Progresso recento do Brasil se aproxima da encruzilhada
A virtuosa combinação de aquecimento do mercado de trabalho e avanço nas políticas redistributivas provoca forte redução da miséria e vigorosa ascensão social na base. É nesse cenário social que está inserido o tão comentado fenômeno do surgimento de uma nova classe média, ou “classe C”; para nós, baixa classe médiaWaldir Quadros
O crescimento econômico iniciado em 2004, a taxas mais expressivas do que aquelas que vigoravam desde o começo dos anos 1980, trouxe uma série de benefícios ao país. Eles têm sido bastante discutidos, mas sempre é útil retomá-los quando se busca debater os atuais desafios e perspectivas.
Antes de outras considerações, merece ser destacado o fato de que a sociedade brasileira novamente passou a atentar tanto para a relevância do desenvolvimento como para a possibilidade de sua retomada. Sim, pois após longo período de estagnação e retrocessos econômicos e sociais parecíamos conformados com o destino de progressivo definhamento que nos era reservado como periferia da nova ordem internacional.
Entretanto, um novo cenário mundial dinamizado pelas relações sino-americanas abriu espaço para um melhor desempenho econômico. De início, puxado pela exportação de commodities e, em seguida, reforçado pelo revigoramento do mercado interno de massa.
O crescimento econômico aqueceu o mercado de trabalho, criando empregos, reduzindo o desemprego e melhorando salários. Essas condições mais favoráveis fortaleceram o poder de negociação dos trabalhadores e possibilitaram, entre outras conquistas, o avanço do registro em carteira.
Tais melhorias somam-se aos expressivos aumentos reais no salário mínimo, cujos impactos diretos nas ocupações de base se tornam mais efetivos com a expansão da formalização dos vínculos empregatícios.
Além disso, os efeitos positivos dos ganhos reais no piso oficial das remunerações são extremamente importantes no âmbito das políticas redistributivas, repercutindo nos benefícios previdenciários, na aposentadoria rural e no seguro-desemprego, entre outros. Caminha na mesma direção o reforço expressivo nos programas Bolsa Família e de apoio à agricultura familiar.
A virtuosa combinação de aquecimento do mercado de trabalho e avanço nas políticas redistributivas provoca forte redução da miséria e vigorosa ascensão social na base da sociedade.1
É nesse cenário social bem mais promissor do que aquele que vigorou até meados dos anos 2000 que está inserido o tão comentado fenômeno do surgimento de uma nova classe média, ou “classe C”; para nós, baixa classe média.
As melhorias sociais são muito significativas e relevantes. Porém, algumas qualificações são pertinentes no sentido de, reconhecendo os progressos, atentar para a necessidade de continuar avançando nesse processo e superar suas limitações.
Em particular no que diz respeito ao significado mais profundo da expansão da baixa classe média, é importante ter sempre presente que entre os trabalhadores típicos dessa condição social destaca-se a grande massa formada por balconistas, comerciários e caixas de supermercado; auxiliares de escritório e recepcionistas; professores do ensino fundamental; atendentes e auxiliares de enfermagem; bem como trabalhadores qualificados situados abaixo dos técnicos especializados.
Não é preciso alongar-se em maiores considerações sociológicas ou de economia do trabalho para perceber que esse importante contingente de trabalhadores e suas famílias dificilmente têm acesso ao que pode ser considerado como padrão de vida de classe média. Como é sabido, nesse perfil familiar ganham relevo escolas de melhor qualidade para os filhos, em geral particulares e caras, planos de saúde mais abrangentes e moradias razoavelmente confortáveis e bem localizadas.
Neste momento da exposição emerge um dos eixos fundamentais de um projeto de desenvolvimento mais robusto e socialmente avançado, que é aquele corporificado pela reorganização, melhoria e expansão da infraestrutura social, que se encontra quase totalmente sucateada. Ou seja, da supressão das carências acima apontadas e outras de igual natureza.
Basta imaginar como seria o Brasil se funcionassem de forma adequada as áreas de educação, saúde e segurança públicas; políticas urbanas e habitacionais; políticas culturais; além de saneamento básico e transporte urbano de massa. Se expressiva maioria da população vivesse nessas condições, aí sim poderíamos falar com propriedade de uma sociedade de classe média.
Cabe enfatizar que esse cenário mais avançado não beneficiaria apenas a baixa classe média, mas sobretudo o enorme segmento de trabalhadores pobres e miseráveis que só assim conseguiriam escapar da mais vergonhosa precariedade em que vivem. É importante atentar que, em termos nacionais, esse universo que vai da base da pirâmide e engloba a baixa classe média envolve algo em torno de 80% da população. Em São Paulo, estado com estrutura econômica mais diversificada e desenvolvida, ele alcança aproximadamente dois terços.
Por outro lado, o aprimoramento da infraestrutura social também resultaria na melhoria das condições profissionais da significativa parcela de trabalhadores que atuam nessas atividades. Ao ascenderem na escala social, passariam a compor um dos núcleos fundamentais de uma autêntica classe média, tal como ocorre nos países mais avançados.
Por tudo isso, as carências e aspirações da baixa classe média podem constituir o suporte básico para um projeto nacional de inclusão social e de melhoria das condições de vida de toda a sociedade brasileira.
Outro relevante limite do recente processo de mobilidade e ascensão social diz respeito ao fato de que ele perde dinamismo quando atinge a média e alta classe média. Entre outras razões, é importante prestar atenção a esse aspecto, pois ele aponta para o cenário futuro de quem chegou agora à baixa classe média. E também para a situação vigente no tão expressivo conjunto de pessoas que já se encontravam nessa condição social e que nela permaneceram.
Em linhas gerais, entendemos que a raiz dessa situação reside basicamente em duas circunstâncias. De um lado, pelo fato de que no início do processo o patamar vigente na base do mercado de trabalho estava extremamente rebaixado, uma vez que os salários, já estruturalmente baixos, foram bastante deteriorados durante o longo período de estagnação.
Entretanto, o aspecto que consideramos decisivo, por seu significado estratégico, reside na manutenção de condições macroeconômicas adversas a um processo de desenvolvimento mais inclusivo e economicamente mais avançado.
Do ponto de vista social, o baixo nível de crescimento do PIB que vigorou por quase 25 anos repercutiu no lento crescimento dos orçamentos públicos, comprimindo os recursos destinados às áreas sociais. Por outro lado, quando a arrecadação tributária começou a crescer com mais vigor, os pesados encargos financeiros que incidiam sobre as finanças públicas, em razão das estratosféricas taxas de juros, drenaram os recursos necessários à promoção de ampla e profunda reestruturação das áreas sociais públicas. Com isso, além de não serem atendidas as necessidades vitais da população, não se criaram os requisitos para a melhoria dos rendimentos e condições de trabalho dos numerosos profissionais da educação, saúde, segurança pública, entre outros, que em sua imensa maioria permanecem estagnados na baixa classe média.
Por sua vez, na economia sobressai a perversa combinação de juros elevados, câmbio valorizado e abertura comercial desvinculada do aprimoramento da produção nacional, que impede o desenvolvimento da indústria e dos serviços conexos. E, como se demonstra em termos históricos e analíticos, são justamente essas atividades que irradiam progresso e estímulo por toda a estrutura produtiva. Por isso elas são cruciais do ponto de vista científico e tecnológico, e também da geração de empregos.
Dessa forma, a desindustrialização e o definhamento dos serviços de apoio à produção, com concorrência desigual dos produtos importados, dificultam a criação de postos de trabalho mais qualificados e mais bem remunerados, típicos da média e alta classe média.
Por essas e outras razões, a bandeira da reindustrialização vem ganhando espaço na sociedade, unificando os interesses de amplos segmentos empresariais e de trabalhadores. Contudo, as autoridades econômicas vêm revelando inexplicável acanhamento diante dessas preocupações com frequência explicitadas pela própria Presidência da República.
Ainda que seja necessário proteger o produtor nacional da concorrência predatória, nosso processo de desenvolvimento não pode ignorar as condições vigentes na economia mundial. O que se defende é uma forma de inserção soberana que proteja os interesses nacionais, tal como fazem e sempre fizeram os países desenvolvidos.
Tão importante quanto essa conduta, é indispensável conduzir o setor financeiro nacional a cumprir seu papel primordial de apoiar as necessidades da produção, afastando-se das práticas meramente rentistas e especulativas.
A mesma urgência demanda um esforço de esclarecimento do conjunto dos trabalhadores e da opinião pública em geral para o profundo significado dessas transformações, neutralizando a influência da previsível discordância por parte dos setores beneficiados pela atual forma de funcionamento da economia.
Em particular, queremos chamar atenção para o fértil terreno existente hoje para tais objeções em função da ampla e duradoura difusão da mentalidade consumista, bastante enraizada em todos os estratos sociais. Em poucas palavras, os verdadeiros interesses do trabalhador devem sobrepor os do consumidor, que de maneira contraditória convivem na mesma pessoa.
Da mesma forma, é fundamental que ao elaborar um projeto de reindustrialização sejam atendidas as novas exigências e possibilidades de minimizar os impactos ambientais. E aqui as perspectivas são bastante promissoras, uma vez que, por exemplo, podemos tirar vantagem de nossa dotação de recursos hídricos, mantendo e expandindo uma matriz energética menos agressiva. Em termos mais gerais, a renovação e reconstrução do nosso parque produtivo bastante deteriorado podem se realizar com as mais avançadas inovações tecnológicas e ambientais.
Waldir Quadros é professor colaborador do Instituto de Economia da UNICAMP e do CESIT – Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho.