Quando os trending topics são trending places
Confira resenha do livro de Paolo Gerbaudo, Redes e ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo, lançado em 2021 pela Editora Funilaria
Discussões sobre movimentos sociais tendem a despertar debates acalorados. Seja do ponto de vista dos atores envolvidos, seja do ponto de vista dos pesquisadores, a tendência tem sido a de fundir as demandas trazidas por eles com as expectativas dos seus observadores e analistas. Por muito tempo, a pesquisa sobre movimentos sociais esteve atrelada à própria ação política, o que levou de alguma forma à percepção desse objeto como um fenômeno primordialmente virtuoso da democracia, ou seja, voltado para a ampliação de direitos, para a construção da justiça social e para um projeto de emancipação humana.
O que permanece como consenso entre pesquisadores é que movimentos sociais são agentes de transformação. Essa transformação, no entanto, nem sempre está baseada numa perspectiva progressista, na medida em que as demandas sociais se orientam por diferentes interesses e projetos políticos, podendo também apontar para caminhos opostos à emancipação, com viés autoritário e reacionário.
Essas ambiguidades da ação coletiva puderam ser melhor observadas a partir dos protestos de 2011, no que ficou célebre como Primavera Árabe, no surgimento dos indignados na Espanha e pelo Occupy Wall Street nos Estados Unidos. Encarados primeiramente como manifestação por liberdade e novidade política, aos poucos foram sendo reconhecidos seus efeitos impremeditados: uma crítica às instituições em geral, um sentimento antipolítica e o avanço do neoliberalismo acompanhado de populismo de direita.
Esse “movimento das praças” foi o objeto do livro Redes e ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo, de Paolo Gerbaudo, publicado em 2021 pela Editora Funilaria. A primeira edição foi lançada em 2012, ainda no calor dos acontecimentos. O autor, professor no King’s College em Londres, já indicava que aquele fenômeno era mais complexo do que um simples levante organizado por redes digitais. Redes estas que à época eram tidas tanto como a redenção dos movimentos sociais (tecno-otimismo) ou como o fim da política (tecnopessimismo), maniqueísmo rejeitado veementemente pelo autor. Plataformas como Twitter e Facebook passaram a ser objeto de estudos no campo do ativismo político e colocados no centro das estratégias de protestos.
Apesar do livro ter se debruçado sobre acontecimentos de 2011, suas teses são interessantes para entender como chegamos em 2021. Em 2013 houve no Brasil fenômeno semelhante, chamado pelos entusiastas de “jornadas de junho”. Tivéssemos prestado atenção às características do ativismo digital elencadas por Gerbaudo, talvez não fôssemos pegos de surpresa quando as manifestações converteram um protesto contra preço de tarifa de transporte público em movimento pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
A pesquisa não se reduziu à observação do conteúdo das plataformas. Envolveu também pesquisa etnográfica, com acompanhamento de reuniões públicas e a realização de oitenta entrevistas com ativistas do Egito, Espanha e Estados Unidos. Isso permitiu ir além das análises quantitativas sobre visualizações e engajamento e apreciar como as ferramentas são utilizadas pelos próprios atores. Gerbaudo quer responder como os usuários ativistas dessas redes se transformaram em “ocupantes”.
O argumento central do livro é a mudança na forma de protesto político. Segundo o autor, não é possível concordar com os discursos de horizontalismo da ação coletiva e de ausência de lideranças, presentes no conceito de rede de Manuel Castells e de enxame de Antonio Negri e Michael Hardt. As mobilizações têm lideranças e hierarquia, ainda que se apresentem de forma diversa. Gerbaudo identifica uma liderança “coreográfica”, conduzida por sujeitos com alguma influência nas mídias sociais, os quais criam a cena e escrevem um roteiro emocional para a ação nas ruas. Esses líderes são, como ele define, invisíveis no próprio palco, pois atuam muito mais como produtores de cena do que portadores de faixas de protesto.
Esse roteiro tem como orientação criar um sentido de comunalidade para ativistas dispersos, a partir do estímulo a uma tensão emocional, formando o que o autor chama de “coreografia de assembleia”, uma construção simbólica do espaço público que orienta e facilita o encontro físico. Nesse sentido, as mídias sociais são meios de mobilização e seu uso é complementar às formas de encontros presenciais e não seus substitutos. Com isso, há um novo sentido de centralidade social – as ruas e praças são os trending places criados simultaneamente com os trending topics das redes digitais.
Essa discussão é apresentada para que as experiências do Egito, Espanha e Estados Unidos sejam situadas. Assim, Gerbaudo explica como os protestos da Praça Tahir na cidade do Cairo condensaram a raiva da juventude contra o regime de Mubarak e como as redes digitais tiveram papel central na preparação das manifestações. No capítulo seguinte, mostra como os indignados da Espanha utilizaram as redes digitais para colher o sentimento de frustração com a falta de representação política. Por fim, conta como as redes digitais falharam num primeiro momento para convocar os protestos do Occupy Wall Street, que só se tornaram massivos após a campanha We are 99 per cent, que canalizou o sentimento de solidariedade.
A partir do estudo empírico, Gerbaudo propõe entender a relação entre mídias sociais e mobilização política no contexto de uma nova experiência de espaço público numa sociedade de dispersão. Essa relação é de coordenação de ações para tornar visíveis as demandas por participação. Com isso, enterra-se de vez a separação entre ambientes digitais e ambientes presenciais quando se fala de ativismo, levando-nos a perguntar se ainda é pertinente utilizar a expressão ativismo digital.
Os movimentos sociais continuam a desempenhar o papel de tornar problemas sociais em questões públicas e objeto de decisão política, agora na forma de coreografia emocional de assembleia. Para isso, a construção da influência não pode mais desconsiderar essas lideranças coreográficas.
Esses movimentos coreografados prometiam uma renovação não apenas nas formas organizacionais de protesto, que aliam redes e ruas, como também no cenário político, não só nos locais onde ocorreram, mas em várias partes do mundo. O que se sucedeu a essa onda de protestos foi mais participação pública, mas não necessariamente mais democracia. O que se viu foi uma virada para movimentos de retirada de direitos, de intolerância e uso das mídias digitais para disseminação de discurso de ódio e fake news.
O livro de Gerbaudo fornece recursos importantes para compreender o ativismo contemporâneo, considerando que as emoções mobilizadas podem ao mesmo tempo vislumbrar desejos por emancipação e por dominação. Isso é crucial para que a pesquisa sobre movimentos sociais, ativismos e redes digitais avance a despeito das nossas próprias expectativas.
Kelly Prudencio é docente do Departamento de Comunicação da UFPR e coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Participação Política. Organizou com Rousiley Maia e Ana Carolina Vimieiro o livro Democracia em Ambientes Digitais: eleições, esfera pública e ativismo, Editora da UFBA (2018).