Quando a revolução hesita
A deriva autoritária era inerente ao projeto bolchevique ou foi provocada pelas circunstâncias que incidiram sobre o novo poder? A questão já se colocava enquanto Lenin estava vivo, quando, do sonho de um povo russo autogestionado, passou-se para o comando estrito das massas
Hélène Richard
Para os historiadores de direita, ávidos por desqualificar a própria ideia de revolução, o verme estava no fruto: “A repressão de massa não foi um acidente nem uma resposta a uma situação difícil, mas um componente do projeto leninista”, afirma Dominique Colas.1 Seus colegas de esquerda, ao contrário, enfatizam as circunstâncias que levaram os bolcheviques a empregar, intempestivamente e sem plano preestabelecido, meios coercitivos, concebidos como provisórios, a fim de defender a revolução contra os exércitos dos russos “brancos”, as forças estrangeiras e as sublevações de camponeses.2 O tenebroso período stalinista que se seguiu pouco tem a ver com o projeto comunista em si e tudo com a guerra civil.
Antes de alvoroçar os historiadores na quietude de suas bibliotecas, as escolhas de Lenin foram abundantemente discutidas enquanto ele ainda era vivo. Tanto dentro quanto fora do partido, alguns as justificavam, julgando-as ditadas por urgências políticas e militares do momento; outros viram nelas, mais ou menos precocemente, uma tendência autoritária. Vários instantes da revolução constituíram pontos de bifurcação em que se discutiu o uso da força, a democracia e o papel do Estado no processo revolucionário. Três, em particular: a tomada do poder por uma insurreição armada em outubro (novembro) de 1917, a dissolução da Assembleia Constituinte em janeiro de 1918 e a repressão da revolta dos marinheiros em Kronstadt em 1921.
Apenas alguns meses após a queda do czarismo, em pleno conflito mundial e pouco depois da instalação de um governo provisório, a ideia de que os bolcheviques poderiam tomar o poder pelas armas ganhou corpo. A base operária do partido e os conscritos exasperados com o prosseguimento da guerra exigiam isso. Atacado de início, Lenin começou a defender essa opção junto aos outros membros do comitê central. A radicalização dos bolcheviques, em sintonia com a atmosfera política do momento, assustava as outras forças socialistas (SR e mencheviques) e até um companheiro de jornada como Máximo Gorki. Representante de uma intelligentsia progressista ligada às conquistas da Revolução de Fevereiro (liberdades públicas, sufrágio universal, abolição da pena de morte), o escritor observa com inquietação e mesmo repugnância as formas por vezes brutais que caracterizam o despertar político de uma população ansiosa por paz e terra (ver pág. 18). Gorki acusou os bolcheviques de atiçar “os instintos sombrios de uma turba irritada pelo desmantelamento da vida cotidiana, pela mentira e pela lama da política, […] pronta a empestear tudo de maldade, cólera e vingança”.3
Lenin, por seu turno, interpretou esse caos como prova de que as estruturas do antigo regime iam se decompondo inexoravelmente. A seus olhos, a Rússia ultrapassara a etapa burguesa da revolução, que os mencheviques pensavam dever consolidar até que o país se tornasse uma verdadeira potência capitalista, segundo uma leitura mais literal de Karl Marx. Lenin, observador dos acontecimentos, supunha desde fevereiro de 1917 que os dois poderes, o governo provisório ligado à Duma (Parlamento) e os sovietes, representantes dos trabalhadores (operários, camponeses, soldados), fatalmente se chocariam. Era, portanto, necessário derrubar pelas armas um governo provisório desacreditado a fim de estabelecer um programa realmente democrático, isto é, que atendesse às aspirações da maioria: a paz imediata, a terra para os camponeses, o controle operário das fábricas – e o famoso “Todo o poder aos sovietes!”. Isso aconteceu na noite de 24 para 25 de outubro: os guardas vermelhos tomaram o Palácio de Inverno de Petrogrado (São Petersburgo), sede de um governo provisório desertado por todos, sem encontrar grande resistência.
Optando pela insurreição armada, os bolcheviques alegavam defender preventivamente a Constituinte contra um golpe militar, como aquele que quase teve êxito em setembro. Minoritários (174 cadeiras em cerca de 700) nas eleições de novembro, eles a dissolveram já na primeira sessão, em janeiro de 1918. Essa segunda medida, prenhe de consequências, suscitou dúvidas até entre os partidários do “socialismo já”. Na prisão de Breslau, Rosa Luxemburgo hesitou. A revolucionária alemã sabia bem: a dissolução da Constituinte só abalava os círculos socialistas e sindicais da oposição, sem afetar o povo, que permaneceu indiferente. Ela não recriminou Lenin por ter acabado com aquela Assembleia Constituinte, mas temia que os bolcheviques aproveitassem a ocasião para abolir a “democracia em geral”. A transformação socialista da sociedade deveria, a seu ver, apoiar-se nas invenções “burguesas”: o sufrágio universal e a liberdade de imprensa (denunciadas pelos bolcheviques como falaciosas). “Seguramente, a instituição democrática, como qualquer construção humana, tem seus limites e defeitos. Mas o remédio imaginado por Lenin e Trotsky […] é pior que o mal a ser curado: obstrui a única fonte viva de onde podem brotar os meios de corrigir as deficiências inerentes às instituições sociais, a saber, a vida política ativa, livre, vigorosa, de grandes massas populares. […] As tarefas gigantescas que os bolcheviques se impuseram com coragem e resolução pressupunham uma intensa educação política das massas e um acúmulo de experiência que não é possível sem liberdade política”.4
A legitimidade do “comunismo de guerra”
No calor dos acontecimentos, esse tipo de reticência intelectual não justificava necessariamente o abandono do “campo da revolução”. Assombrados pela lembrança das repressões sangrentas das sublevações do século XIX (1848, 1871, 1905), muitos militantes de esquerda – anarquistas e SR de esquerda, no governo até março de 1918 – achavam indispensável o emprego de medidas coercitivas e centralizadoras durante a guerra civil: confisco do trigo, nacionalização das indústrias, prisões (mesmo preventivas) de adversários. “A Rússia não evitaria o terror vermelho sem se submeter ao terror branco. […] Eu concebia a revolução como um vasto sacrifício necessário ao futuro e nada me parecia mais essencial que manter ou encontrar nela o espírito de liberdade”,5 recordava-se o libertário belga de origem russa Victor Serge, que não se predispunha à disciplina partidária exigida por Lenin.
A legitimidade desse “comunismo de guerra” acabou, não obstante, por se ver cercada de dúvidas, enquanto a coerção estatal parecia transformar-se em repressão cega. A polícia política, cujos efetivos chegavam a 200 mil pessoas (civis e militares) no auge da guerra civil, perpetrou inúmeras exações, não menos violentas que as dos russos “brancos” quando recuperavam terreno. Seus métodos brutais se mostraram incapazes de acabar com a fome, que grassava tanto mais violentamente quanto os camponeses escondiam suas colheitas para impedir que fossem tomadas e não tinham sementes para plantar.
Essas tensões culminaram em março de 1921 com a revolta da guarnição insular de Kronstadt, ponta de lança da Revolução de Outubro. Como em fevereiro de 1917, as restrições alimentares punham fogo na pólvora. Os operários de Petrogrado cruzaram os braços em fevereiro, seguidos no mês seguinte pelos soldados e marinheiros da fortaleza. Um comitê dominado por socialistas revolucionários e mencheviques politizou o protesto, exigindo novas eleições nos sovietes, liberdade sindical e liberdade de imprensa, além da abolição dos destacamentos armados de confisco de alimentos. “Apoiamos o poder dos sovietes, não o dos partidos. Defendemos a eleição livre de representantes das massas trabalhadoras. Os sovietes fantoches, manipulados pelo Partido Comunista, sempre foram surdos às nossas necessidades e reivindicações; só ouvimos uma resposta: a metralha”, declararam em 6 de março os insurretos numa mensagem de rádio.
Situada na Baía do Neva, 30 quilômetros a oeste de Petrogrado, Kronstadt constituía um ponto estratégico no momento em que os exércitos camponeses do anarquista Nestor Makhno (Ucrânia) e do ex-socialista revolucionário Alexandre Antonov (região de Tambov) ainda desafiavam o poder bolchevique. Colocando como pretexto um complô de russos “brancos”, os guardas vermelhos lançaram então a ofensiva de 7 de março. Retomaram a fortaleza depois de vários dias, ao preço de 10 mil mortos. Milhares de execuções se seguiram. “Dias de angústia e canhoneio. Meu coração está entorpecido de desespero; alguma coisa em mim morreu”, anotou em seu diário Alexandre Berkman, anarquista vindo dos Estados Unidos que, com sua companheira, Emma Goldman, tentou uma mediação com os insurretos.6 “Naquele dia, rompi finalmente e para sempre com os comunistas”, confessaria ele retrospectivamente. “Ficou claro para mim que jamais, em circunstância alguma, eu poderia aceitar […] o chauvinismo partidário e o absolutismo estatal que haviam se tornado a essência da ditadura comunista.”
Uma deformação burocrática
Além dessas três decisões principais, a crítica à tendência burocrática não ficou ausente do debate interno do partido. Este, pouco antes de Kronstadt, se viu agitado pela “controvérsia sindical” iniciada em 1920 por Trotsky. O fundador do Exército Vermelho afirmou que a reconstrução da economia exigia a militarização do trabalho e o fim dos sindicatos, inúteis num Estado operário. Vários grupos de oposição “de esquerda” reagiram. Em janeiro de 1921, Alexandra Kollontai, uma de seus líderes, advertiu que, com a vitória sobre o último exército “branco”, deveria haver uma mudança de orientação. Esgotados por três anos de guerra civil, os operários (disse ela num artigo programático)7 têm o direito de perguntar se são “a ponta de lança da ditadura de classe” ou “uma manada submissa que serve de sustentáculo para aqueles que, tendo rompido todos os laços com as massas, fazem sua própria política sem se importar com as opiniões e a capacidade criadora do povo”. Ela adverte ainda: “Quanto mais o partido atrai os melhores elementos de nossos sindicatos e fábricas para enviá-los à frente de combate ou às instituições soviéticas, mais se debilita o vínculo entre os operários da base e os centros de direção do partido”. Alexandra preconiza a autonomia dos sindicatos e seu papel preponderante na produção: “Parem, olhem em volta, reflitam! Para onde estão nos conduzindo? Será que não nos desviamos do bom caminho?”.
Esse apelo à reflexão foi ouvido, mas não do modo esperado por Alexandra. No X Congresso, que se reuniu no auge da revolta de Kronstadt, foi lançada a Nova Política Econômica (NPE), que visava a uma reaproximação com o campesinato. Um imposto in natura substituiu os confiscos. A propriedade privada das pequenas e médias empresas foi restaurada; o controle do comércio varejista ficou mais flexível. Decidido a evitar a paralisia do partido, nesse momento em que o espectro de uma sublevação camponesa geral não estava descartado, Lenin determinou um fechamento ainda mais drástico da agremiação, “a única força de que ele dispunha”.8 A proibição de facções, medida que julgava passível de revisão à vista dos resultados, pesou fortemente sobre o futuro do país. “Essa medida reforçaria o gabinete político e seu secretariado”9 (pelo qual Josef Stalin se tornou responsável a partir de abril de 1922).
No fim da vida, Lenin percebia nitidamente os limites da formidável máquina administrativa que lhe permitira ganhar a guerra. “Nosso Estado é um Estado operário que apresenta uma deformação burocrática. Foi essa a triste ‘etiqueta’, diria eu, que lhe apusemos. Eis a transição em toda a sua realidade”, declarou ele em 1920.10 O problema era ainda mais grave do que Lenin percebia na época. Os anos de guerra civil literalmente tinham devorado a classe operária, base social do poder bolchevique. Alistados no Exército Vermelho, muitos homens leais haviam tombado na frente de combate. O espírito de sacrifício herdado da clandestinidade se dissolvia à medida que o partido recrutava, nos meios mais diversos e menos politizados, aqueles que buscavam de início um lugar no novo aparelho estatal. Em 1921, a “velha guarda” bolchevique só representava 2% dos efetivos do partido, que quadruplicaram a partir de 1918.11 “A ditadura do proletariado, que a pressão das circunstâncias transformara em ditadura de uma minoria socialmente diversificada, logo se tornou a ditadura de um só partido”, analisa o historiador Moshe Lewin, que fala também de “ditadura no vazio” ou “poder político puro”.12
Enfraquecido por vários derrames cerebrais, Lenin ditou em 1922, a seus secretários, notas a que a posteridade deu o nome de testamento. Ali, ele esboça uma reforma (ampliação do comitê central, instalação de uma comissão de controle) que permitiria reproduzir uma forma de equilíbrio de poderes apesar da proibição das facções. Em vão: ele não conseguiu impor sua linha. “Podemos dizer, em abono dos bolcheviques, que muitos tentaram, fazendo oposição após oposição, corrigir o trajeto de seu comboio, mas nada deu certo”, pondera Moshe Lewin.13 Prestes a concluir sua obra, no ocaso da vida, Lenin também tentou.
*Hélène Richard é jornalista do Le Monde Diplomatique.