O que aprendi em debates com eleitores de Bolsonaro nas redes sociais
Aprendi que esses eleitores não debatem programas políticos – como muitos brasileiros – mas indivíduos, e estão presos numa lógica que beira a irracionalidade que personifica e individualiza os problemas pautando-se por valores e julgamentos morais carregados de ambiguidades entre um aparente liberalismo, mas em seu conteúdo revela o conservadorismo enrustido, personificado e presente na cultura política brasileira
Primeiro, aprendi que Jair Bolsonaro do Partido Social Liberal é personagem controverso que representa uma ameaça a democracia brasileira e uma ilusão perdida de mudança de seus eleitores, que atuam nas redes sociais projetando nele a saída para a crise justificando seu voto pelo fato dele estar na ficha limpa. Muitos desses eleitores são trabalhadores assalariados que não se reconhecem como classe trabalhadora, e eles estão crentes que o candidato vai trazer prosperidade liberal ao país e acabar com a “esquerda”, os “bandidos”, os “homossexuais” e a corrupção que tratam como problemas equivalentes numa maneira de pensar imediata sem contexto e história. A maioria sequer leu o seu programa de governo que, entre todos os candidatos, é o mais frágil e genérico para resolver concretamente os problemas do país. Aprendi a ter paciência com esses trabalhadores, até porque alguns conheço desde a infância e adolescência, e nesse debate no Facebook meu foco não estava neles, pois são como um copo cheio d’água de certezas e verdades absolutas ao chegarem recentemente no debate político e culpar pelos males do país o que chamam de “esquerdismo”. Meu objetivo foi mostrar que seus argumentos eram frágeis e sem conteúdo, porque reproduziam os jargões do farsante Movimento Brasil Livre (MBL) que apoiou o golpechment e ajudou a aprofundar a crise econômica com a crise política, expressando um modo de pensar carente de fundamentação teórica e empírica da realidade, ao mostrar isso para outras pessoas que acompanharam as tentativas de diálogos e, receosas de se manifestar explicitamente, conversavam comigo em mensagens individuais ressaltando minha coerência, paciência e resiliência.
Aprendi que esses eleitores não debatem programas políticos – como muitos brasileiros – mas indivíduos, e estão presos numa lógica que beira a irracionalidade que personifica e individualiza os problemas pautando-se por valores e julgamentos morais carregados de ambiguidades entre um aparente liberalismo, mas em seu conteúdo revela o conservadorismo enrustido, personificado e presente na cultura política brasileira que advém daquilo que Jessé Souza chamou de elite do atraso e síndrome do vira-lata. O fato de o candidato defender tortura e se manifestar de modo racista, machista e com tendências fascistas não interfere na cegueira desses eleitores, que se apegam em seu ódio ao petismo e a esquerda e acham que a eleição do candidato é a saída para isso. Eles apoiam um candidato que se diz anticorrupção e que apela para a moral, os valores religiosos e de um tipo de família e nega outras formas de existência que não fazem parte da padronização de sua mente idealista. Por isso, a tentativa de certos partidos e setores de acabar com o petismo e a esquerda via golpe parlamentar, reconhecida nesses dias como erro até pelos tucanos, mostra que se abriu brecha ao fascismo representado pelo referido candidato que nada tem de liberal e democrático, ao levar a disputa para o segundo turno que pode ser entre Bolsonaro e Haddad.
Segundo, nenhum deles consegue explicar o que é esquerda ou direita, o que nos faz pensar que a realidade é complexa demais para ser reduzida a essa dicotomia e oposição. Manifestam um ódio que foi construído socialmente e que não sabem a origem, e atribuem toda responsabilidade do problema da crise à esquerda, ao citar Venezuela ou Cuba para justificar seu argumento ideológico oriundo de fakes news (notícia falsa), e não conseguem enxergar o que de fato precisa ser enxergado: as crises política, econômica e moral não estão nesse ou naquele candidato em si, mas na falência e crise do sistema político e regime de acumulação despótico e dependente do país, controlado por uma elite atrasada e “coronelista” que impõe ajuste fiscal aos trabalhadores e boa parte da sociedade, que poupa os grandes capitalistas de pagar pela crise que eles ajudaram a criar.
Esse ódio criou um “ensaio sobre a cegueira” e parte de uma construção cotidiana resultado da ação da grande mídia capitalista, do distanciamento dos partidos políticos da população e do processo do golpe parlamentar iniciado em 2015 e ratificado em 2016, que criou um cenário de instabilidade política sem volta. Mas esse ódio vem de longe na história com teorias como as de Hannah Arendt que misturou e confundiu fascismo e “comunismo de estado” como sendo expressões do totalitarismo sem as devidas mediações históricas e sociais, ao levar os atuais “bolsominions” a considerar esse “comunismo” como ditadura, fascismo e autoritarismo, mas que não conseguem ver as defesas de ditadura, autoritarismo e fascismo no candidato que apoiam. As propostas do referido candidato não falam em reformas, muito menos na reforma política, que permitira ampliar a participação do povo no poder, apenas ratifica ideias de ajustes fiscais, privatizações e redução de impostos para os ricos e aumento para os pobres, semelhantes ao praticado pelo governo Macri na Argentina que levou o país vizinho a bancarrota (falência). É um simulacro de liberalismo com pontos cego que não aprendeu com o desenvolvimentismo (Celso Furtado deve estar se remexendo no túmulo) de que não há mercado sem Estado, nem capitalismo sem regulação. Até nos EUA, um dos países mais liberais do mundo, o Estado tem papel preponderante para o desenvolvimento e o crescimento econômico. Após a crise de 2008 quem salvou o capitalismo dos capitalistas? Foi o Estado! Mas sabemos desde Marx que a emancipação humana está para além do capital e dessa economia, além do Estado, além das classes sociais e da política. Infelizmente, isso está longe da consciência social de boa parte dos trabalhadores, que acaba ingressando nessa “onda conservadora” de apoio a um programa político que será contrário às suas necessidades e interesses enquanto classe social.
Terceiro, diferentemente de uma proposta liberal, aprendi que o programa do candidato se fundamenta num autoritarismo estreito e quer mudar leis sob a justificativa de endurecer o combate a criminalidade, mas sem propor politicas sociais como contrapartida. Em todos os países em que a crise econômica, política e moral está aguda, a criminalidade aumenta na mesma proporção. O combate ao crime é de viés moral e ideológico por parte deste candidato, e vimos o que esse tipo de pensamento provocou no caso do Rio de Janeiro: uma intervenção militar inócua e sem resultados práticos, com os assassinatos da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes que até hoje não foram evidenciados, e causou mais mortes de pobres e de policiais numa guerra que não se vence com fuzis e invasão, mas com políticas sociais e com a participação popular. Entre as propostas do candidato está a redução da maioridade penal; a mudança no estatuto do desarmamento (armar a população); dar cartão verde para a polícia matar; e tipificar como terrorismo as “invasões” de propriedades rurais e urbanas. O difícil de acreditar é que muito trabalhador pobre apoia essas medidas, mas sem saber efetivamente seus resultados práticos. Mas entre trabalhadores há também ambiguidades e contradições, pois em debate numa oficina mecânica de carro percebi essa aversão aos políticos, e das quatro pessoas que declararam voto uma votaria no Boulos, uma no Haddad, outra no Amoedo e uma no candidato fascista que, no fundo, esta pessoa que declarou voto no candidato espera que as coisas funcionem bem e que os políticos tenham responsabilidades com os recursos públicos, e muitos na periferia não o apoiam e se dividem entre os demais candidatos nas opções de votos.
Nas redes sociais a defesa mais comum do candidato é a do nacionalismo exacerbado, dos valores da família e da propriedade privada típicas da organização Tradição, Família e Propriedade (TFP), mas também de crítica aos direitos humanos, “esquerdismo”, petismo e a corrupção, sendo que em nenhum momento criticam o sistema político brasileiro, ao considerar que pela moral e pelos valores do seu candidato é possível mudar a política sem mudar suas bases reais – o financiamento privado de campanha, as coligações partidárias, venda de votos, clientelismo, partidos de aluguel, etc. A crença no candidato é de que ele vai botar ordem e assim o país vai progredir, mas o que não está evidente para eles é que tipo de ordem é essa. O que é possível inferir dos discursos do candidato e de seu vice é que será um governo autoritário e sem diálogo com os opostos e com as diferenças, por isso uma ameaça para a limitada democracia brasileira que já sofreu com o golpechment parlamentar de 2016. Esse foi o discurso dos militares em 1964 com o golpe e a imposição de 21 anos de censura, perseguições, torturas e assassinatos para quem se opunha ao governo militar, esse agora é o discurso do referido candidato que está preso numa cegueira de nacionalismo, família e ordem ideal sem ver o povo, as diferenças e as diversas formas de famílias reais que existem.
Por fim, aprendi que estou do lado que considero certo nessa história: do lado da classe trabalhadora, independente de partido ou programa político, classe essa que é oprimida e explorada sob matizes de gênero, etnia e localização socioespacial nas cidades, tratada como quem não teria condições de gerir a produção e a riqueza de toda sociedade sendo que é ela quem tudo produz: o alimento, a roupa, a moradia, o transporte, o celular, a televisão, enfim, tudo o que existe e que ela acessa apenas através da compra e do assalariamento de sua força de trabalho. Para comprar é necessário dinheiro, ponto nodal de toda crise econômica: o dinheiro na lógica de acumulação do capital fica nas mãos de poucos, enquanto que a maioria das pessoas na condição de trabalhadores é consumida em trabalhos precários e intermitentes sem acessar condições básicas de existência representando, segundo relatório da Oxfam, 16 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza e 13 milhões de desempregados.
Para entender a crise basta seguir o dinheiro, aí saberemos que quem produz não tem acesso ao montante de dinheiro necessário para realizar suas necessidades de moradia, transporte, educação, saúde, alimentação, vestimenta, etc., numa lógica idealista de que o mercado tudo resolve, mas o fato é que quem detém o poder dos negócios se apropria e concentra a maior parte riqueza em suas mãos: 5% da população (os mais ricos) recebem por mês o mesmo que os demais 95% juntos, o que mostra uma imensa desigualdade que precisa ser superada com propostas concretas e enfrentamento de privilégios e concentração de propriedade e poder no país. Isso explica em partes a crise, só que uma distribuição mais equânime dessa riqueza só pode superar a miséria, a pobreza, a desigualdade, a criminalidade e as injustiças sociais a partir da luta política dos oprimidos, que são trabalhadores, mulheres, negros, jovens, periféricos, favelados. Portanto, o programa do candidato que não vai a debates políticos tem intenções liberais revestida de conservadorismo, que na real vem para conservar os privilégios das classes abastadas que concentram a riqueza e aprofundar o país numa crise maior do que já está, algo que não é percebido por seus eleitores fanáticos que foram os mesmos que saíram as ruas pelo golpechment em sua cegueira de antipestismo. Por isso, estivemos nas ruas em apoio às mulheres no movimento #elenão por considerar a necessidade de barrar esse anti-projeto político que expõe medidas autoritárias oriundas da ideologia fascista que teima em morrer na história, para não sofrer as consequências desastrosas dessa elite atrasada que quer apenas conservar seus privilégios de classes personificados no referido candidato e em seu programa áspero como um deserto do Saara, que não mostra os rios carregados de água em sua periferia que permitiria germinar a vida nova a partir da crise e fazer pulsar a vida social de um povo alegre e resistente como o povo brasileiro. Se o “coiso” como é chamado nas redes sociais for eleito, será mais um momento de trevas que a sociedade brasileira viverá, em contrapartida, o movimento #elenão mostra que as mulheres, que são maioria no país, podem derrotá-lo nas urnas ao se mobilizar contra os retrocessos que representa o seu programa e contribuir para a construção da unidade em torno de outro projeto político para a sociedade. Vida longa a luta das mulheres feministas, negras e ativistas que desafiam o fascismo e a irracionalidade do nacionalismo estreito e míope do referido candidato e de seus cegos seguidores! Parafraseando Fidel Castro, a história nos absolverá!
*Sandro Barbosa de Oliveira é cientista social, professor e educador popular. Bacharel em Ciências Sociais pelo CUFSA, mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP e doutorando em Sociologia pela UNICAMP. É associado da Usina CTAH, militante da Frente Itaquera Sem Medo e Conselheiro Municipal de Habitação em São Paulo.