Quando o diálogo inter-religioso vira alvo de censura
Ao atacar o padre Júlio Lancelotti, o deputado estadual Gil Diniz também ignora o papel histórico do sincretismo religioso no Brasil
Falta de prioridades mais urgentes. Eis a motivação por trás da representação canônica apresentada pelo deputado estadual Gil Diniz (PL) contra o padre Júlio Lancellotti. O ato figura não apenas como um embate teológico, mas como um sintoma doentio da crescente intolerância religiosa no Brasil. A motivação da denúncia — a participação do sacerdote em uma cerimônia de candomblé — evidencia a dificuldade de parte da classe política em lidar com o pluralismo religioso e cultural que define a identidade nacional do país.

O vídeo causador da representação circulou no fim de março. Nele, padre Júlio recebe um “passe” de uma mãe de santo, em um gesto simbólico de acolhimento espiritual. Não há palavras ofensivas, nem discurso político: apenas um homem de fé reconhecendo o que há de sagrado no outro. O gesto, contudo, foi interpretado pelo parlamentar como motivo de censura canônica. Confesso que fiquei curiosa para saber o que ele entende sobre Direito Canônico — talvez tão pouco quanto sobre a realidade das ruas que o padre percorre diariamente.
Padre Júlio é conhecido por seu trabalho junto à população de rua em São Paulo. Há décadas, ele promove ações de acolhimento, cuidado e proteção aos mais vulneráveis, sobretudo àqueles que a sociedade insiste em não enxergar. Sua presença constante nas ruas, junto aos marginalizados, já lhe rendeu admiração internacional — e também críticas por parte de setores conservadores.
A denúncia apresentada por Diniz não se revela como um gesto de preocupação doutrinária, mas como uma tentativa de silenciar uma liderança que optou por viver a fé de forma encarnada e inclusiva. Ao atacar o padre Lancelotti, o parlamentar também ignora o papel histórico do sincretismo religioso no Brasil — o que parece desconhecer. Talvez tenha se ausentado das aulas de História.
Na cidade de Salvador, por exemplo, — berço do candomblé no país — o sincretismo é parte essencial da vivência espiritual. Iemanjá e Nossa Senhora da Conceição compartilham o mesmo dia de festa. Oxalá e Jesus Cristo são celebrados por fiéis que veem, nas divindades africanas e nos santos católicos, expressões complementares de um mesmo mistério divino. Rejeitar essa herança é negar a alma de uma nação mestiça, forjada pela convivência de diferentes matrizes culturais e espirituais.
O episódio envolvendo padre Júlio lança luz sobre uma disputa maior no Brasil contemporâneo: a que opõe uma religiosidade autoritária e excludente a uma espiritualidade comprometida com a dignidade humana. Ao tentar enquadrar canonicamente um sacerdote que se aproxima de outras tradições religiosas, abre-se um perigoso precedente para a criminalização do diálogo inter-religioso. É bom alertar!
A Constituição brasileira garante liberdade de culto. A tradição cristã, por sua vez, ensina o respeito, a escuta e a compaixão. Padre Júlio, ao receber um gesto de bênção de uma mãe de santo, não traiu sua fé: honrou-a. Rejeitar esse gesto é rejeitar o Brasil real — o que reza com terço e com guia, o que mistura folhas sagradas e água benta, o que resiste não com ódio, mas com fé.
Quando observamos com preocupação os retrocessos democráticos e o avanço da intolerância em diversos contextos, episódios como este merecem atenção em caráter emergencial. Não apenas por envolver a liberdade religiosa, mas por revelar o quanto ainda precisamos lutar para que o amor ao próximo vença o medo do diferente.
Clécia Rocha é jornalista por vocação e palavra, com formação em Comunicação Social e uma trajetória dedicada a dar voz a quem quase nunca é ouvido. Natural de Feira de Santana (BA), percorreu redações, rádios e assessorias de imprensa, sempre com o olhar atento às causas sociais e à escuta das margens. Seu trabalho é atravessado pelo compromisso com a dignidade humana, sobretudo das mulheres invisibilizadas pelo sistema. Acredita que contar essas histórias é uma forma de resistência, reparação e esperança.
Cercear a ajuda àqueles que precisam é o mote destes seres. Com isso pretendem eliminar, ou expulsar de suas vistas os desvalidos.