Quando falham as instituições, surgem homens excepcionais
Para o novo governo, trata-se de aproveitar essas pequenas brechas que se apresentam e recapturar os milhões de brasileiros que se afastaram de um engajamento incondicional com os valores republicanos e democráticos
A longo da história, todos os países que passaram por graves crises políticas que colocaram em risco sua democracia e sua república se remeteram nas mãos e na coragem de raros homens que acreditavam mais que todos os outros. No caso do Brasil da era bolsonarista, podemos apontar Luiz Inácio Lula da Silva e Alexandre de Moraes como esses homens especiais.
Depois da Segunda Guerra Mundial, quando a França já havia conseguido normalizar o clima social e político deteriorado pela ocupação nazista, o escritor e ministro André Malraux pronunciou um dos melhores discursos já escritos na história francesa. Malraux, homenageando o herói da Grande Guerra e chefe da resistência interior Jean Moulin, cujos restos mortais entrariam no Panteão, lembrou que “o destino da França esteve suspenso por um fio na coragem desse homem que tudo sabia e mesmo assim nada falou” após longas horas de tortura. Os grandes nomes da resistência francesa ao nazismo foram De Gaulle e Jean Moulin. Os grandes nomes que a história brasileira recordará depois das eleições de 2022 são Lula e Alexandre de Moraes.
Ambos foram alvos de uma verdadeira máquina de mentiras e calúnia. O ministro do Supremo e presidente do Tribunal Superior Eleitoral se tornou alvo da extrema-direita e suas teses conspiracionistas. Ele também foi alvo de críticas de grande parte de uma esquerda impaciente e imprudente; mesmo assim, resistiu, se manteve firme e sereno e contrariou uma após outra todas as jogadas covardes da extrema-direita que até o último momento, até poucas horas antes do fechamento dos centros eleitorais, acreditava na possibilidade de adiamento ou anulação da eleição.
Norberto Bobbio, o grande pensador e filósofo italiano do século XX, perguntou certa vez se era preferível para um país ter instituições fortes ou grandes governantes. Na verdade, a história nos revela que em tempos de paz as instituições sempre foram as melhores garantias da sobrevivência e continuidade republicana. Porém, em tempos de grandes crises, todas as grandes nações se abrigaram na coragem de homens e mulheres excepcionais. Esse é um grande paradoxo das nossas democracias. Recorrentemente nos vangloriamos da fortaleza das nossas instituições e tradições republicanas, entretanto, inúmeros exemplos ao longo da história mostram que a passagem de um regime democrático para um ditatorial muitas vezes depende mais da força e firmeza de alguns raros homens.
O ministro Alexandre de Moraes revelou-se ser um deles e por sorte não tem a indecente ambição política de Sérgio Moro; de modo que com ele o Brasil não corre o risco desse atroz mélange de genres. Moraes, porém, terá mais trabalho e oportunidade de inscrever ainda mais seu nome na história do Brasil e já sinalizou que compreende a importância de seu papel decisivo. Trata-se de uma reforma das leis sobre regulamentação das plataformas digitais. Durante a coletiva de imprensa posterior ao anúncio dos resultados das eleições, ele afirmou a necessidade de responsabilizar as plataformas dando-lhes status de veículos de informação. Justíssimo!
Entretanto, essa missão terá que contar com a participação de toda a sociedade civil. E mais uma vez o Brasil pode ser pioneiro em sua legislação sobre mídias digitais e internet. A realidade é que hoje a maior ameaça para as democracias liberais do Ocidente são os disparos em massa de fake news.
A extrema-direita e a memória do nazismo
Os quatro anos do governo Bolsonaro deixaram evidente que as instituições brasileiras são facilmente corrompíveis, porém, o posicionamento recente da maioria dos líderes das instituições e lideranças partidárias do bolsonarismo mostraram também que têm em grande apreço uma vida política institucionalizada. É outro paradoxo brasileiro. As instituições são frágeis, mas os políticos se fortalecem no carreirismo.
Outro ponto essencial que deve mobilizar os debates nos próximos dias é o espaço ocupado por esses mais de 58 milhões de brasileiros que escolheram Bolsonaro no último domingo. São todos extremistas e fascistas? Certamente não. Mas muitos deles constituem essa massa flutuante que navega entre o centro, a direita e a extrema-direita. Um desafio político e ideológico do próximo governo consistirá em trazer essas pessoas para o lado da democracia, talvez até por meio de medidas econômicas e políticas públicas.
O Brasil de Bolsonaro também cristalizou a posição do país longe do secularismo e da laicidade. A centralidade do debate religioso durante a campanha eleitoral, sobretudo, no segundo turno, e o fortalecimento dos evangélicos como atores essenciais dos processos políticos são um triste aviso de que a democracia brasileira perdeu uma característica fundamental dos Estados modernos que é o “desencantamento do mundo”, a separação da política com a esfera religiosa. De agora em diante, a política brasileira será pautada pela temática religiosa. É uma tendência que afeta também os Estados Unidos.
A vitória de Lula, ou melhor, a vitória do campo democrático por meio de uma aliança ampla que reuniu vários partidos políticos com fortes raízes democráticas é uma oportunidade única de marginalizar a extrema-direita no Brasil. Retomando as comparações com a Europa, vemos desde a eleição presidencial francesa de 2002 quando Jean-Marie Le Pen chegou ao segundo turno, que nesse país é comum uma frente ampla ser formada para barrar a extrema-direita; de tal forma que não se vislumbra no horizonte seu acesso à presidência da república. É óbvio que a extrema-direita se tornou uma força política na França, mas ela não é uma força capaz de chegar à presidência. O motivo dessa impossibilidade é histórico e cultural no sentido em que a extrema-direita francesa é intimamente relacionada na memória dos eleitores com a ocupação nazista e a colaboração durante o regime de Vichy. No Brasil, essa associação com o nazismo é de frágil demonstração.
No máximo, se pode relacionar a extrema-direita com a ditadura militar. Contudo, hoje, seus laços parecem ser mais fortes com os grupos religiosos evangélicos mais radicalizados do que com a memória da ditadura militar. Por isso, aumenta no Brasil a dificuldade da formação de uma frente ampla contra a extrema-direita.
Dito isso, é preciso tomar alguns cuidados na análise. A tese de que o bolsonarismo é forte precisa ser relativizada. E nem o Bolsonaro é tão forte fora da presidência. Não significa que o conservadorismo (e seus aspectos religiosos) seja fraco no Brasil. Me refiro à figura de Bolsonaro como sendo central na articulação desse conservadorismo. É esse ponto que deve ser relativizado. Muitos dos seus aliados de primeira hora foram atacados pelos filhos e o “gabinete de ódio”. Os recentes aliados sabem que é um risco que sempre vai existir com eles. Se vislumbrarem a possibilidade de tirar os filhos da cena política, não hesitarão. A presteza, domingo, de vários bolsonaristas em reconhecer sua derrota já indica essa tendência. Bolsonaro pode se manter importante nos próximos anos, mas precisará demonstrar muita inteligência política. O comportamento mais óbvio que se esperaria dele seria continuar sendo relevante mantendo a postura truculenta que sempre o caracterizou. Ele aposta na agitação. Isso mantém o engajamento de alguns radicais, mas não durante quatro anos. Além disso, há um risco político para ele caso aposte por promover uma agitação desmedida que pode irritar a Justiça. E sabemos que não é uma boa ideia num país como o Brasil onde o Poder Judiciário já mostrou que é propenso a intervir nos processos políticos.
Portanto, para o novo governo, trata-se de aproveitar essas pequenas brechas que se apresentam e recapturar os milhões de brasileiros que se afastaram de um engajamento incondicional com os valores republicanos e democráticos. Esse é um dos grandes desafios da sociedade brasileira nos próximos anos: marginalizar ao máximo o campo da extrema-direita ampliando a adesão popular à democracia.
Serge Katz é doutor em Sociologia pela UFPB.