconciliação nacional, pois “é preciso uma aliança entre quem produz e quem trabalha no Brasil”, afirma Ciro. Em nossa análise [3], esse projeto visa retomar a industrialização e enfrentar a desigualdade social, que compõem o marco de diagnóstico, representando os principais problemas a serem resolvidos no Brasil. Nas diretrizes que aparecem nas propostas para seu governo, a reindustrialização do país é um elemento central de sua estratégia de desenvolvimento, já que o setor perdeu espaço desde os anos 1990, o que explica o baixo crescimento econômico do país nos últimos 30 anos. Por sua vez, combater o avanço da desigualdade social exige restabelecer as contas públicas a fim de que se possa investir em serviços públicos de qualidade e combateras desigualdades sociais.
A escolha de Kátia Abreu como vice, aponta para o papel estratégico que o agronegócio deve desempenhar na geração de divisas e crescimento da economia de seu governo. Em entrevista concedida na última edição da revista Carta Capital (agosto de 2018), Ciro declara: “Queria que meu vice fosse um industrial de São Paulo. Não consegui. Kátia sempre se dispôs com muita generosidade a me ajudar. Ela é limpa, competente, séria. Tem dois mandatos de senadora, foi deputada federal. Votou contra a perversão da reforma trabalhista, votou contra o teto de gastos. É contra a liberação dos agrotóxicos. Ela tem uma concepção com relação às armas. Conhece melhor do que eu o interior do Centro-Oeste, do Norte”… “hoje, ela me fala de uma demanda dos produtores rurais por ter arma em casa. Sou um ant-iarma visceral. Nunca peguei em uma, nunca dei um tiro da minha vida. Sou da paz, mas eu a ouço. Não necessariamente concordando”. E enfatiza que “Kátia Abreu não vem porque é igual a mim, mas porque é diferente”, mas concordando no essencial, no “projeto nacional de desenvolvimento, fruto de uma aliança do centro à esquerda”, além de possibilitar crescer nas intenções de voto no Centro-Oeste e Norte, onde Ciro possui menos apoio.
“O Brasil não agüenta um governo de esquerda. Precisa de uma conciliação entre quem produz e quem trabalha”. A solução do problema, que passa pela construção de “projeto nacional de desenvolvimento”, traça a fronteira que delimita os outros, o “eles”, o “rentismo” [4] enquanto o inimigo comum. Nesse movimento se articula também a identidade do “nós” – já que as identidades são produto das relações de antagonismo – enquanto seus futuros eleitores protagonistas da mudança. Nessa delimitação do “nós” o povo e o Estado se conjugam numa cadeia de equivalência [5] que compreende: centro-esquerda, povo soberano, classe trabalhadora, pobres, burguesia nacional, setor produtivo, estatais, alternativa de projeto nacional, defesa do interesse nacional, e também o “São Lula” (velho amigo).
“[…] Estamos à beira do caos e temos um inimigo em comum, o rentismo. É possível construir um projeto que associe concretamente os interesses práticos de quem trabalha com os interesses práticos de quem produz. Vou tentar descartelizar o sistema financeiro”. Elite, privatização e rentismo são os principais elementos de uma cadeia de equivalência que se constrói em torno do “eles” articulando: rentismo, plutocracia rentista/financeira; burguesia rentista; direita entreguista; MDB (quadrilha), Temer e suas providências anti-povo, anti-pobre e antinacional; bolsominions, grupos protofascistas e a esquerda, particularmente a cúpula do PT.
Em termos de reconstrução do passado que é valorizado, seu discurso busca recuperar o período do desenvolvimentismo, além do primeiro governo Lula “o governo mais útil ao Brasil” e o governo Itamar, os quais teriam “resistido à chantagem emedebista”. Cabe destacar que Ciro foi ministro em ambos os governos. “Não estou disposto a vender minha alma no caminho de ser presidente do Brasil”, declara Ciro. Cabe destacar um aspecto importante na moralização da fronteira presente no discurso de Ciro com relação ao PT e Lula, este considerado velho amigo, “São Lula”, brinca, o que poderia levar à sua presença como parte do “nós”. Apesar da amizade, a proposta de ser vice de Lula foi considerada um insulto: “não represento o PT e discordo há tempos da compreensão que o partido tem do Brasil. O PT não tem projeto de país. Aproveitou essa liderança extraordinária, o Lula, mas não desenhou nada institucionalmente. Nem os grandes avanços, em matéria de políticas sociais, foram institucionalizadas”. Para Ciro, a candidatura do ex-presidente é uma fraude, “um convite à população para dançar na beira do abismo”, pois considera a interdição de Lula como certa, ainda que discorde plenamente da sua prisão e alegue que somente ganhando as eleições e restaurando o Estado de direito, diante do processo de politização do Judiciário brasileiro, Lula poderá sair da cadeia.
Crescer com distribuição de renda, investindo em educação e políticas de acesso a bens e serviços públicos de qualidade e políticas econômicas que agreguem valor à produção. A meta de seu programa é alcançar, em 15 anos, “o atual Índice de Desenvolvimento Humano de Portugal”, crescendo a 5% ao ano. Os elementos centrais de seu programa político são os 12 passos para mudar o Brasil [6]: geração de empregos; recuperação e modernização da infraestrutura; desenvolvimento e meio ambiente; ciência, tecnologia e inovação, investir maciçamente em educação; aprimorar o SUS para melhorar o atendimento na saúde; combater o crime com inteligência policial e proteção aos jovens; criar, manter e ampliar os programas sociais; a cultura como afirmação da identidade nacional; respeitar a todos os brasileiros; combater a corrupção; defesa, política exterior e soberania nacional.
Questionado se aceitaria um eventual apoio da sigla do presidente Michel Temer caso seja eleito, Ciro revidou: “Nem a pau, Juvenal. Meu governo vai botar pra correr ladrão e bandido. Botar pra correr até a porta da cadeia” [7].“No primeiro dia de governo, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica vão sair do cartel, passarão a oferecer política mais atrativa de juros. Vão tomar o mercado do Itaú, do Bradesco, do Santander”. Além de aumentar a competição de bancos estatais com privados, propõe o uso de reservas cambiais para abater a dívida pública, reforma previdenciária (transição para novo regime, de capitalização e unificação de tetos para servidores públicos e da iniciativa privada); e reforma tributária progressiva.
Em Sabatina realizada pela Record TV, em 21 de agosto, ao ser questionado sobre ser considerado pouco confiável pelo Mercado, Ciro Gomes declara: “A bíblia dá um ensino, dentre muitos ensinos sábios, de que não se deve servir a dois senhores. Porque se você se der à tarefa de servir dois senhores, você não servirá bem nem a um e nem a outro. E o meu patrão é o povo brasileiro.” E enfatiza que não é um inconsequente e como ministro da fazenda o Brasil teve o maior superávit da história, mais de 5% do Produto Interno Bruto (PIB).
“A escola das crianças será a prioridade do meu governo. Estão no Ceará 77 das 100 melhores escolas de ensino básico do Brasil”. Ainda entre suas propostas políticas Ciro defende a expropriação de todos os campos de petróleo vendidos após o impeachment de Dilma, o debate em torno da criação de proposta sobre descriminalização das drogas e a federalização do enfrentamento às facções criminosas, da investigação à segregação prisional. Com relação à regulação da mídia, Ciro acredita não ser necessário.
O plano para retirada dos devedores no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), outra de suas propostas, vem gerando polêmica. Questionado durante a já citada entrevista no Jornal Nacional sobre a simplicidade da formulação da proposta de “tirar o seu nome do SPC” como meio para angariar votos, Ciro, que diz haver estudado o tema, afirma “vou sim tirar o seu nome do SPC” e rebate citando que o Refis, “financiamento para rico”, ninguém questiona. Para ele, é preciso que os 63 milhões de brasileiros que estão com o nome sujo possam negociar suas dívidas e voltar a consumir para reativar a economia; para tanto propõe que o governo financie empréstimos. “Só quem tem horror a povo, quem não se dói com a dor do nosso povo, que não sabe o que é o cidadão estar humilhado, sem poder comprar um remédio, sem poder comprar um sapato pro filho ir pra escola, é que pode botar defeito numa proposta dessa, que o mundo inteiro sabe fazer e já faz”. A proposta denominada Nome Limpo teria sido copiada pelo PT, o que causou manifestações em um perfil na rede social Twitter, administrado por apoiadores de Ciro, que tem 13,5 mil seguidores, como pode ser visto na imagem abaixo.
Quando questionado sobre a agenda que pretende implantar, Ciro destaca que após resistir às “bordoadas” e propor nos seis primeiros meses de governo suas ações: “Precisamos trocar a grande reforma fiscal por um redesenho do pacto federativo. O centro da gravidade real da política brasileira não está no Congresso, está nos estados”. E defende a convocação de plebiscitos e referendos em temos polêmicos: “para enfrentar os privilégios, a reforma da previdência precisa do povo. Por quê? Cerca de 25% dos benefícios são apropriados por 2% dos beneficiários. Quem são eles? A chibata moral da nação: juízes, procuradores e políticos”.
“Quero ser o cara que vai restaurar a ordem e a autoridade no Brasil. E desejo fazer isto respeitando o estado democrático de direito”. O tom enérgico e de autoridade presente em sua fala, aliado ao comportamento destemido, seus “deslizes”, são características marcantes do seu discurso. Este, busca articular um estilo tecnocrático de forma didática, que evidencia um saber superior com um discurso emocional, em nome de desejos e necessidades do povo e que usa referencias populares, principalmente nordestinas (“trilhão” com “t” de “tapioca”). Porém, seu caráter explosivo e de piadas críticas é motivo permanente de críticas de seus adversários, até mesmo agressivas, (há quem diga que Ciro “necessita uma cirurgia de língua”), e também por seus posicionamentos políticos “progressistas”. Ultimamente, sua imagem impetuosa vem tentando ser substituída por uma mais leve, de fala firme, mas mansa, demonstrando tranquilidade e maturidade, um Ciro soft, como dizem.
Entre seus apoiadores, além de Caetano Veloso, que o entrevistou recentemente [8], destaca-se a Plataforma #TodosComCiro, que reúne mobilizadores em mais de 1200 cidades. O fortalecimento de um projeto nacional desenvolvimentista é um dos principais elementos que ecoam entre seus apoiadores, como é possível evidenciar por meio de depoimentos da citada plataforma. “Cirão da Massa” é visto como o único presidenciável capaz de promover esse projeto para o país, pois é considerado um candidato preparado, “ficha limpa”, com autoridade, larga experiência na gestão pública, e com a sinceridade e realismo de quem conhece os problemas do Brasil.
“Seu voto vale muito”, não decida agora, pesquise, convida Ciro, afirmando que “Deus vai abençoar essa nossa Nação e o Brasil vai voltar a ser feliz”, em uma tentativa de conquistar eleitores. Quando afirma que “o Brasil vai voltar a ser feliz”, em semelhança com a propaganda do PT, “com Ciro, o Brasil vai poder sonhar de novo”, e que “depois de Lula, eu sou o mais progressista”, evidencia-se uma clara tentativa de angariar os votos dos/as eleitores/as de Lula e/ou do PT. Segundo a última pesquisa do Datafolha, de 20 a 21 agosto de 2018, no cenário com Lula como candidato pelo PT, Ciro tem apenas 5% de intenções de votos, ampliando para 10% num cenário com Haddad. Na pesquisa divulgada pelo Ibope em agosto, o cenário não é muito diferente, na disputa com Lula, Ciro tem 5% e com Haddad, Ciro sobe para 9%. Comparando com as pesquisas anteriores de ambos os institutos de pesquisa citados, houve pouca ou nenhuma variação nos números a favor de Ciro, indicando que sua campanha vem crescendo pouco.
Segundo a pesquisa Ibope do 28/06/2018, a menor rejeição a Ciro se dá nas regiões Norte e Centro Oeste (19%), seguida pelo Sul (20%), Sudeste (21%) e Nordeste (23%). A escolha de Kátia Abreu como sua vice, quem, segundo Ciro, “conhece melhor do que eu o interior do Centro-Oeste, do Norte”, pode ser um dos elementos que contribuam para uma maior aceitação dos/as eleitores/as da região. Ciro tem mais apoio entre pessoas com renda familiar maior do que cinco salários mínimos, principalmente homens e com ensino superior, o que indica que com um eleitorado majoritariamente de classe média e alta, o candidato não chegou “no povão”.
Apesar disso, pode-se questionar a real efetividade da aliança entre capital e trabalho que Ciro pretende realizar, já que a sua candidatura é vista com pouca simpatia por representantes do próprio setor produtivo. Em sabatina ao candidato realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), Ciro foi vaiado quando falou na revogação da reforma trabalhista, a qual é vista como uma conquista, embora não ideal, pelo setor produtivo. A proposta de Ciro de revisão da reforma trabalhista realizada pelo governo de Temer contraria claramente os interesses do setor, dificultando, na prática a “aliança entre quem produz e quem trabalha”, embora a queda nas taxas de juros e a maior competitividade entre os bancos despertem os interesses empresariais.
Como podemos perceber ao longo da análise, além do refinamento, sobretudo, no linguajar econômico, e na ousadia em propor um projeto nacional de desenvolvimento para o país [9], Ciro demonstra certo realismo: “Seria muita ingenuidade acreditar que alguém vai conseguir conciliar capital e trabalho. Apenas identifico, no caso brasileiro, uma comunhão de interesses pragmáticos numa primeira fase, que vai nos consumir de 10 a 20 anos. No Brasil, o mundo da produção definha e o mundo do trabalho está à beira do colapso”.
Dando destaque a sua trajetória política marcada pela experiência e honestidade, sua proposta permanece, tentando convocar aos eleitores a fazer parte do “nós”: a sua tão sonhada aliança entre “quem produz e quem trabalha no Brasil” para “encerrar essa falsa contradição e ter solidariedade com a classe trabalhadora”. Delimitando ao mesmo tempo o “eles” antagônico no “rentismo” e nas “elites a serviço do capital estrangeiro e da especulação”, a “plutocracia”.
Além do enorme desafio de costurar essa aliança – frente à aceitação das propostas e reformas neoliberais pelo empresariado – até onde a tentativa de mudança de tom e estilo de seu discurso, visando atrair setores de maior renda e mais intelectualizados, não vai contra a expectativa que parece predominar na grande maioria do eleitorado hoje? Isto é, a de dar crédito a um discurso que sendo claro e direto, técnica e intelectualmente, seja também sincero, valorizando a emoção e transmitindo autoridade – não necessariamente autoritarismo – para dar conta do sentimento urgente de mudar, de pôr ordem na bagunça em que tem se transformado o país. O discurso “normal” de Ciro tinha essa, agora, “virtude”. Qual será o resultado eleitoral da tentativa de mudança para um discurso soft?
ESPECIAL
Este texto faz parte da série especial “A ANÁLISE DE DISCURSO DOS CANDIDATOS”. Entre os discursos examinados estão os das candidaturas Marina Silva, Jair Bolsonaro, Lula, Geraldo Alckmin, Ciro Gomes e Guilherme Boulos.
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* Yamira R. de Souza Barbosa, Jorge O. Romano, Alex L. B. Vargas, Annagesse de Carvalho Feitosa, Paulo A. A. Balthazar, Thais P. Bittencour. Os autores – professor, doutorandos e mestrandos – conformaram no CPDA/UFRRJ um grupo de reflexão sobre análise de discurso populista fundado na proposta de Laclau e Mouffe, coordenado pelo Dr. Jorge O. Romano, do qual saíram textos específicos sobre o discurso de seis candidatos à presidência que estão sendo publicados no Le Monde Diplomatique Brasil online, assim como em um artigo com a visão geral dos resultados alcançados, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil na sua edição impressa de setembro de 2018