Quando a água bate no peito
À medida que se intensifica a tripla convulsão (financeira, monetária e energética) que abala a economia mundial, o pânico alcança as elites. Seu credo se desmancha: o mercado já não é mais a resposta para tudo. E os ganhos estratosféricos dos altos executivos das corporações passam a ser questionados
“Crise é um estado no qual as coisas irregulares são a regra; e as coisas regulares, impossíveis” (Marcel Mauss1)
O que dizer de um estado no qual as finanças oscilam, o preço da energia dispara e a desconfiança popular provoca uma série de distúrbios? Em Wall Street, o Federal Reserve (FED) coloca os bancos sob tutela; nos Países Baixos, aprovam-se leis regulando o salário dos patrões; na Nova Zelândia, o governo volta a estatizar o setor ferroviário; em Londres, o pessimismo toma conta da mídia econômica.
“Medo”, “recessão”, “salvamento”, “protecionismo”: palavras alarmistas se sucedem na primeira página do Financial Times. “Memorizem o dia 14 de março de 2008”, escreve o cronista Martin Wolf. “Nesse dia, o sonho do capitalismo de mercado global morreu.” Ele se refere à “sexta-feira negra”, na qual o Fed, o banco central norte-americano, decidiu pelo salvamento do banco Bear Stearns, asfixiado por seus créditos imobiliários tóxicos. É inútil apontar os “suspeitos” habituais: Estados bloquea-dores, burocracias emperradas, trabalhadores arcaicos. John Thornhill, editor-chefe da edição européia do diário financeiro, indica os culpados: “Muitos bancos provaram ser de uma irresponsabilidade monstruosa, se não criminosa”.
À medida que se intensifica a tripla convulsão (financeira, monetária e energética) que abala a economia mundial, o pânico ganha as elites. Seu credo se desmancha. “O mercado não é mais a resposta para tudo”, ousa Michaels Skapinker, outro editorialista do Financial Times. Sinal de catástrofe avançada, o Handelsblatt, um dos mais influentes jornais alemães da área financeira, aplaude a intervenção que manda os princípios sagrados do neoliberalismo para o ralo. O Wall Street Journal e o The Economist fazem-lhe eco. “Para que o sistema funcione”, lembra o semanário liberal, “é preciso, às vezes, que os banqueiros percam seus empregos e os investidores, suas camisas”.
Sensíveis à direção do vento, os responsáveis políticos e econômicos rompem com seus ídolos. Ontem elogiado por seu rigor, o banco central europeu sofre agora as críticas do primeiro-ministro espanhol, José Luis Zapatero, e do ministro alemão da Economia, Peter Steinbrück. Enquanto Josef Ackermann, CEO do Deutsche Bank e figura emblemática do capitalismo europeu, perde a confiança (“Não acredito mais no poder de autocorreção dos mercados”), seu colega, Horst Köhler, antigo diretor geral do Fundo Monetário Internacional e presidente da República Federal da Alemanha, perde a paciência: “Os mercados internacionais se metamorfosearam em um monstro que deve ser empurrado para sua caverna”.
Essa gritaria evoca aquela da criança diante do diabinho que sai da caixa de surpresas e pula sobre o seu nariz. Na primeira vez, isso pode ser engraçado. Mas e na segunda? Nos anos que sucederam ao crash de outubro de 1987, os prestidigitadores de Wall Street expressaram a súbita necessidade de “moralização dos negócios”, às vezes estimulados por uma estada atrás das grades. Em 1997-1998, a crise monetária asiática colocou em xeque as instituições financeiras internacionais e inspirou o megaespeculador George Soros a escrever um livro contra “a integração dos mercados”. Depois do estouro da bolha internet, em 2001-2003, e dos escândalos Enron, Vivendi e WorldComm, o principal assunto foi a questão de ética nos negócios e a neutralização das “armas financeiras de destruição em massa”, denunciadas pelo multimilionário Warren Buffet. Economistas e patrões apontaram os defeitos do capitalismo… a fim de otimizá-lo2. Depois, esqueceram tudo, enquanto uma nova bolha enchia, desta vez no setor imobiliário. Excesso de liquidez, especulação, crash, contrição: essas quatro estações dão ritmo à história das finanças desde o século XVIII3!
Sucessão de escândalos
A perturbação do discurso liberal não resulta somente da crise econômica. Ela também vem na esteira de uma sucessão de escândalos. Na Alemanha, a evasão fiscal de grandes contribuintes para Liechtenstein e os casos de corrupção na Deutsche Telekom, na Siemens etc. coincidem com a exposição pública de desigualdades recordes. De um lado, “a Alemanha se vê com 22% de trabalhadores pobres”, conforme a manchete do jornal Les Echos; de outro,conforme nota do correspondente em Berlim do jornal Le Figaro, “a remuneração média dos diretores de 30 empresas cotadas no Dax aumentou 62% em cinco anos, contra 2,8% de aumento do salário do empregado médio”. Consternado, o presidente alemão admite que muitas águas vão rolar antes que seja “restaurada a confiança pública na elite econômica arruinada pelo comportamento incorreto de certos executivos de empresas”.
Brendan Barder, secretário-geral da Confederação dos Sindicatos do Reino Unido, aponta a elevação da temperatura: “Os trabalhadores comuns sentem não dispor de nenhuma ficha no cassino capitalista. Estão enfurecidos, pois sofrem para pagar suas contas, enquanto uma minoria de super-ricos flutua com a ausência de gravidade social”. Recentemente, soubemos que a fortuna dos mil britânicos mais ricos quadruplicou desde a chegada dos trabalhistas ao poder em 1997.
Na França, os escândalos também se sucedem. Grave problema de gestão na Société Générale, delito cometido pelo time de executivos da EADS, confusão na UIMM: a repetição leva os dirigentes ao descrédito e desmoraliza as regras do jogo econômico. Reagindo aos subsídios concedidos ao ex-CEO da Vinci, Antoine Zacharias, o ensaísta Max Gallo resumiu a problemática em 2006: ”Não sou um igualitarista, sou pela economia de mercado. Mas existem indícios de tais desigualdades que levaram questões sobre os próprios princípios do sistema”. Ao que Philippe Meyer replicou: “Você quer dizer que existem indícios de desigualdades que colocam em causa a própria desigualdade?”.
Em Bruxelas, Jean-Claude Juncker, pre-sidente do Eurogroupe, que reúne os ministros da Economia da zona do euro julga “perfeitamente escandaloso” as “derrapagens excessivas [sic] da remuneração dos dirigentes de empresas”.
Quando oito executivos do Conver-team distribuem entre si 700 milhões de euros, resultantes da venda da empresa em junho de 2008, quando o CEO da Porsche ganha 60 milhões de euros em 2007, quando seu colega holandês do grupo alimentar Numico recebe um bônus de 66,8 milhões de euros, a falta de tato na rapinagem constrange até
; eles mesmos, os diretores. “Se isso continuar, a opinião pública não ficará mais do lado dos empreendedores”, explicou Wouter Bos, ministro holandês da Economia, para justificar uma lei tributando as remunerações escandalosamente generosas. Na verdade, não é a desigualdade entre ricos e pobres que viola a roda capitalista, mas a que existe entre executivos e acionistas. As entradas exorbitantes dos primeiros devoram os ganhos dos segundos. “No ano passado, por exemplo, o salário médio de um diretor do S&P 5004 praticamente dobrou, enquanto o lucro médio de suas empresas aumentou apenas 12%”, revolta-se o suplemento Corporate Finance do Financial Times. Convidada a testemunhar diante de comissão da Câmara dos Representantes, Nell Minow, conselheira do governo norte-americano, não poupou palavras: “A remuneração injusta acordada ao CEO que fracassa deveria ser restituída aos acionistas”5.
Ameaçadas pela crise financeira, criticadas por sua ostentação, as classes dirigentes ocidentais temem também pela instabilidade social. A inflação da energia, das matérias-primas e dos alimentos pesa sobre as populações. Do desfile de sindicalistas europeus em Liubliana aos cortejos egípcios de trabalhadores e profissionais liberais, uma mesma ameaça parece ganhar vulto em todo o mundo. Assim, por trás da ação de um punhado de trabalhadores agrícolas japoneses que, em junho último, atacaram a polícia com pedras e coquetéis Molotov, Michiyo Nakamoto, correspondente do Financial Times no Japão, percebe uma contestação mais profunda: “Num lapso de tempo bastante curto, a sociedade coesa e igualitária da segunda economia mundial foi transformada em uma sociedade entrevada pelos males do modelo liberal: classe desfavorecida crescente, marginalização, hiatos cada vez maiores de ganhos e descontentamento velado”.
O poder escorrega para a Ásia
Entre 2000 e 2007, as economias “mais avançadas” (Estados Unidos, União Européia, Japão e Canadá) evoluíram em um único sentido: a parte correspondente aos salários nos montantes nacionais baixou de 56% para 53,5%, enquanto a parte correspondente aos lucros das empresas cresceu de 10% a 16%6. Lawrence Summers, antigo economista-chefe do Banco Mundial, depois secretário da Fazenda do governo Clinton, esclareceu os termos da batalha: “A oposição aos acordos de livre comércio, e em geral à globalização, refletiu a tomada de consciência pelos trabalhadores de que aquilo que é bom para a economia global e para os campeões dos negócios não é necessariamente bom para eles”.
O questionamento da globalização por seus próprios arquitetos tem muito a ver com a percepção de que, de agora em diante, a direção das operações lhes escapa. O poder econômico escorrega em direção à Ásia. E, neste momento de perda de controle, admite-se o que havia sido negado para afastar o que se provocou. “Os parâmetros da globalização foram fixados no Ocidente, reconhece Philip Stephens, editorialista do Financial Times. A liberação do comércio e do fluxo de capitais era um projeto essencialmente americano. Não era de forma alguma uma empresa imperialista. Mas, quando todo mundo estava pensando que tirava proveito da integração econômica, um princípio implícito se impunha, no qual os principais ganhos iam para os mais ricos.”
Tanto para os operadores financeiros como para os responsáveis políticos, chegou a hora de entregar os anéis para salvar os dedos. Um debate se abre assim nos pilares da mídia sintonizada com as altas finanças, focalizando temas como sujeitar os mais ricos a impostos mais pesados, reduzir o dumping fiscal e conceder aos trabalhadores maior segurança econômica.
“Os banqueiros devem entender que se eles próprios não fizerem nada para frear seus piores excessos, os reguladores sofrerão provavelmente uma forte pressão para agir em seu lugar”, afirma editorial do Financial Times. O serviço meteorológico econômico anuncia um novo dilúvio de códigos de boa conduta, virtude e ética. E, quem sabe, um leve declínio dos altos salários. Um diagnóstico muito severo para um remédio tão leve.
*Pierre Rimbert é jornalista, autor de Libération, de Sartre à Rothschild (Paris, Raisons d’Agir Édition, 2005).