Quando o Estado mata, quem acolhe?
Desafios e lutas que as mães e familiares enfrentam após o assassinato dos seus filhos
Enquanto muitos lares brasileiros vão celebrar o próximo domingo com a família reunida, nas favelas e periferias o Dia das Mães é mais um dia de luta. Em 2023, 6.296 pessoas foram mortas pelas forças de segurança no Brasil, segundo dados publicados em janeiro deste ano pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Esse número representa 14% das mortes violentas no país e, ainda, uma média de dezessete pessoas mortas por dia pela força pública em território brasileiro.
Os números são alarmantes. Contudo, eles escondem as histórias familiares e os projetos de vida das pessoas que foram assassinadas. Neste artigo queremos trazer um pouco dessas histórias. Em especial, os desafios e lutas que as mães e familiares das vítimas enfrentam após o assassinato dos seus filhos.
Na Rede Nacional de Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado estão presentes movimentos sociais e coletivos políticos das cinco regiões do Brasil. São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará são os estados com maior número de articulações engajadas na luta por justiça e reparação. Familiares e vítimas dividindo laços afetivos e/ou de sangue e os mesmos processos de criminalização de corpos racializados que habitam territórios periféricos.
Enquanto a linha de frente dessa luta é formada majoritariamente por mulheres – como mães, tias, viúvas, irmãs, filhas das vítimas –, na maior parte dos casos, o perfil da própria vítima segue há anos o mesmo: jovem, negro, homem cisgênero, morador de favela. A relação de parentesco que mais se destaca é a relação entre mãe e filho, como fica explícito na Carta Final do I Encontro Internacional das Mães de Vítimas da Violência do Estado: “Nós somos Mães Negras, Mães Indígenas, Mães Trabalhadoras, Mães Pobres, Mães de Favelas, Mães Periféricas: Nós somos Mães Guerreiras!”
Já há muitos anos acompanhamos e apoiamos movimentos como esses de demanda por justiça, memória e reparação de familiares de vítimas de violência de Estado no Brasil. Nesse percurso, temos aprendido sobre as formas de viver e transitar o luto e sobre as estratégias de luta contra os modos em que o Estado, a partir de suas múltiplas agências, viola o direito à vida e, após a violência letal, o direito à memória, à saúde e à convivência familiar.
A partir dessas e outras preocupações, desde dezembro de 2022, construímos a Rede Transnacional de Pesquisas sobre Maternidades Destituídas, Violadas e Violentadas (REMA). Ela surge da articulação de núcleos de pesquisa, coletivos e movimentos sociais que integram o projeto “Maternidades destituídas, violadas e violentadas: construção de redes de pesquisa, acolhimento e formação em torno ao direito às maternidades”, aprovado no âmbito da Chamada Pró-humanidades/CNPq (2022), na linha Projetos em Rede – Políticas públicas para o desenvolvimento humano e social, com foco em produzir diálogos com políticas públicas e promover a divulgação científica.
Atentas a diferentes formas de gestão das maternidades e às regulações sobre “cuidado”, temos trabalhado com casos específicos de violações e violências conectadas a práticas e argumentos de agentes públicos, profissionais, gestores e formuladores de políticas públicas, para compreender a quem é reconhecido e a quem é negado o direito de gestar, de ser mãe e de maternar, de exercer esse papel social e como exercê-lo.
O trabalho da REMA se estrutura a partir da conexão entre três eixos: maternidades destituídas, maternidades violentadas e maternidades violadas. Neste texto, nos concentramos no eixo “maternidades violentadas”. Por meio dele dedicamos nossa atenção a casos de mães e familiares que tiveram as suas maternidades e/ou laços violentados pela intervenção estatal, que resulta na morte e/ou no encarceramento de seus filhos, ou no terrorismo de Estado em governos ditatoriais. Nesse mesmo eixo também acompanhamos algumas situações de mulheres gestantes ou mães que estão privadas de liberdade.
Neste artigo, apresentamos histórias/questões que atravessam as vivências de mães e de familiares de vítimas de violência de Estado e de coletivos organizados, por elas e por outros ativistas, para fazer frente à violência estatal, para combater o racismo e para denunciar o genocídio da população negra no Brasil, entre outras pautas. Essas questões não esgotam as discussões necessárias sobre o tema, mas são as violações de direitos que temos priorizado no trabalho com a REMA em diálogo permanente com nossas parceiras de luta.
A primeira delas é sobre o luto como um direito diante da perda brutal de um filho ou familiar. As mães e familiares narram repetidamente o momento em que ficaram sabendo da morte do seu filho, irmão, ou outra pessoa da família, como um “schok”, “um buraco”, “o momento mais terrível da vida”, “algo que não desejo para ninguém”. No entanto, ao mesmo tempo, falam da impossibilidade de viver esse tempo de luto sozinhas, ou em família. Afirmam a necessidade de se lançar à luta, de transformar o luto em luta, de fazer do luto um verbo. De tomar a mão de outras mães e de outras mulheres, de construir redes e de se apoiar juntas – afirmando, com toda legitimidade, que só elas conhecem a dor que sentem.
Luto, dor e adoecimento
Apesar de fundamentais, essas redes, construídas entre os próprios familiares, nem sempre dão conta da perda e da dor. Em alguns casos porque outras perdas sucedem à morte de uma pessoa querida. O relato de Penha Rodrigues, moradora do Chapadão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, é contundente: “Soube da morte do meu primeiro filho quando estava grávida da minha filha. Enterrei meu filho no dia do meu aniversário, com um barrigão. O pai dele teve um AVC na hora. Nove meses depois, quando eu ainda vivia o luto do meu primeiro filho, a polícia matou meu segundo filho”.
Uma segunda questão trabalhada na REMA diz respeito ao direito à saúde. É inegável o impacto que a perda violenta de um filho tem na saúde física e psíquica de uma mãe. São incontáveis os casos de diabetes, hipertensão, câncer, AVC, entre as mães de vítimas do Estado, levando algumas delas à morte, como as pioneiras Vera Flores e Marilene Lima, do movimento das Mães de Acari, no Rio. Durante os enterros de cada mãe da luta que falece, as que ficam vivas não escondem o medo de ser a próxima.
Aos adoecimentos do corpo se somam com força os danos psíquicos, psicológicos e emocionais. “Viver de remédios” desde que seus filhos foram assassinados é uma realidade que muitas mães narram nas rodas de conversa organizadas até agora pela REMA. Como disse Nádia, também do Chapadão, mãe do Cleiton e tia do Fabrício, ambos assassinados pela PMERJ: “minha bolsa hoje é cheia de remédios, receitas, laudos, mas o Estado infelizmente não vê como fica nosso estado, nossas vidas”.
Esse adoecimento sistemático carece de uma política pública que apoie os tratamentos necessários. Como nos disse Ivanir Mendes dos Santos, mãe de Moisés, assassinado por policiais militares na comunidade de Cantagalo, “o Estado não dá nem uma dipirona, é você que tem que correr atrás”. Os altos custos dos medicamentos ficam nas costas das famílias que já se encontram extremamente vulnerabilizadas para levar suas vidas adiante.
A saúde deveria fazer parte das medidas de reparação e o Estado fornecer um auxílio saúde para garantir não só a sobrevivência saudável, mas também condições dignas para viver o luto e levar adiante a luta. Uma parte importante dessas demandas foi inserida no PL 2999/2022, que ainda está em discussão na Câmara dos Deputados sem a visibilidade que merece.
Realidade semelhante vivem as mães e familiares de pessoas privadas de liberdade. Ao sofrimento psíquico e ao desgaste físico das longas e imprevisíveis filas para visitar seus familiares, somam-se as condições insalubres e desumanas da prisão. “A mãe que tem pressão alta já chega lá dentro com a pressão lá no pico, porque, já parou para analisar? Ela está lá fora desde 5, ou 3 da manhã; aí ela só vai entrar às 8, aí tem a revista da bolsa, a revista da comida, a revista dela, aí tem a visita, ela sai à tarde destruída, e muitas dessas mulheres saem daí e ainda vão trabalhar”, conta Ivanir, que também faz parte da Rede contra a Violência, da Frente pelo Desencarceramento e é pesquisadora de um projeto sobre Presos Provisórios.
Por sua vez, as iniciativas de tratamentos psicológicos também ficam sob responsabilidade das redes de contato dos coletivos de familiares e as parcerias estabelecidas. É necessário investir não só em espaços de atendimento psicológico, mas também pensar formas de cuidado psíquico e acolhimento especializadas para quem sobrevive à perda de um filho ou familiar pela violência de Estado. O diagnóstico de “depressão” ou “ansiedade” não dá conta das complexidades vividas por milhares de mulheres em luto e luta.
Direito à memória
Uma terceira questão importante é sobre o direito à memória. As blusas que as mães e familiares criam e vestem com os nomes e fotos dos seus filhos e familiares são um elemento da luta pela memória deles. As falas em atos e outros eventos lembrando como esses jovens eram, o que faziam, estudavam, onde trabalhavam e moravam, o que gostavam de comer, quais sonhos tinham, também são formas de segurar eles por perto, de manter a memória viva sobre as vidas e sobre as maternidades que foram interrompidas.
“Toda vez que eu falo do meu filho Johnatha, que eu boto a camisa, eu continuo sendo a mãe dele”, afirma Ana Paula Oliveira, do movimento Mães de Manguinhos, no Rio, “porque o Estado me tirou o direito a exercer minha maternidade”.
À memória dos seus filhos e familiares soma-se outra memória que deve ser produzida: a memória da violência do Estado. Os familiares apresentam incansavelmente como os jovens foram mortos. São relatos dolorosos, mas nos mostram detalhadamente como essas mortes são produzidas de forma sistemática, com estratégias que se repetem, seja para matar, seja para ocultar ou disfarçar as mortes. É necessário criar formas de registro e memória dessas práticas violentas e ilegais, bem como das formas de luta das mães e familiares para fazer frente a elas. Como muitas mães afirmam, “para que nunca mais se repita”.
As violações de direitos que essas mães enfrentam não se esgotam com as questões que mencionamos aqui. Entretanto, a pergunta fica: como sobreviver à violência de Estado que se perpetua na experiência de vida dessas mulheres? Elas mesmas enfatizam a importância de tecer redes de apoio e acolhimento: coletivos sociais, movimentos, encontros, conversas, troca de informações e experiências. Sem dúvida são redes fundamentais.
Porém, precisamos também nos perguntar onde fica a responsabilidade do Estado nisso tudo? São urgentes políticas públicas que contemplem as demandas e necessidades pautadas por essas mulheres a partir de suas experiências de fazer frente a violências de natureza singular, e não aquelas políticas imaginadas de cima para baixo. Para isso, é preciso ouvir, acolher e cuidar: do luto, da luta, da saúde física e emocional, da memória.
Lucía Eilbaum é pesquisadora da REMA/CNPq e professora de Antropologia da UFF.
Juliana Farias é pesquisadora da REMA/CNPq e professora de Sociologia da UERJ.
Revisão e edição: Mariana Pitasse e equipe Le Monde Diplomatique Brasil.