“Queermuseu”: A apropriação que acabou em censura
A perspectiva queer está ligada ao momento de intensa luta pelos direitos civis LGBT no início da década de 1980 nos EUA. Não é surpreendente que a exposição em um banco privado seja censurado e fechada pelo seu conteúdo haja vista que a lógica do capital é precisamente a de abandonar o que não é de seu interesse em termos de lucro.
Na última semana, foi impossível passar incólume de um assunto nos sites de notícias e nos fóruns virtuais: a censura da exposição Queermuseu – cartografia das diferenças na arte brasileira, realizada no Santander Cultural na cidade de Porto Alegre. A mostra foi fechada arbitrariamente pela instituição – que cedeu a pressões de setores conservadores e fascistas brasileiros, que acusaram a exposição de fazer apologia à pedofilia, à zoofilia e à profanação de símbolos religiosos cristãos. No entanto, quais são as entrelinhas envolvidas em todo o processo de construção conceitual e político em Queermuseu?
Para início de conversa, é necessário entendermos o que seria essa palavra “queer” – comumente associada a uma teoria, mas que aqui trataremos como uma perspectiva ou uma forma de atuação política. A perspectiva queer está ligada profundamente ao momento de intensa luta pelos direitos civis LGBT no início da década de 1980, sobretudo, em decorrência do avanço da AIDS nos Estados Unidos. Naquele país, “queer” é uma expressão de insulto e a autointulação desse tipo de ativismo com essa palavra é um caminho de reivindicar o achincalhamento para si como uma forma de se opor às normas sociais. Assim, a perspectiva queer é sobre desfrutar das bordas e não ter aspiração ao centro ou à assimilação em modelos pré-estabelecidos de vida. Queer invoca precisamente o estranhamento às lógicas de normatização dos corpos e das subjetividades, principalmente, no que tange os gêneros, as sexualidades e outros possíveis tangenciamentos como raça e classe.
O surgimento sociopolítico queer tem uma íntima relação a uma série de críticas ao modo como o governo tratava pessoas LGBTs, além de uma própria crítica a um movimento pelos direitos sexuais predominantemente gay e com formas de atuação política muito cristalizadas. As principais causas para a emergência do queer são a crise da AIDS e a assimilação da cultura gay masculina a um sistema capitalista e excludente através do chamado “pink money – uma exploração danosa das identidades sexuais e de gêneros com fins comerciais que, predominantemente, não beneficia a comunidade LGBT.
O surgimento da AIDS e sua vinculação à comunidade gay – dada a replicação rápida do vírus dentro desse grupo social – contribui para um enrijecimento dos discursos reacionários e homofóbicos. A enfermidade ficou conhecida como “câncer gay” e exatamente por isso a administração do ultra conservador Ronald Reagan e as instituições públicas de saúde negligenciam o tratamento e o estudo dessa doença. A postura do governo estadunidense frente ao avanço da AIDS era quase nula. Tendo todas essas tensões como pano de fundo, surge o grupo ACT UP (Aids Coalition to Unleash Power) que reunia em torno de si não apenas pessoas soropositivas, mas também pessoas com dependência química, militantes negros e latinos, pessoas que trabalhavam com sexo, além de gays, lésbicas e grupos sociais menos favorecidos. O grupo ficou conhecido por suas ações de desobediência civil, a exemplo da realização de velórios públicos de pessoas mortas pela AIDS – mortes cuja administração pública dizia desconhecer.
Exatamente pelo traço interseccional e pelas ações mais radicais, o grupo rompia com um modelo de militância gay assimilacionista – que lutava por uma integração social a todo custo através da compra da sua cidadania por meio do mercado destinado a LGBTs cada vez mais crescente.
A partir das primeiras conquistas de direitos civis, LGBTs começam a ser encaradas como um potente público consumidor. Isso levou a uma franquia social em que o dinheiro se tornou mercado de troca por migalhas de uma suposta cidadania. A luta se torna cada vez mais careta através de uma submissão a um modelo integracionista, em que as pessoas LGBTs deveriam “passar despercebidas”, condenando qualquer tipo de prática que fugia de uma conduta “discreta” perante a sociedade hetero-cis-centrada.
Quem ousava ultrapassar esse modelo coercitivo de viver seus corpos generificados e sexualidades (sadomasoquistas, pessoas trans, gays e lésbicas consideradas como “estereotipados”, relações intergeracionais, etc) era quem vivia numa outra zona, numa lama social, na escória. São essas pessoas, não autorizadas de gozar de suas singularizações, que darão o tônus aos ativismos queer – apostando que é preciso entender as diferentes subjetividades para construir políticas que possam atender suas necessidades próprias, mostrando como há uma supremacia da identidade gay branca frente a outras diferentes marcas de gênero e sexualidade. A perspectiva queer alerta para como o essencialismo e a tentativa de incluir a qualquer custo dentro dos modelos cis-heteronormativos se converte, numa cilada por insistir em verdades sobre os sexos e os gêneros, tentando explicar objetivamente o que seria gay, lésbica, bissexual ou travesti – sem deixar chances para trânsitos ou fraturas que ponham em questão essas identidades.
Assim, queer não pode ser confundido como gay ou talvez sequer com LGBT, já que diz menos sobre identidade e mais qual é a sua posição política: dissidência e rebeldia às normas vindas de qualquer direção (dentro ou fora da comunidade LGBT) e às imposições dos regimes do capital. Muitas pessoas ativistas queer, por estarem ligadas à universidade e também com o campo das artes, começam a trazer essas experiências e conhecimentos para a academia. Daí que se chama a produção dessas pessoas de “Teoria queer”. Já no campo das artes, se tem uma série de ações que tinham como ideal uma insistência num incômodo tanto estético quanto político das artes. Essas produções artísticas acentuam ainda mais o questionamento das barreiras entre público e privado ( processo já iniciado por uma produção de mulheres feministas), além de uma aposta em um tipo de arte abjeta – que trazia o nojo, o grotesco, o incomum como uma maneira de torcer a sacralização e os sistemas representacionais da arte.
No Brasil, a perspectiva queer tem penetração, sobretudo, na universidade no início dos anos 2000. Embora já tivéssemos por aqui uma série de produções acadêmicas e artísticas que poderiam ser considerados com o que conhecemos, hoje, como queer – realizados antes mesmo do surgimento dessa perspectiva no Estados Unidos. Exemplos disso, são as produções de grupos como Dzi Croquettes e Vivencial ou alguns textos de vanguarda como de Edward McRae e Nestor Perlongher.
Toda essa digressão nos faz perceber que queer tem pouca ou nenhuma relação com bom mocismo ou com algo agradável e palatável aos olhos. Pelo contrário, o queer é indigestão, incômodo e desestabilização.
Na atualidade, se fala muito sobre artivismos queer – uma possibilidade de utilizar a arte como uma maneira de afetar a audiência acerca de temas relacionados ao campo das sexualidades e dos gêneros não-normativos e não alinhados com o capital. Os artivismos põe as fichas no campo da micropolítica para compor seus trabalhos. A micropolítica aponta para a criação de linhas de fuga a modelos de ancoragem representacionais, mudando as formas de vida, de criação e de potências afetivas e de usos dos corpos.
A partir desses apontamentos e fazendo uma análise da exposição, Queermuseu parece nem mesmo se referir a “queer”. Há uma apropriação do termo, mas não é acompanhada de uma reflexão crítica e histórica sobre o que ele significativa articuladamente. Creio que isso se dá por diferentes motivos. Um deles é o mais óbvio: a associação de uma temática “queer” com um banco privado interessado exclusivamente em lucro. Aqui a contradição maior é que a política queer ataca de forma sistemática os regimes do capital neoliberal – o mesmo que utiliza ainda hoje as pessoas LGBT como moeda de troca por visibilidade, parasitando as lutas pelas diferenças sexuais e de gênero sem contribuir de maneira sistemática contra o extermínio da população LGBT. Portanto, não é surpreendente que a exposição em um banco privado seja censurado e fechada pelo seu conteúdo haja vista que a lógica do capital é precisamente a de abandonar o que não é de seu interesse em termos de lucro.
Queermuseu traz em seu contexto obras que possuem temáticas relacionadas ao gênero e à sexualidade, mas a representatividade da exposição é embaraçosa – já que a maioria das pessoas artistas sequer são LGBT ou, se são, muitas estão emaranhadas nos próprios sistemas da arte e do capital. Até mesmo no episódio da censura, o que se anuncia é que obras de Portinari, Volpi, Lygia Clark e Adriana Varejão – nomes consagrados no cenário artístico e de mercado brasileiro – não foram permitidas de serem mostradas e não o conteúdo da mostra e o discurso de ódio anti-LGBT que recai sobre a mostra. Ao ver as entrevistas do curador da mostra Gaudêncio Fidélis, além de todo material institucional divulgado, a mostra tinha uma visão muito simplista e integracionista sobre a estranheza queer, higienizando uma pauta que se insurgiu aos próprios modelos sociais e também de produção artística.
O desafio maior de Queermuseu, caso tivesse uma aderência e uma sintonia produtiva com a perspectiva queer, seria “estranhar o museu” e não “musealizar” em um cubo branco e sem tensões as asperezas insurgentes queer. Se a exposição acontece num contexto esterilizado e em que a condição das pessoas subalternizadas historicamente não é debatida, ela é pouco ou nada queer.
Na abertura da mostra, inclusive, houve uma manifestação que ressaltava uma posição crítica a essa docilização do queer. Na intervenção, panfletos foram arremessados do alto do prédio do Santander Cultural no meio da exposição. Nos papéis haviam as indagações: “LGBT? Queer? Para quem? Vernissage para o sistema de arte enquanto 500 mulheres são agredidas por hora no Brasil. 13 mulheres são mortas mortas por dia vítimas de agressões no Brasil. Cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil”. Outras inscrições presentes nos papéis traziam: “Aliados de Sartori [governador do Rio Grande do Sul] aprovam a extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres. LGBT/Queer na contemporaneidade é bixa morrendo sem anti-retroviral. Sem repasse de verbas da prefeitura de Porto Alegre fecha-se o GAPA/RS [Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS]. Sem repasse de verbas do governo federal faltam medicamentos anti-retrovirais em todo país. Porto Alegre vive e abafa uma epidemia de HIV/AIDS”.
Esse texto poderia parar aqui e trazer todas essas críticas aos processos curatoriais da exposição. No entanto, o fato da exposição ter sofrido uma série de retaliações de setores fascistas e reacionários do Brasil, entre eles o Movimento Brasil Livre – conhecido por suas posições homofóbicas, racistas e classistas – faz com que seja importante trazer outras camadas para esse debate. Os ataques à mostra se deram não somente na internet, mas também na própria exposição – onde o público visitante era constrangido com a presença de manifestantes a favor do fechamento da exposição. Esses setores se organizaram e em confluência com a prefeitura de Porto Alegre conseguiram fazer com que o Santander Cultural fechasse um mês antes do fim programado a exposição. A justificativa de fechamento da exposição é que haviam obras que incentivavam a pedofilia, a zoofilia, além de uma profanação de símbolos religiosos cristãos.
As obras da artista Bia Leite foram uma das mais atacadas pelos reacionários. As pinturas da artista eram compostas inspiradas em fotografias retiradas de um site da internet em que pessoas usuárias enviam fotos de suas infâncias em poses e vestimentas que desestabilizam as normas de gênero e sexualidade. Além dos retratos pintados, haviam as inscrições “Criança viada travesti da lambada” e “Criança viada deusa das águas”. A obra, obviamente, não possui nenhum teor de apologia a pedofilia, pelo contrário, retrata como nós, pessoas LGBTs, tivemos momentos na infância de vivências de nossas sexualidades e de nossos gêneros, e que a experiência das nossas orientações sexuais e identidades de gênero não se iniciaram repentinamente na fase adulta. A figura da “criança viada” aponta para a própria necessidade de se pensar em uma educação que possa estranhar a maneira como enxergamos a infância, em que as diferenças possam ser respeitadas e não ceifadas e castigadas – fato presente na biografia de muitas pessoas LGBTs.
É a censura que dará um giro na percepção que as pessoas sintonizadas com a perspectiva queer sobre a mostra de artes. Primeiro, porque a censura nos mostra como os setores reacionários estão organizados e empenhados nos extermínios de qualquer discurso e vivência que fuja de um modelo de sexualidade e gênero desejável. O outro ponto a ser delineado é que a exposição parece ser higiênica demais para quem tem um compromisso com os ativismos, mas transgressora em excesso para o fascismo que tem sua ressonância em vertigem no Brasil. Ou seja, mesmo que haja uma série de críticas, pessoas ativistas que historicamente se opõem às normatizações se veem impelidas em lutar pela liberdade artística e pelo direito de pessoas LGBTs existirem.
Obviamente, que isso não significa que essa coalizão não anula uma série de tumultos entre essas ativistas. É possível também lutar tendo como subterfúgio o dissenso.
Além disso, a arte mostra, mais uma vez, uma potência em perturbar os status sociais. E, embora ainda seja preponderantemente eurocêntrica, colonial, branca e machista, já é possível perceber uma desestabilização crítica desses discursos. E quem promove essa fissura não são pessoas heterossexuais e brancas, mas sim as imorais, as sujas, as não desejadas, as que as materialidades são tomadas como não importantes para uma sociedade hetero-cis-supremacista. A reação de ódio incitada pela exposição também reside na “surpresa” da audiência reacionária em ir a um espaço em que supostamente deveria se encontrar a valorização do “belo” eurocêntrico e se deparar com trabalhos que, em maior ou menor grau, desconstrói esses ideais.
A censura da exposição “Queer museu”, por sua midiatização, também faz com que outros setores da sociedade, para além dos ativistas, possam enxergar o que sempre as lutas dos movimentos sociais trouxeram: há uma tentativa violenta e sistemática de extermínio de corpos LGBTs, sobretudo das pessoas trans e travestis, negros, mulheres, pobres e favelados. Que a polícia – enquanto organização social que ratifica as estruturas de poder supremacistas, mas também a que realiza uma vigilância diárias que pune corpos desajustados – seja desestabilizada em prol de uma política em que tumultos sociais, de gêneros e sexualidades se propaguem de maneira rizomática.
Tiago Sant’Ana é curador independente, doutorando em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia e pesquisador vinculado ao grupo CUS – Cultura e Sexualidade.